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Quarta-feira, 29/1/2014
40
Julio Daio Borges


Meu aniversário de 39 anos: o primeiro sem a Mamãe

* Paulo Francis escreveu que "a vida não começa aos 40" ― "começa a acabar", corrigindo um slogan de propaganda, se não me engano. Quando fiz 30 anos, confesso que não senti muita diferença (dos 20). Até pensei em escrever sobre, mas, se não tinha mudado tanta coisa, pra quê? Já dos 30 para os 40, senti diferença. Não, subitamente, quando fiz 40 ― porque aí seria psicológico ―, mas no processo. Como disse um amigo, tive minha crise de meia-idade antes. Ele teve a dele com 35: "Fui ao psiquiatra, fiquei deprimido, tomei remédio black label". Já eu tive em algum momento da década dos 30, mas só fui assumir no ano passado, quando aconteceu tudo com a Mamãe (quem leu, sabe do que estou falando). Em 2013, pensei: "Se não ficar triste agora, quando?". Abandonei meu otimismo congênito e fui andar de braços dados com a realidade. Portanto, acho que fazer 40 anos é, primeiro, assimilar a realidade da morte (que, na juventude, é uma abstração). Depois, como consequência, reconhecer as próprias limitações. "É papo de velho", disse meu irmão outro dia. Pode até ser, mas é preciso fazer ajustes. A máquina não é mais a mesma. Se você continuar exigindo dela a mesma coisa que na década dos 20 ou dos 30, vai ter problemas. Montaigne consagrou a frase célebre: "Filosofar é aprender a morrer". Entendo isso como o reconhecimento da nossa maior limitação, aprendendo a lidar com ela. É natural, aos 40 anos, ficar "pensativo". Minha ideia, aqui, seria reconhecer primeiramente a idade. Falar sobre o que sinto que mudou com ela. Depois, como estou lidando com este "novo" momento. Espero que não soe como papo de velho ;-)


"Se Tom Jobim morreu, eu também posso morrer..."

* Depois do que aconteceu com a Mamãe no ano passado, perdi o medo de morrer. Na biografia que a irmã do Tom Jobim escreveu, ela diz que ele anunciou, quando estava indo para Nova York, para o hospital (tratar de um câncer no fígado): "Se Villa-Lobos morreu, eu também posso morrer. Se Ary Barroso morreu, eu também posso morrer". E morreu... Claro que eu não posso morrer agora. Tem toda uma parte logística. Sou o pai da Catarina e ela precisa de mim por longos anos ainda (ainda bem!). Mas, filosoficamente falando, eu posso dizer que "se a minha mãe morreu, eu também posso morrer". Não tenho mais nenhuma questão com a morte, se é que me entendem. Minha mãe passou por isso ― me é familiar; não me é estranho. Verdade que me senti poucas vezes assim na vida, em raros momentos. Em 1984, há 30 anos, quando fui fazer minha primeira comunhão, estava tão espiritualmente envolvido que sentia que poderia morrer a qualquer momento. Não me perturbava o pensamento. Eu acreditava no céu piamente. Poderia morrer, pois tinha certeza de que estaria nele... Mas não durou para sempre. Aos 13 anos, fiquei muito impressionado com a morte do Drummond e não me conformava que, depois da nossa morte, o mundo continuava sem a gente. E tive a consciência do vazio. Uma visão bem materialista... Agora não acredito, exatamente, em céu. Mas sinto que posso ir para onde está a minha mãe, ou para onde ela foi. Quer dizer, não tenho medo do processo. Antes, a finitude me apavorava. Aos 40 anos, parece que assimilei. Espero que dure.


O equilíbrio frágil do sono, num quadro de Salvador Dalí

* Depois da morte, o sono. De alguns anos pra cá, meu sono nunca mais foi o mesmo. E acho que é um "marco" dos 40 anos. A tendência geral é relacionar a interrupção do sono aos filhos. Ter de acordar à noite etc. Mas acho que seria uma injustiça com a Catarina. Então vou abordar a questão por outro ângulo. Tenho um tio que diz que o sono é como um relógio, que "quebra", a partir de uma certa idade. De repente, aquele mecanismo que funcionava tão bem ― deixando você disposto durante o dia e dormindo, profundamente, ao longo da noite ― pifa. Você acorda no meio da noite, sem motivo. "Lúcido", como dizia a Mamãe. E não dorme imediatamente. Ou fica horas. Às vezes, resolve até fazer alguma coisa ― como pegar um livro para ler (coisa que eu já fiz). E se você não dormiu direito à noite. fica "com sono" ao longo do dia. Aí toma café. E, quanto mais café, menos dorme à noite. (E precisa de mais café no dia seguinte.) Voilà, o mecanismo se desregulou. Ao contrário das galinhas ― que dormem, naturalmente, quando o sol se põe (e do galo, que canta com os primeiros raios de sol) ―, você se vê tendo de interferir no processo, a fim de que seu corpo tenha o sono de que necessita, na profundidade em que necessita, e em horários razoáveis. Mesmo assim ― mesmo interferindo, quimicamente, no processo ―, o sono nunca mais é o mesmo. Ultimamente, voltei a fazer esporte e tento regular o sono reestabelecendo o ritmo do corpo. Tentando acordar cedo, fazendo atividade física, para ter disposição, para ter sono "cedo" e para dormir, mais profundamente, tendo estimulado o funcionamento da máquina. Meu sono voltará a ser a mesma coisa? Mesmo que volte, agora eu preciso do esporte.


F. Scott Fitzgerald e "a quebra"

* Não dormir "como antes" causa uma angústia, meio difusa, que eu só fui perceber anos depois. E um cansaço "de fundo". Acontece que o corpo é o ponto de partida para a mente. Se o corpo está cansado, mesmo que minimamente, e se esse cansaço se acumula... a tal angústia se converte em estado de espírito. Pode ser o início de uma depressão. Sem a mesma energia, o corpo e a mente não conseguem realizar a mesma quantidade de tarefas. No médio prazo, vem uma sensação de que não se dá conta da vida (não mais "como antes"). Tem um lado positivo nisso. Uma pessoa de 40 anos nunca vai competir com uma de 20, em matéria de vitalidade. Mas talvez por isso mesmo, aprende a ser uma pessoa mais seletiva. Como a energia não é mais infinita ― é restrita ―, tem de ser direcionada para o que realmente vale a pena. Soa como um grande clichê de livro de autoajuda. Foco etc. Mas é a vida real. F. Scott Fitzgerald escreveu sobre insônia e depressão em The Crack-Up. Tem um frase, citada por Cioran, onde diz: "Na longa noite da alma, são sempre três da manhã". Não por acaso, Fitzgerald fala muito de se sentir assim... aos 39 anos? Fala, ainda, de uma "preguiça" que começava ao escovar os dentes, pela manhã, e que se arrastava até o jantar com um amigo. Meu antídoto talvez seja a Catarina. Pessoas que não tem filhos morrem mais cedo, "aponta estudo". Uma criança não restitui a nossa vitalidade, mas nos inspira. Ou, no mínimo, nos obriga a correr atrás dela. A treinar nossos reflexos. Também a responder perguntas sobre coisas a respeito das quais não nos questionávamos há anos. Esporte, novamente, ajuda. Se o corpo não funciona, exatamente, como antes, aos 40 ainda pode "pegar no tranco" ;-)


Olaf Breuning | "O estômago é nosso segundo cérebro"

* Mas a diferença maior eu senti no estômago. Em 1999, quando trabalhava no banco, sempre me rendia a uma coca-cola, no meio da tarde. De repente, tive um mal-estar, fui a um gastro e descobri que tinha refluxo. O médico queria me operar mas, graças à Carol, eu parei de tomar refrigerante cinco anos depois (resolveu durante um bom tempo). Antes disso, parei de comer tomate seco depois de outro mal-estar regado a polpettone no Jardim de Napoli (abandonei o suco de tomate pela mesma razão). Ficar sem refrigerante foi relativamente fácil, mas ficar sem cafeína, não. Troquei a coca-cola pelo cafezinho, no início sem perceber. E, de uns tempos pra cá, me convenci de que tenho de me livrar dele também, ou diminuir bastante (sem mencionar o item anterior, "sono"). Meu estômago me prega peças. Ou meu aparelho digestivo inteiro. Digestivo? Freud explica. Descobri, há poucos anos, que tenho uma pedra na vesícula, e ela reclama se ingiro (este verbo existe) muita gordura. Logo eu, que gosto tanto de pizza... Carne crua não tem me caído bem, principalmente à noite. A Carol é vegetariana e eu fico me perguntando se não é por que, desde que estou com ela, reduzi substancialmente meu consumo de carne vermelha (quando ingiro, meu corpo, desacostumado, reclama). O refluxo ― assim me disseram ― já me brindou com dores no peito, e uma certa falta de ar, palpitações, suadeira... a ponto de eu pensar que estava enfartando. "Seu órgão de choque é o estômago", me explicou o cardiologista ("e, não: você não estava enfartando"). Omeprazol, sempre. E, apesar de prestar atenção, cada vez mais, na dieta: antigases. E Buscopan. Dizem que remédio é coisa de velho. Será mesmo? ;-)


Edmund Wilson: pai do "jobbism"

* Todas essas mudanças, ou experiências, impactaram na minha filosofia de vida, digamos assim. Reconheço, por exemplo, que certo idealismo morreu. "Mudar o mundo", por exemplo, é uma frase de grande efeito, mas, hoje, percebo que mudar o mundo "ao redor" é o que está, verdadeiramente, ao alcance de cada ser humano. Se dedicar à família, cultivar amizades, desenvolver um trabalho de valor, retribuir à sociedade as oportunidades. Daniel Piza, perfilando Paulo Francis, usa uma expressão de Edmund Wilson: "jobbism". Que significa fazer seu trabalho do melhor jeito possível, sem grandes ilusões, e sem esperar grandes recompensas, pelo velho prazer de fazer, e porque é importante. Outra conclusão, dos 40, é que não existe "o melhor momento". Churchill dizia que há mérito em fazer o melhor que se consegue, mas, às vezes, é preciso fazer "o que é necessário". Quando temos 20, ou até 30, ficamos imaginando "qual é a melhor hora". Inexperiência? Insegurança? Eu diria que ter a própria família, igualmente, cria um "senso de dever". Você assume um papel e se não souber desempenhá-lo, toda a família será prejudicada. Outras pessoas dependem de você. Logo, não fique pensando muito: vá fazendo. Você tem mais capacidade do que, inicialmente, percebe. Etc. A gente troca o heroísmo das grandes batalhas, que é sublime, pelo heroísmo de ser pai ou mãe de família, que é um ato de amor. Já é uma grande missão, pense: trabalhar em algo que gere valor; constituir uma nova família; cuidar da família que já existe; estar presente na vida dos amigos; ser relevante na própria comunidade. Quanto tiver grandes arroubos, lembre de tudo isso. É muito.


Hemingway: "primeiro e único"

* Com a morte do idealismo, ficamos mais tolerantes com os erros dos outros e com os outros de um modo geral. Ultimamente me reaproximei de pessoas que haviam falhado comigo, por exemplo. O que é uma falha perto de toda uma história de convivência? Às vezes a confiança não é mais a mesma, mas, se ainda há algo a acrescentar, por quê não? Quando eu era jovem, minha tolerância era zero, ou quase zero. E eu me afastei de muita gente por motivos que ― com o tempo ― passei a relativizar. As pessoas não são perfeitas. Nós também não somos. Por que exigir delas o que nem nós podemos? Lembro que, durante a Flip de 2006, Lilian Ross definiu Hemingway assim: "He was one of a kind". Mais ou menos como dizemos, em português, que, "depois que ele nasceu, Deus quebrou a forma". Philip Gourevitch, que representava a revista New Yorker na atualidade, comentou: "O mundo não é mais tão monolítico". Ou seja: não existe mais o velho consenso, quase universal, sobre pessoas, coisas, acontecimentos. A unânimidade ― se é que ela um dia existiu ― tornou-se cada vez mais escassa. Tratar as questões "em bloco" (uma tradução para "monolítico"?) não tem mais justificativa. Perdemos sempre alguma coisa no caminho... E é essa a minha sensação com as pessoas. Quando eu era jovem, e descartava quem, aparentemente, não me servia, por um motivo questionável, estava sendo "monolítico". Hoje reconsidero. Existem pessoas e pessoas. Não precisamos morrer de amores por todo mundo. Mas é justo abrir mão da convivência por um desentendimento que muda de tamanho com o tempo? Precisamos de todas as pessoas. Até das más. Para descobrir o que não queremos. (Outro clichê, eu sei; mas vale...)


Nossos "vários" cérebros

* Em 2013, às vésperas dos 40 anos, aprendi a ser humilde. O acidente da Mamãe me revelou que não controlamos tudo. Que temos apenas uma "ilusão de controle". Os gregos chamavam isso de destino. Hoje dizemos que "destino... é a gente que faz". Acredito até certo ponto. Aprendi a reconhecer que existem outras esferas às quais não temos acesso. Chame de espiritualidade, se quiser, apesar de que nenhuma religião me satisfaz 100%. Filosofias de vida, talvez. Budismo? Mesmo dentro de nós... Schopenhauer chamava de "vontade". Freud chamou de "inconsciente". Neurocientistas falam em "cérebro límbico". Algo de animal, algo de primitivo, que permanece. Apesar do "neocórtex", que se desenvolveu depois, e que criou a nossa civilização. "O homem é um animal", a Mamãe dizia. E tinha razão. Essa parcela irredutível, que Freud chamou de "id", às vezes assume o controle. Daí, as guerras, a violência. É a "explicação" para uma nação civilizadíssima, como a alemã, sucumbir ao nazismo. Claro: não vamos nos entregar à barbárie. Sou partidário da civilização. Mas reconheço que ela não é suficiente. Porque nada é. Schopenhauer dizia que o destino embaralha as cartas ― para a gente jogar. É uma bela metáfora... 2013, também, foi o ano em que pedi ajuda. Reconheci: não sei, não conheço, não posso, não estou conseguindo. Alguém pode me ajudar? Alguém conhece algum caminho? Pedir ajuda não é uma derrota. Nem um fracasso. Às vezes, é uma saída. Às vezes, um alívio. Uma nova chance? Uma nova oportunidade.


Correndo com 30

* Não conheço nenhuma máquina do tempo e nenhuma fonte da eterna juventude. Mas, aos 40 anos, descobri duas coisas que são vitais para mim. Para o meu equilíbrio. E para que eu possa "funcionar" como homem, como pai, como editor, como amigo. A primeira é correr. Falei de exercício físico aqui; estava falando, nas entrelinhas, de corrida. Depois de anos de sedentarismo, a Carol me convenceu a fazer academia. E me ensinou a correr, também. Há uma década, mais ou menos. Casamos, a Catarina nasceu e eu nunca mais retomei. Até o ano passado. No dia em que a Mamãe se acidentou, eu voltava a caminhar. Parei de novo. Retornei só no final de 2013. Estou, felizmente, correndo outra vez. Não quero convencer ninguém a correr. (Eu sei que é inútil.) Mas talvez eu consiga estimular alguém a começar (ou a retomar) uma atividade física qualquer. Depois de correr alguns quilômetros, eu me sinto com 17 anos de novo. 1991 foi o melhor ano da minha vida. Conheci a Carol. Fiz alguns dos meus melhores amigos. Passei no vestibular. Comecei um diário. Descobri que podia escrever... É uma sensação que a corrida me proporciona. Ou melhor: é uma sensação que meu corpo me proporciona. Nenhuma droga. Nenhum estimulante. Nenhuma coisa. Nenhuma pessoa. Eu mesmo. Quando você descobre algo assim, é natural que queira compartilhar com os outros. É o que estou fazendo aqui... Nem terapia. Nem medicina. Nem religião. Mas seu corpo. Está dentro de você.


Catarina aprendendo a escrever o próprio nome

* A segunda coisa é, obviamente, escrever. Pode parecer estranho, mas passei os últimos tempos escrevendo menos. Descrente? Felizmente, descobri que é importante para a minha subjetividade. "O artista é uma subjetividade que transborda", escrevi no Twitter. E é assim que eu me sinto: não como artista, mas como uma subjetividade transbordante. Preciso despejar no papel. Senão meu equilíbrio emocional não é mais o mesmo. É como o equilíbrio físico para o corpo. Nélson Rodrigues dizia que o ideal de todo escritor é escrever e jogar fora. Queimar. Ele queria dizer que escrever bastava. O mundo não precisava conhecer: estava escrito. Para o escritor, era suficiente... Para mim, é uma forma de existir. Há o Julio pai, o Julio marido, o Julio filho, o Julio irmão, o Julio amigo. E há o Julio que escreve. Todos têm uma existência independente, ainda que interligada, mas um nunca substitui o outro... Como disse, comecei a despejar minha subjetividade no papel aos 17 anos. E logo percebi que poderia usar aquilo para alguma coisa. Útil? Escrevi diários durante toda a faculdade. Quando me formei, comecei a publicar na internet. Não parei mais. Não posso mais parar ― essa é que é a verdade. Como uma glândula, que secreta uma substância ― preciso colocar pra fora. Cioran dizia que não gostava de conversar com escritores, "porque eles são vazios". É como me sinto, quando termino. "Nunca sei o que penso de uma coisa ― até que escrevo sobre ela", Paulo Francis, mais uma vez. Não estou apregoando que todo mundo deveria escrever. (Pelo amor de Deus.) Mas seria interessante descobrir como usar a sua subjetividade. (Pense.) Ah, e escrever melhora com o tempo. Muitos escritores tiveram o seu auge no fim da vida. Finalmente, uma vantagem de ser velho... E de fazer 40 ;-)

Julio Daio Borges
São Paulo, 29/1/2014

 

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