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Terça-feira, 4/4/2023
Seis vezes Caetano Veloso, por Tom Cardoso
Jardel Dias Cavalcanti


Dois sonhos do jovem Caetano foram para o buraco. Primeiro, ser pintor: “A pintura fora deixada de lado por eu então considerar melancólica a alternativa entre fazer coisas para burgueses pendurarem na parede ou fazer coisas que ninguém pudesse pendurar em lugar nenhum”. Segundo, ser cineasta: a dificuldade em levantar financiamento e o trato com pessoas variadas o impediram de investir na carreira. E também, claro, a falta de domínio técnico sobre a arte de filmar. O resultado da tentativa de retomar um velho desejo, já adulto, fora o fiasco do seu único filme: Cinema Falado. Melhor assim, pois mesmo se sentindo um músico mediano, tornou-se o lendário Caetano Veloso que hoje conhecemos.

Esse poderia ser o resumo de sua vida, no entanto... A vida do mais polêmico músico de nossa MPB não se resume às suas belas canções. Para entrar um pouco nesse redemoinho de conflitos existenciais, estéticos, políticos, amorosos temos o livro Outras Palavras, Seis Vezes Caetano, do jornalista Tom Cardoso, publicado pela Record em 2022.

O livro é dividido em seis capítulos, contendo ainda anotada toda a discografia do cantor e um conjunto de 23 fotos. Cada capítulo aprofunda um tema da vida de Caetano, algumas vezes cruzando dados de outros capítulos que complementam um acontecimento ou outro.

Não é um livro preocupado somente com a carreira musical do cantor ou com o significado artístico de sua obra. Como Caetano é uma personalidade explosiva dentro do contexto da cultura popular brasileira, é pelo viés dessa personalidade que Tom Cardoso apresenta seu percurso, sem querer fazer uma “biografia” condescendente do retratado. Ao contrário, pretende entrar no torvelinho de sua existência marcada por polêmicas sejam elas de natureza moral, política, estética ou afetiva.

Caetano nasceu em Santo Amaro da Purificação, que mesmo sendo uma pequena cidade deu ao cantor a oportunidade de conhecer a música popular brasileira através do rádio e do ambiente familiar, como também o cinema europeu, brasileiro e hollywoodiano. Ainda morando em Santo Amaro, segundo o próprio registra, descobriu o sexo genital, viu La Strada, de Fellini, leu Clarice Lispector e, o que mudou sua vida, ouviu João Gilberto. Estava fermentada a alma do artista que se tornaria ao longo de sua vida um dos mais férteis e polêmicos criadores de nossa MPB.

O primeiro capítulo do livro trata do amadurecimento do cantor, sua relação com a família, sua ida para Salvador e seu contato com uma cultura mais ampla na capital, o nascimento da amizade com Gal Costa e o início de seu relacionamento “aberto” com Dedé Gadelha e sua relação muito próxima com a irmã Maria Bethânia, descoberta nessa época ao substituir Nara Leão no show Opinião.

O segundo capítulo, denominado “O Polêmico” apresenta a natureza sempre polêmica de Caetano e seu confronto através de jornais com personalidades intelectuais ou das artes. Entre elas a polêmica com o teórico José Guilherme Merquior, que o chamava de “pseudointelectual de miolo mole” e o acusava de que querer invadir a área do pensamento, reservada aos intelectuais e não aos artistas populares.

A briga também com Paulo Francis e os membros do Pasquim, que Caetano acusava de serem preconceituosos, primeiro por adorarem Chico Buarque, branco de olhos verdes, nascido na zona sul e recusarem as posturas do baiano.

O Pasquim era na sua visão “ipanêmico” demais para aceitar os nordestinos. E Glauber Rocha o avisou sobre Paulo Francis “e o pior de todos, Millôr Fernandes”. Para o Pasquim havia uma invasão da “máfia do dendê” no Rio, músicos que eram chamados por Millôr de “baihunos” (mistura de baianos e hunos, os bárbaros invasores). A Caetano se juntavam, na visão do Pasquim, os outros bárbaros: Gil, Gal, Bethânia, Capinan, Tom Zé.

Outra polêmica tratada nesse capítulo é a insatisfação da esquerda em relação à ausência de militância de Caetano nas suas composições, o que era diferente em relação a Chico, que parecia encarnar, para os esquerdistas, o porta-voz de sua ideologia.

Os capítulos “O líder” e “O Vanguardista” relatam o aparecimento do Tropicalismo, os discos experimentais, a ausência de sucesso de público com essas experiências e o momento em que Caetano se torna líder de uma revolução cultural na MPB ― inclusive sendo contra a participação do amigo Gil na passeata contra a guitarra elétrica.

Também narra seu contato com o poeta Duda Machado e o momento que conhece o filme de Glauber, Terra em Transe, “catalisador de uma série de coisas que estavam no ar para mim”, disse Caetano sobre a importância do filme para sua maturidade artística.

Desde sua atitude polêmica nos palcos se travestindo (o que o identificava como homossexual pelos detratores e pervertido pela censura da ditadura) até as construções arrojadas e experimentais com a música, que não tinham nada a ver com seu comportamento “puritano” em relação ao uso de drogas... Caetano jamais gostou de maconha, cocaína ou álcool, embora tenha experimentado Ayuasca.

A vida afetiva também, por vezes, turbulenta com sua esposa Paula Lavigne é narrada como um momento importante na trajetória profissional de Caetano. Sob a proteção empresarial de Paula, Caetano tornou-se milionário. O encontro dos dois, ele com 40 anos e ela com 13, o namoro secreto e depois o casamento deram o que falar. Olavo de Carvalho, posteriormente, chegou a chamá-lo de pedófilo, sendo processado pelo cantor por isso.

O último capítulo, denominado “O político: podres poderes”, traça os acontecimentos que o tornaram um partícipe dos vários momentos da política brasileira. O entrelaçamento da carreira musical de Caetano com a política chama a atenção para quem desconhece os fatos. Apoios e arrependimentos a políticos de esquerda, de centro e de direita traduzem posicionamentos arriscados, que receberam críticas (as mesmas rebatidas por Caetano), mas que mostram o poder que sua popularidade como artista alcançou.

Jamais filiado a partidos políticos ou ideologias, sempre acreditou que sua arte era mais importante que a política. Nunca transformou sua música em panfleto de facções ideológicas. A arte fica, a política passa, ele sabia.

No entanto, não se furtou à aproximação e aos apelos de políticos. Desde o controverso apoio e defesa de Antônio Carlos Magalhães (ACM era também queridinho de Gal Costa, Gil, de sua mãe, dona Canô, e de sua irmã Maria Bethânia), ao apoio de Collor, FHC, Ciro Gomes e, finalmente, a Lula, no momento decisivo do seu embate contra as forças fascistóides de Bolsonaro.

Convertido ao liberalismo, sob a batuta de Mangabeira Unger, mestre de Ciro Gomes, que Caetano sempre apoiou, também flertou com Olavo de Carvalho, mas finalmente se decepcionou com o liberalismo depois do contato com o militante do PCB Jones Manoel da Silva, com quem trocou ideias.

No caso do governador ACM, justifica-se a devoção a ele pelos artistas baianos em razão do mecenato estatal proporcionado à cultura da Bahia. Jorge Amado, Caymmi, Caribé e Mário Cravo, entre outros o adoravam. Com Maria Bethânia e Gal o afeto recíproco não tinha tamanho.

Caetano chegou a ser cobrado ― junto com todos os artistas baianos ― por Décio Pignatari no momento das “Diretas Já” por não participarem do movimento de redemocratização: “E os baianos, hein? Não estou entendendo[...] Só os murais da fama?[...] Amados, Caymmis, Gantois, Carybés, Cravos, Gilbertos, Bethânia, Caês, Gals, Gils, Simones e Martas só servem para correr atrás do trio elétrico?”.

A cobrança desagradou Caetano, principalmente por ser admirador dos poetas do movimento concreto. Décio Pignatari via na não adesão de Caetano e dos baianos às “Diretas Já” o fato do movimento estar relacionado ao PMDB, “partido de oposição à ditadura, sob o risco de desagradar ao mais poderoso político da Bahia e um dos sustentáculos regionais do regime militar: Antônio Carlos Magalhães”.

Tom Cardoso aprofunda bastante essa relação do músico com a política, não cabendo aqui nesta resenha esse aprofundamento, mas creio que esse é um dos capítulos mais interessantes do livro. Vale, por si, a leitura do mesmo.

O público que não acompanha a carreira de Caetano vai se entusiasmar com as descobertas que fará lendo o livro, desde a satisfação de uma curiosidade sobre uma letra de música endereçada a uma musa, até sua relação afetiva com a família, sua irmandade com Gil, seus casos amorosos (Regina Casé, Sônia Braga etc.), a oposição Chico-Caetano criada ela mídia (será?), a guerra com a imprensa. E não para por aí... Então, leitor, lhe resta ir atrás do livro para descobrir mais sobre nosso ídolo da MPB.

Tom Cardoso já publicou outras biografias, todas muito interessantes, entre elas destaco as sobre Nara Leão, Sócrates e Tarso de Castro. Sua capacidade de narrar o entrecruzamento de fatos da vida e a emoção que envolve os acontecimentos faz da leitura dessas obras um momento de grande prazer. Aproveitem.

Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 4/4/2023

 

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