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Segunda-feira, 5/2/2007
Sérgio Augusto
Julio Daio Borges


S.A. em foto de Maria Lucia Rangel

Sérgio Augusto nasceu a 25 de janeiro de 1942, no bairro de Santa Teresa – “a Montmartre carioca”, como ele mesmo define. Filho de pai português e de mãe filha de portugueses, revela que é “praticamente 100% lusitano”, com passaporte duplo e tudo – “posso até me candidatar a presidente da república ou a primeiro ministro de lá”, brinca. Começou no jornalismo precocemente, aos 10 anos de idade, mimeografando o Sujeira da Imprensa – “com um amigo de bairro e escola”, conta.

São 46 anos de carreira, com passagens por praticamente todos os principais jornais e revistas do País, desde a segunda metade do século XX. S.A., como é também conhecido, foi repórter e crítico de cinema da
Folha até 1996, quando passou a ser articulista do Estadão, onde está até hoje; já trabalhou em Veja, IstoÉ e até em O Cruzeiro, como editor; função que, aliás, também desempenhou no Correio da Manhã, “uma faculdade de jornalismo”, recorda, no revolucionário Pasquim e no combativo Opinião; além de ter dado a cara da Bravo! e de ter participado da antológica revista Senhor; fora, é claro, os cariocas Jornal do Brasil e O Globo.

Em livro, destacam-se, recentemente, suas coletâneas de ensaios:
Lado B (2001, Record), praticamente um clássico do jornalismo cultural contemporâneo, e As Penas do Ofício (2006, Agir) – que acaba de sair do forno. Sérgio Augusto já biografou Tom Jobim (2000), a Chanchada Brasileira (1989), o Botafogo (2005) e até Vinicius de Moraes (no prelo, pela Jobim Music). Organiza, desde 2006, em coletânea, o melhor de OPasquim, com Jaguar, pela editora Desiderata (já saiu o primeiro volume e o segundo está a caminho). O curriculum profissional de S.A. ainda passa por rádio e televisão, desde roteiro até co-produção.

Nesta Entrevista, Sérgio Augusto fala da sua saída da revista
Bravo!, depois de oito anos de colaborações; afirma que a decadência do jornalismo cultural brasileiro é “tão irreversível quanto o aquecimento global”; e conclui, com ceticismo, que “os medíocres venceram”. Elogia, em contrapartida, a nova revista Piauí, ainda que a quisesse “mais solta, mais alegre, mais espiritualmente carioca”. E, além de bastante duro com o papel – não perdoa nem as listas de best-sellers, “que eram menos deploráveis há 20, 30, 40 anos” –, não vê um futuro muito brilhante para o jornalismo nas novas tecnologias. Compara o celebrado jornalismo colaborativo a “um karaoke de escribas sem pedigree”, enquanto que define a maioria dos blogs como uma “plataforma da grafomania ególatra e onfalocêntrica”. Sem grandes esperanças para uma sociedade “majoritariamente composta por analfabetos e semiletrados” – a nossa –, confessa que, se começasse hoje, não faria crítica de cinema “de jeito nenhum”, voltaria a estudar filosofia e “partiria direto para a literatura”. – JDB

1. S.A., acho que não exagero aqui em dizer que o seu Lado B, pouco mais de cinco anos depois, já é um clássico do jornalismo cultural brasileiro. Agora, As Penas do Ofício, além de ser sua continuação, marca, de certa forma, o seu desligamento da revista Bravo!, e o fim de uma era, podemos dizer... Você também enxerga dessa maneira? Seu ensaísmo, que atingiu o auge na revista concebida por Wagner Carelli (e que provavelmente foi o ponto alto dessa mesma publicação), fica sem lugar no panorama do jornalismo impresso brasileiro? Sem Bravo!, Bundas e OPasquim21 ficamos órfãos do Sérgio Augusto ensaísta (e, posteriormente, em livro)? Por que antes foi possível e por que hoje já não é mais?

Seria muito pretensioso de minha parte falar em “fim de uma era”. Digamos que minha saída da Bravo! coincidiu com o fim de um período, de uma fase da revista. A editora Abril só a comprou com uma finalidade: transformá-la num produto mais comercial, mais vendável, mais middlebrow. E um sinal claro dessa guinada foi o chega-pra-lá dado na seção de ensaios, que era uma espécie de abre-alas da Bravo!. Fui avisado de que ela seria transferida para o final da revista, os ensaios diminuiriam bastante de tamanho e não haveria mais colaboradores fixos, que, àquela altura, eram apenas dois: o Sérgio Augusto de Andrade e eu. Ora, eu estava na revista desde o primeiro número, sempre na comissão de frente; não fazia sentido eu continuar lá, desterrado nas últimas páginas, ganhando a mesma coisa e sem presença garantida todos os meses. Só por amizade ao Almir de Freitas, ainda fiz três resenhas para o suplemento de livros, e parei. Já não era mais a minha revista, nem eu lhe fazia falta.

A Bravo! original só foi possível, assim me contaram, por ter-se beneficiado, em seu primeiro ano de vida, de facilidades criadas pela Lei Rouanet. Uma editora como a Abril, acostumada a operar em outra escala, jamais teria se interessado em editar uma revista nos moldes da Bravo!, como a pequena editora D’Avila bancou, em 1997, astuciosa e legitimamente amparada nas benesses da renúncia fiscal. Nos últimos dez anos, como sabemos, os índices de leitura e vendas de revistas e jornais caíram barbaramente, tornando ainda mais difícil a sobrevivência de publicações dedicadas a assuntos culturais, com textos livremente escritos, pessoais, mais longos e sofisticados, o oposto do lixo que predomina em nossas bancas. As bancas estrangeiras também vivem entupidas de lixo, de papinhas culturais perecíveis, mas alternativas existem. Penso na New York Review of Books, na New Yorker, na London Review of Books, na Harper’s, na Atlantic, e tantas outras.

2. Posso estar enganado, mas – como todos sabemos – você era um dos símbolos da sofisticação da Bravo!, e eu considero esse movimento seu, de afastamento da revista, muito significativo, porque coincide com um momento em que o jornalismo cultural perde muito da atenção de que desfrutava desde o final dos anos 90, no Brasil. Desde o Paulo Francis querendo que o seu Waaal fosse mais cultural do que qualquer coisa, passando pelo Daniel Piza e pelo “Caderno Fim de Semana” na Gazeta Mercantil, pela criação da Bravo! e da editora D’Avila... Até, aproximadamente, a aurora dos anos 2000, quando a editora W11 falha como projeto conjunto e termina apenas como editora Francis; quando o jornal Valor Econômico suspende seu caderno de cultura “Eu&” (sem falar no populismo do JT...); quando uma revista como a Raiz, de cultura popular, não faz nem um ano e já tem de sacrificar sua periodicidade... Fora outros “n” exemplos. Podemos falar que aquele momento da década de 1990, para o jornalismo cultural, passou e, tão cedo, não volta?

Embora deteste fazer qualquer tipo de profecia, receio que sim, que o entusiasmo daquele período não volte mais. Como as décadas anteriores à de 90 foram bem mais efervescentes, podemos concluir que o processo de decadência da imprensa cultural é algo tão indiscutível e aparentemente irreversível quanto o aquecimento global. Os jornais não estão interessados em qualidade, mas em ganhar dinheiro; ou melhor, em não perder tanto quanto perderam nos últimos anos. Ficaram populacheros, como dizem os mexicanos, atrelados à “cultura” da celebridade, à vulgaridade televisiva. Os medíocres venceram.

3. Ao mesmo tempo, o jornalismo literário passa por uma fase de grande interesse no Brasil... O que você está achando, por exemplo, da Piauí? (Aliás, eu estranho muito você não estar lá no cast da revista...) Pode ser um caminho para publicações de alto nível que, no Brasil, parecem ter esgotado as opções em matéria de jornalismo cultural “em papel”? Sei que você não é exatamente um especialista em jornalismo literário mas apelo para o seu conhecido background em termos de media criticism: o mergulho no gênero reportagem, jornalistas que são quase escritores, o foco no texto e não na imagem... – uma publicação assim é possível (ou, melhor, sustentável, a longo prazo)? Existe gente para produzi-la? Existe público leitor? Alguém ainda paga por isso?

A Piauí tem o mérito de ir contra a corrente. Não há nada sequer remotamente parecido com a Piauí em nossas bancas. Ela acredita em todos os valores nos quais eu acredito. Investe na inteligência do leitor e no seu suposto interesse por textos mais longos e elaborados, mais literários, enfim. Eu gostaria que ela fosse mais solta, mais alegre, mais espiritualmente carioca; certas pautas não me interessam, mas nem tudo que sai na New Yorker, por exemplo, me interessa. De todo modo, o projeto me parece aberto o suficiente para todo tipo de mutação. O que vale dizer que a falta de rigidez é outra de suas virtudes. Torço para que dê certo porque seu fiasco seria um golpe fatal em nossos ideais jornalísticos. Seu universo de leitores me parece, infelizmente, limitado, como limitado é o universo de leitores de qualquer coisa que fuja ao ramerrão e à baixaria triunfantes. Haja vista os livros que dominam as listas dos mais vendidos. Eis outro sinal de decadência: há 20, 30, 40 anos atrás, as listas de best-sellers eram menos deploráveis que as de hoje. Se traduzido agora, Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson, não teria vendido o que vendeu em 1986. Desculpe o meu arraigado ceticismo.

4. Li, em As Penas do Ofício, uma dura crítica sua ao formato “e-book”... Ao mesmo tempo, você é, a meu ver, um dos jornalistas mais conectados à internet desde o começo. Como você vê, em geral, o jornalismo (ou o fenômeno supostamente jornalístico) que atualmente se manifesta na World Wide Web? Outra das vedetes do jornalismo contemporâneo é o chamado “jornalismo colaborativo” – onde os leitores fazem muito do conteúdo ou, então, todo o conteúdo... Existe um coro meio eufórico no sentido de querer “matar” o jornalista off-line, o editor de antes, o “gatekeeper”, como se diz em inglês... Como você vê isso? O que há de bom e o que há de ruim nesse movimento todo? É possível generalizar ou a avaliação, de qualidades e de defeitos, tem de ser feita caso a caso?

Não gosto do e-book porque acho a tela um formato bastante ingrato para leituras mais densas e extensas. Jamais teria saco de ler um romance na tela de um computador ou numa versão e-book. Guerra e Paz, então, nem pensar. Ora, direis, que ninguém escreve mais cartapácios como Tolstói, que a modernidade ou a pós-modernidade e a revolução digital enfiaram o último prego na prosa caudalosa. Escreve, sim. Norman Mailer, por exemplo. Submundo, do Don DeLillo, é um calhamaço. Thomas Pynchon e alguns novos autores cultivam o roman-fleuve, quem sabe se até como um repto ao minimalismo, que, em mãos inferiores, nada mais é do que o triunfo da preguiça, o curto que não satisfaz.

Leio mais jornais, revistas e correlatos na grande infovia do que em papel. Mais por conveniência do que por prazer, já que é grande o meu fetiche por papel. As versões on-line chegam mais rápido e barato à minha casa. Além disso, são bem mais fáceis de “recortar” e arquivar do que os textos impressos — principalmente para quem dispõe de um arquivo pessoal no próprio New York Times, como é o meu caso, ou se utiliza dos préstimos do del.icio.us.

Quanto aos blogs, ainda os vejo como uma plataforma da grafomania ególatra e onfalocêntrica (ônfalo é umbigo em grego). São tantos blogs — alguns bons, ótimos, mesmo — que não dá tempo de acompanhá-los. Mas a maioria é feita por gente medíocre, vaidosa, semi-analfabeta e ressentida com a falta de oportunidade na chamada mídia mainstream. Fora isso, acredito no potencial da mídia eletrônica, nem que apenas como linha auxiliar da mídia impressa.

Jornalismo colaborativo é uma bobagem. É irmão bastardo do dazibao. As experiências até agora efetuadas deram chabu, sobretudo porque os leitores, de modo geral, exigem mais respeito, logo, mais e melhores profissionais a seu serviço, não um karaoke de escribas sem pedigree. Sou um meritocrata convicto. Para mim, escreve quem sabe, tem espaço quem o merece. Sei que, na prática, nem sempre as coisas funcionam desse jeito: há muito jornalista que deveria estar no lugar do contínuo, mas o jornalismo colaborativo é um avatar da casa-da-mãe-joana, a capitulação diante do amadorismo, uma depravação da democracia. Sorte nossa que ainda não cogitaram da medicina colaborativa, nem da engenharia colaborativa (se bem que uma investigação a fundo naquela cratera do metrô de São Paulo possa revelar que ela já foi posta em prática).

5. Uma coisa que as novas gerações de jornalistas certamente perdem é o convívio com os veteranos da redação... Hoje, mesmo grandes grupos de mídia terceirizam o trabalho da redação para pequenos estúdios, muito é feito por freelancers e o contato é praticamente virtual, os prazos são apertadíssimos, a remuneração, pífia (o que aumenta, individualmente, o numero de “frilas”...) e ninguém consegue se conhecer direito (tamanha a quantidade de compromissos assumidos)... Sei que você não freqüenta mais as redações de hoje em dia – então não pode confirmar 100% do que eu digo –, mas como vê o impacto de tudo isso, em maior ou menor grau, no jornalismo? Muitos jornalistas “de papel” normalmente atacam a internet por “canibalizar” suas publicações, mas você não acha que o próprio jornalismo – antes da era digital – já vinha se canibalizando sozinho, em nome de uma “profissionalização”, de “consultorias de gestão” e de uma suposta “venda” para grupos internacionais de mídia?

Se um dia o jornalismo impresso tornar-se obsoleto, acabar, como os dinossauros e o pássaro dodo, hipótese de que, aliás, duvido, espero que apareça alguém para esclarecer que a mídia eletrônica apenas lhe deu o golpe de misericórdia. Na verdade, a imprensa, tal como a conheci e pratiquei durante muitos anos, começou a morrer antes da consolidação do computador e do surgimento da internet, quando a profissão foi perversamente desvalorizada e a gestão das empresas jornalísticas escravizada ao crivo de consultorias que nada entendem das peculiaridades do jornalismo e às pressões de acionistas que tudo sacrificam pela lucratividade de seus papéis. O aviltamento dos salários, a terceirização compulsória, a obsessão pela conquista de “leitores mais jovens”, o nivelamento por baixo, a cumplicidade com a celebritite, o afluxo abusivo de jornalistas diplomados mas malformados, o desprezo pelos veteranos, geralmente tachados de “românticos” e “superados” — tudo isso contribuiu para uma queda de qualidade dos jornais e das revistas. Já na década de 80, um jornalista com 30 anos de idade era considerado “da antiga”, e por isso menosprezado. Esse culto à mocidade traz embutida uma razão cínica: o jornalista iniciante custa mais barato à empresa; ele ganha pouco e se sujeita a isso porque precisa mostrar serviço, “aparecer”. Com tantos filhinhos e filhinhas de papai rico nas redações — a onda do momento, pelo menos na imprensa carioca —, para que pensar em salários decentes?

Quando entrei na profissão, com 18 anos, a redação do Correio da Manhã mantinha um saudável equilíbrio etário, misturando gente experiente com sangue novo. Aquilo, sim, era uma faculdade de jornalismo. A três metros da minha mesa uma porta se abria para o Petit Trianon, que era como chamavam a sala dos editorialistas do jornal. Dentro, à minha disposição para uma conversa e aulas informais sobre tudo, Otto Maria Carpeaux, José Lino Grünewald, Carlos Heitor Cony, Luiz Alberto Bahia, Antonio Houaiss. Isso acabou.

6. Mesmo sem discutir o jornalismo, em termos de conteúdo, eu sinto que a figura do jornalista perdeu muito da sua força nas últimas décadas... Hoje é inimaginável uma personalidade como a do Samuel Wainer, que, com uma reportagem, reelegeu um presidente; ou, então, como a do Carlos Lacerda, que, no lado oposto do espectro político-ideológico, corroborou para o suicídio desse mesmo presidente... Ainda no jornalismo cultural, sempre me impressionou como Paulo Francis teve impacto na carreira de quase todo mundo de 1960 pra cá: colocando você no Pasquim, levando o Ruy Castro para a revista Diners, apoiando o Wagner Carelli na IstoÉ, abrindo as portas para o Daniel Piza, investindo até na carreira de cineasta do Diogo Mainardi... O que houve com o poder que emanava das grandes figuras do jornalismo brasileiro? É um problema estrutural, de falta de personalidade, ou foi um tempo que simplesmente passou?

Todos esses fatores somados. Tenho um amigo jornalista que há tempos me disse: “Nós hoje valemos 40% do que valíamos na década passada.” Não só em termos salariais, mas em prestígio mesmo. Um repórter qualquer, com apenas uma semana de exposição no Jornal Nacional, adquire uma visibilidade e um poder capazes de me reduzir, a mim, com os meus 46 anos de profissão, à estatura de um pigmeu. Uma pessoa sensata dirá que isso é uma total inversão de valores. É, mas faz sentido. Se é assim em sociedades mais avançadas, mas também videotizadas, como a americana, por que seria diferente na nossa, que, além de videotizada, é majoritariamente composta de analfabetos e semiletrados?

7. Gostaria de falar um pouco da formação do jornalista... Você e o Ruy, para ficar num exemplo de dois contemporâneos dos anos 60, pegaram ainda a “era dourada” de uma sólida formação humanística que valia muito mais do que qualquer diploma de jornalista (hoje encontrável em faculdades a cada esquina)... Eu vejo essa tentativa de profissionalização do jornalismo, por decreto, com muito ceticismo... Até porque grande parte das minhas admirações não teve diploma nenhum... O que você, Sérgio Augusto, acha importante na formação de, digamos, um jornalista cultural? Você acha que é possível montar um “currículo”? Como se ensina jornalismo a não ser na prática? Numa monografia recente sobre o Digestivo, a autora fala da volta do “especialista”, não-diplomado, através da internet (dos blogs etc.)... Você acredita que pode ser uma alternativa à equalização das redações de hoje, onde quase ninguém se destaca?

Não estudei jornalismo, que no início dos anos 60 era chamado de Jornalismo, mesmo, e não de Comunicação. Optei por Filosofia porque já freqüentava a redação da Tribuna da Imprensa e tivera uma experiência como repórter e crítico de cinema num jornal estudantil, O Metropolitano, que marcou época, circulava nacionalmente, como suplemento de O Diário de Notícias, e revelou um punhado de gente, como Arnaldo Jabor, que fazia crítica de teatro, Cacá Diegues, que chefiava a redação, etc. Com dez anos de idade eu já editava um jornal mimeografado, Sujeira da Imprensa, com um amigo de bairro e escola. Estava realmente fadado a não ter outra profissão. Não sei como funcionam as escolas de jornalismo, mas a maioria dos formandos e diplomados que conheci não as recomenda. Mas eu me pergunto que parcela de culpa têm os cursos de jornalismo. Eles são apenas a reta final de uma formação deficiente desde o primeiro grau. O curso de jornalismo perfeito, ou quase isso, ensinaria os rudimentos da profissão e daria maior ênfase ao ensino da língua, de noções básicas de filosofia, história, antropologia, estimularia a leitura, a discussão e a arte de escrever bem. Mas é preciso ter em mente que vocação e talento, só, não bastam. Quem desfrutar de padrinhos poderosos ou for adotado por uma das patotas que dominam o mercado de trabalho jornalístico nem muito talento precisará ter.

8. O Matinas Suzuki Jr. fala numa “distorção de formato”, para o jornalismo de qualidade: como não há mais espaço nos veículos estabelecidos, o bom jornalismo vai migrando para o formato livro... Você concorda com isso? Aliás, como foi a resposta às suas incursões, respectivamente, na história da chanchada, na biografia de Tom Jobim e na trajetória do Botafogo? Eu sei que são livros completamente diferentes, por editoras diferentes, com objetivos bem diferentes, e em épocas, do Brasil, diferentes... Mas eu queria saber se pode ser uma saída, realmente... Não um “modo de vida”, é claro, porque autor brasileiro, raramente, vive de direitos autorais, mas, quem sabe, apenas para continuar fazendo jornalismo de qualidade, quando surge uma certa rejeição por parte de jornais e revistas... A clareira aberta por você e pelo Ruy Castro, nesse sentido, pode ser um caminho para novos jornalistas?

Como faço do que gosto na imprensa, não considero o formato livro uma saída de emergência, uma válvula de escape, ou algo similar. Para outros, circunscritos a tarefas que consideram limitantes, o livro realmente funciona como um oásis. Os livros que eu fiz foram todos pensados como livros. Eles jamais caberiam num jornal ou numa revista. Não os fiz movido por algum tipo de frustração. Dois deles, Lado B e As Penas do Ofício, que acabo de lançar, são coletâneas de textos anteriormente publicados na revista Bravo!. Há gente que menospreza esse gênero de livro. Os gringos o praticam há décadas. De tanto em tanto tempo, jornalistas e críticos lá de fora reúnem sua produção mais recente e lhe dão a perenidade de um livro. Com isso aliviam arquivos de recortes e contribuem para o enriquecimento da memória.

9. Complementar a isso tudo, você, na editora Desiderata, está fazendo um belo trabalho de resgate do Pasquim original... Felizmente houve uma resposta consistente do público, mesmo tantas décadas depois, e o Pasquim foi best-seller, de novo, em livro... Será que essas reedições, dos “melhores momentos” do jornalismo, podem preencher lacunas na formação de jovens jornalistas – uma vez que os veteranos saíram das redações, as faculdades têm sua eficiência questionada e o anseio pela prática da profissão continua em alta? Hoje, seus escritos de poucos anos atrás já estão saindo em livro, mas será que – como honrosas exceções, como a sua – o jornalismo do futuro vai querer se lembrar deste momento agora? A exemplo do que foi o fenômeno Pasquim, vejo coisas muito interessantes acontecendo na periferia do jornalismo: pouca coisa de efetivamente aproveitável na mídia estabelecida... Concorda comigo?

O Pasquim foi um fenômeno, sem dúvida, a meu ver, incomparável. Claro que a reedição do Pasquim ou de quaisquer outras publicações de importância histórica comprovada, como, por exemplo, a revista Senhor e o SDJB (Suplemento Dominical do Jornal do Brasil), podem preencher lacunas na formação de jovens jornalistas. E, se não preencher, ao menos guardará para os pósteros um pedaço notável de nosso passado e da história do jornalismo. Se os jornalistas do futuro não quiserem se lembrar daqueles momentos e dos que estamos vivendo e registrando agora, problema deles.

Há coisas muito interessantes circulando na internet, mas ainda não me sinto capaz de colocá-las na perspectiva correta. Nem sempre o que nos parece promissor vira borboleta. Não me arrisco em profecias; sou, nesse sentido, o anti-McLuhan.

10. Quando você conta da sua estréia no jornalismo, sempre fala com muita devoção do cinema, e da crítica de cinema – algo que eu raramente encontro saindo da boca de um jornalista, mesmo que crítico, hoje... Talvez tenha a ver com aquela piada, que você também conta, sobre as redações de hoje empurrarem aquele sujeito que não domina nenhum outro assunto para a crítica de cinema, afinal aparentemente todo mundo pode ver filmes e ter opiniões sobre eles... Você se imagina começando hoje? Eu sempre pergunto, aqui, sobre os conselhos que os Entrevistados dariam para os Leitores do Digestivo – mas eu queria inverter a pergunta com você: que caminhos o Sérgio Augusto do século XXI percorreria, no seu ponto de vista? Faria jornalismo? Bateria na porta de redações estabelecidas? Tentaria a internet? Montaria, sei lá, um blog? Ou partiria, diretamente, para o mercado editorial, para os livros?

Eu partiria direto para a literatura e tentaria o quase impossível: escrever bons romances que vendessem o suficiente para que eu não precisasse bater à porta das redações estabelecidas. Viveria modestamente, mas feliz, sem precisar pensar em pautas e cumprir prazos. Estudaria filosofia, novamente. Crítica de cinema, hoje, de jeito nenhum. A crítica, de tão empobrecida e tão frugalmente servida de bons filmes e espaço nos jornais, perdeu a aura que tinha antigamente. A internet talvez fosse um canal inevitável, sendo eu um jovem, com uma carreira inteira pela frente e cada vez menos jornais e revistas à minha disposição.

Para ir além





Julio Daio Borges
São Paulo, 5/2/2007

 

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