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Quarta-feira, 21/9/2011
Networking para crianças?
Raquel Oguri Ribeiro

Medo do motoboy, medo da babá, medo de torcedor. Somos especialistas em personificar a ameaça de violência em tipos de gente. Adoramos estigmatizar grupos. Até que um dia o mal aparece onde menos esperamos.

Meu horror apareceu em um belo dia de sol, na porta da escola. Ele tinha forma de uma mulher. Não uma mulher qualquer. Mas uma mulher muito loura, muito bem vestida, muito fina.

Enquanto eu esperava meu filho, encostada no portão, ela resolveu puxar assunto. Demonstrou-se indignada com a violência entre crianças que tem acontecido nas escolas, o que chamam de bulliyng.

Papo vai, papo vem, ela muda o rumo da conversa e pergunta para mim se eu conheço a escola tal, ali perto, porque pensa em matricular seu filho nela, no ano seguinte. Deduzi que o menino deveria ser vítima do bulliyng, pois era o assunto que estava em pauta. Para minha surpresa, o motivo era outro.

Ela estava em busca de uma escola onde seu filho tivesse um melhor networking. É isso mesmo que você ouviu: n-e-t-w-o-r-k-i-n-g. Uma rede de contatos.

Com uma pessoa que fala esse tipo de coisa, não podemos esperar muita profundidade ou sentido nas justificativas. Ela simplesmente disse que "networking hoje em dia é tudo". Desde então, essa palavrinha em inglês não saiu mais da minha cabeça.

Vejo como um grande mal o tão almejado networking da mulher muito loura, muito bem vestida, muito fina. E pior: temo ser um vírus diabólico em processo de mutação. Está prestes a virar senso comum.

É preciso que se entenda que raios significa networking. Só assim posso convencer alguém a jamais usar essa palavra quando se referir a uma criança.

Pra começar, networking se refere ao mundo profissional. É a gestão de nossos contatos de olho em uma boa vaga no mercado de trabalho. Como os envolvidos estão preocupados com outras palavras em inglês como feedback, headhunter e coaching, não há espaço para palavras como essência, coração e amizade.

No mundo do networking, ninguém está preocupado se você se desdobra para ser uma boa mãe ou se trata sua empregada com o mesmo respeito que trata o seu diretor.

Nas redes de contato de trabalho, a gente não precisa se envolver a esse ponto. Justamente porque o networking não é sinônimo de rede de amigos. Na definição realista e bem humorada de um dos maiores sites de vagas de empregos: "networking, basicamente, é fingir que você não quer emprego quando está louco para conseguir um".

Sabendo que o networking é essa importante ciência, eu me pergunto: como alguém pode acreditar que a melhor escola é a que oferece melhor networking para uma criança? Como será que se avalia essa rede no mundo infantil?

Imagino uma pesquisa de mercado na porta das escolas, para medição da posição social dos alunos. Uma minuciosa avaliação do emprego ou ocupação dos pais deve ser feita, para se concluir qual escola oferece a rede ideal para seu filho.

Em posse de toda essa análise mercadológica, imagino um terrível dilema no processo de decisão desses pais. Como definir o networking ideal para meu filho? Será que escolho a escola com maior número de crianças herdeiras de um grande negócio? Ou devo escolher aquela com maior percentual de filhos de CEOs?

Falar de networking na infância é uma atrocidade. A infância é feita de amigos, não de "contatos". Se por acaso esses amigos se transformarem em futuros contatos de trabalho, ótimo para seu filho. Mas, por favor, não vamos contar com isso desde cedo, na primeira infância. Não podemos achar natural desenvolver um plano de carreira para uma criança de dois anos.

Será que estou errada em idealizar que nossos filhos montem suas redes de contato só quando começarem a viver seu próprio mundo profissional? Que iniciem futuros laços de trabalho a partir da sua vida universitária?

Espero que o meu filho, assim como o seu, não veja seus contatos como se fossem peças do jogo chamado carreira. Que saibam que o verdadeiro valor está nas pessoas. Não nos contatos.

Fico estarrecida quando vejo pais que, mesmo sem poder, não abrem mão de colocar a filha na escola mais cara de balé da cidade ou de comprar um título de clube super elitizado, com a intenção clara de adquirir um círculo de amigos de ouro para sua prole. Acreditam que assim estarão garantindo um futuro de sucesso para o seu pequeno.

Alguns pais, para justificar esses atos, no mínimo insensatos, usam a desculpa de se preocupar com as amizades do filho. No fundo, sabem que a verdade pode pegar mal: que consideram melhores amigos para seus filhos aqueles mais próximos do topo da pirâmide social.

Criar um ser inocente sob esse manto, dentro de conceitos distorcidos como esse, é praticar bulliyng contra seu próprio filho. É um massacre cruel, sem direito a defesa. É plantar uma semente podre dentro da mente de uma criança.

Sou como menino que apanha. A mulher muito loura, muito bem vestida, muito fina... é meu algoz.

Nota do Editor
Raquel Oguri Ribeiro é autora do blog Manual de Sobrevivência em São Paulo. Leia também "Legado para minha filha" e "Ninho vazio".

Raquel Oguri Ribeiro
São Paulo, 21/9/2011

 

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