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Quarta-feira, 14/8/2002
Digestivo nº 94

Julio Daio Borges

>>> ASSIM BLOGAVA ZARATUSTRA A febre do blog saiu da internet e tomou a imprensa. Entre os insiders, deixou de ser novidade há muito tempo, para simplesmente se converter em realidade cotidiana. (Eu blogo, tu blogas, ele bloga.) Agora, quando jornalistas de renome resolvem produzir textos inócuos a respeito - só para receber a atenção da comunidade blogueira (pois os leitores tradicionais pouco vão entender) - é sinal de que, em algum nível, a "grande mídia" impressa está pagando seu tributo à "pequena mídia" internet. [Quem diria.] Mas o que há de tão extraordinário nos blogs que não havia antes nos sites? Ocorre que o blog é mais um passo em direção à democratização da internet: através dessa ferramenta, os neófitos em World Wide Web podem experimentar a autopublicação sem a intervenção de técnicos em HTML; basta escolher um entre tantos endereços, optar pelo serviço (gratuito) mais conveniente e, voilà, "postar" (publicar posts) com a facilidade de quem envia um e-mail. À parte o exemplo prático, abundam as discussões teóricas a respeito. Qual o significado do blog no mundo de hoje? Seria a interatividade da internet levada ao extremo? O desejo narcisista e/ou voyeurista de ver e ser visto? Os diários virtuais que, de tão escancarados, deixaram de ser pessoais e secretos? Ou uma moda passageira, como todas: feita para causar frisson, movimentar o comércio e entabular conversas? É certo que, se cada cidadão resolver montar o seu próprio jornal cibernético, não haverá leitores em número suficiente - e a dispersão será tamanha que as grandes polarizações serão impensáveis futuramente. É o grande paradoxo do blog: muita gente se lança na atividade atrás de fama e fortuna, sem perceber que - se for mais uma gota no oceano das (tele)comunicações - vai estar justamente contribuindo para a derrocada de conceitos como... "fama" e "fortuna". A tal fatia do bolo dos quinze minutos de Andy Warhol será ainda mais dividida entre as ditas "celebridades instantâneas", para que cada ser humano desponte para o anonimato, em toda a sua plenitude. Há que se lembrar, sempre, do seguinte: no momento em que o palco for acessível a todos, a platéia também desaparece.
>>> Blog
 
>>> ACONTECE ASSIM Todo ano, uma das ambições dos visitantes da Casa Cor é encapsular aquela atmosfera cool e transportá-la para a vida real. Uma das maneiras de se conseguir isso, percebeu a organização, foi montar um CD com a trilha sonora que preenche os ambientes. Embora tenha sido lançado já no adiantado da hora, o álbum "Casa Cor 2002 - a musica da casa" tem seleção de Nelson Motta, o homem que é sinônimo de sofisticação e de vanguarda em música, no Brasil. Esse falso carioca de 57 anos acertou mais uma vez na alquimia, combinando pratas da casa com expoentes do jazz de ontem e de hoje. Fez uma opção pela música cantada, não incluindo nenhuma faixa 100% instrumental. Pessoalíssimo nas suas relações profissionais, deixa isso transparecer na escolha dos nomes (quase sempre de amigos): Ed Motta, recente parceiro, está lá com "Coisas Naturais"; Marina Lima, a quem Nelson produziu nos primeiros passos, aparece com "Pé na Tábua" (uma versão para "Ordinary Pain", de Stevie Wonder); o Bossacucanova, legado de seu companheiro Roberto Menescal, consta com "Nós e o Mar"; também Elis Regina, igualmente produzida pelo autor de "Noites Tropicais", marca presença com esse enigma que é "Fascinação". Fecham a ala brasileira: João Donato, nos anos 60, com "Muito à vontade"; Cassiano, na década de 70, com "Coleção"; Patrícia Marx, no último capítulo do século XX, com uma surpreendente "What's Going On" (de Marvin Gaye); e Fernanda Porto, da novíssima geração lounge, com "Só tinha de ser com você". Na ala internacional, Nelson Motta arrisca abrir com uma diva que vem se consagrando: Diana Krall, interpretando "S'Wonderful". Firma o pé com Billie Holiday ("Stormy Weather"), completando o cast com Anita O'Day ("Early Autumn") e Dinah Washington ("I Get a Kick Out of You"). Modesto, almeja iluminar a existência de quem adquire o CD; esquece-se que, direta ou indiretamente, já vem iluminando há tempos.
>>> "Casa Cor 2002 - a música da casa" - por Nelson Motta
 
>>> UM NADA, UM ESTADO DE ÂNIMO Entre uma eleição na ABL e os volumes que chegam só para legitimar o passado dos presidenciáveis, ainda há nas livrarias lançamentos de parar o trânsito. Dentre os últimos, as "Narrativas do Espólio", de Franz Kafka, pela Companhia das Letras, com tradução de Modesto Carone. Talvez não seja a introdução mais recomendável à obra do grande autor de Praga, mas ainda assim contém peças indispensáveis para quem quer desfrutar o que de melhor se fez no gênero durante o século XX. Lá estão textos já considerados canônicos, como "Durante a construção da muralha da China", "A verdade sobre Sancho Pança", "O silêncio das sereias" (sobre o Ulisses de Homero), "Prometeu" e "Posêidon". Embora não tenha publicado em vida nenhum dos mais de 30 textos que compõem essa rigorosa seleção do tradutor, Kafka sabia que - mesmo em seus cadernos - dialogava de igual para igual com a tradição. A revisão portanto de mitos fundadores do caráter ocidental (conforme citado nos exemplos) não era, para o escritor da "Metamorfose", um exercício de pretensão - mas sim uma maneira de trazer nova luz a esse espólio de séculos (como observou Benjamin). Fora que permanece o prazer infinito de ler o estilista do "mot juste" (sim, aluno de Flaubert): belo ainda que tortuoso; inspirador ainda que pessimista ao extremo; fascinante ainda que inatingível em essência. O primeiro autor cuja vida está tão imbricamente ligada à obra que inaugurou as, por vezes, desnecessárias interpretações da produção literária sob a ótica dos acontecimentos cotidianos. Nesse sentido, contribuem (nunca desnecessariamente, no entanto) os posfácios luminares de Modesto Carone, tomando sempre pela mão os curiosos que pela primeira vez se aventuram nos escritos daquele rapazinho obcecado. Num ato de amor, transmite a paixão contagiante por Franz Kafka.
>>> Narrativas do Espólio - Franz Kafka - Tradução de Modesto Carone - 232 págs. - Companhia das Letras
 
>>> THE ART OF POSSIBILITY Ainda parece haver esperança para a música, quando se ouve a Orquestra de Jovens das Américas, que se apresentou no Teatro Alfa, sob a regência de Benjamin Zander, dentro da temporada do Mozarteum Brasileiro. Embora embalados como projeto social, de integração entre 20 países, através de músicos entre 14 e 24 anos, a Orquestra, em sua primeira turnê mundial, tem mais que patrocinadores (como o Deutsche Bank), tem resultados a mostrar. O primeiro deles talvez seja Horacio Lavandera, um jovem pianista argentino de 18 anos, ovacionado pela platéia depois de executar impecavelmente o "Concerto nš 4" de Beethoven. Com a mesma desenvoltura, de longas melenas, emendou uma "Rapsódia em Blue", de Gershwin, no bis - e por insistência dos constantes aplausos, ignorando a extensão do programa, ainda voltou para mais duas peças virtuosísticas e modernosas. Sem exagero: sugeriu um novo Evgeny Kissin ou, pela nacionalidade, um futuro Daniel Barenboim (resta agora saber quem será a próxima Jacqueline du Pré). Por falar neste último, foi impossível não comparar a execução de Mahler (da mesma "Sinfonia nš 1"), pela Orquestra e seu maestro, com aquela apresentada pela Sinfônica de Chicago, regida por Barenboim, na Sala São Paulo, quase dois anos atrás. Apesar de irrepreensível como mestre de cerimônias e showman, faltou a Zander pulso e gravidade no primeiro movimento, tomado por violinos e violas, abafando sopros e cellos; aliás, essa foi a tônica também no segundo e no terceiro movimentos (este último favorecido pelo valsear do mar de cordas); só no quarto e derradeiro foi atingida a "feroz veemência", necessária e apontada por um amigo do compositor. Assim, apesar do início mahleriano vacilante, o programa foi fechado em triunfo, exaurindo o condutor e os músicos. Para finalizar com uma imagem de harmonia e integração entre os povos, houve a bela participação dos Meninos do Morumbi que, apesar de percussivos e viscerais na origem, souberam se ajustar entre seus colegas eruditos. Talvez, mais do que qualquer discurso, a música consiga pacificar um dia os corações dos homens.
>>> Orquestra de Jovens das Américas
 
>>> DOCE VIRILIDADE Quem conheceu o Ettore Scola de "Concorrência Desleal" (2001) e "O Jantar" (1998) provavelmente não imagina o realizador denso e profundo que também está por trás de "Um Dia Muito Especial" (1977). Por que será que todo grande artista começa desafiador e revolucionário para depois assentar a poeira no conformismo e na trivialidade? Talvez porque a intensidade do gênio seja uma coisa insustentável a longo prazo. Não importa. O que importa é que Marcello Mastroianni e Sophia Loren estão nos esperando novamente na sala de cinema, para viver um dia insólito, deslocado no tempo e no espaço, quando Hitler foi visitar Mussolini e toda a Itália resolveu saudá-lo. O destino então uniu, de novo, um homem e uma mulher. E o mundo foi só deles outra vez - com apenas duas ressalvas: Sophia Loren era também uma tremenda dona de casa, mãe de família, e Marcello Mastroianni... bem, melhor não contar. A naturalidade, a falta de jeito e o aparente despropósito, vividos a cada cena pelo casal, enchem justamente de beleza os olhos do espectador - tão acostumado à previsibilidade, ao encadeamento dos atos e à lógica das ações; qualquer subversão de uma existência tão racional se torna, portanto, divinamente elevatória. A platéia, já condicionada a perguntar "por quê", "para quê" e "como", pode de repente jogar todas as suas perguntas fora - e desarmar-se perante a vida que, segundo Clarice Lispector, dispensa todo entendimento. Se hoje o cinema brasileiro quer impor o "desconforto" pelo mal-estar social, e o cinema americano, o entretenimento por força de sua indústria milionária, o cinema europeu (de ontem) ainda pode abrir uma porta para o realismo mágico.
>>> Um Dia Muito Especial
 
>>> MAIS DIGESTIVO CULTURAL N'OPASQUIM21



(Se você não consegue ver a imagem acima, clique aqui.)

Sérgio Augusto, incansável incentivador deste site, cita mais uma vez o Digestivo Cultural, na seção "Tox", de OPasquim21 (edição número vinte e cinco, com data de 6 de agosto de 2002). Faz menção elogiosa ao Digestivo nš 92, de Julio Daio Borges, onde há um comentário sobre a eleição de Paulo Coelho para a Academia Brasileira de Letras. Leia Mais
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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