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Sexta-feira, 17/11/2023
Sim, Thomas Bernhard
Ronald Polito

Cáusticos, desesperados, cruéis, céticos, niilistas, assim são os personagens do escritor austríaco Thomas Bernhard, autor obrigatório para quem se interessa pelos rumos da prosa contemporânea. Enfrentar os impasses da narrativa no ponto em que Beckett a largou é realmente um enorme problema para quem quer se aventurar a contar uma estória. Thomas Bernhard encontrou um caminho particular e prolífico que parece afirmar, num quase paradoxo, o contrário do que seus personagens vivem e professam.

Tendo vivido apenas 58 anos, Bernhard deixou obra extensa, o principal constituído, no campo da prosa, de romances, autobiografias e novelas, e, na dramaturgia, algumas dezenas de peças teatrais em que também encontramos uma saída singular para as dificuldades da encenação contemporânea.


Thomas Bernhard Nachlassverwaltung GmbH

Em língua portuguesa, pode-se afirmar que sua obra já se encontra amplamente disponível. No Brasil foram, até agora, publicados sete volumes da prosa, em que se destacam o fundamental romance Extinção e suas autobiografias dilacerantes reunidas em Origem (ambos pela Companhia das Letras). Outros textos de prosa saíram em Portugal. Algumas peças teatrais também se encontram traduzidas entre nós, como O presidente (Editora Unicamp), Praça dos heróis (Temporal) e O fazedor de teatro (Perspectiva). Para ir além na sua dramaturgia, contamos com edições portuguesas de A força do hábito, Simplesmente complicado, Minetti e No alvo (todas pela Cotovia).

Também imperdíveis são o volume Meus prêmios (Companhia das Letras, tradução de Sergio Tellaroli, 120 p.), reunindo os discursos de Bernhard nas cerimônias dos prêmios que recebeu, nos quais ele insulta o júri, as instituições e o público presente, e o volume Em conversa com Thomas Bernhard (Assírio & Alvim, Portugal), longa entrevista que ele concedeu a Kurt Hofmann, na qual ele aborda sua trajetória biográfica e literária e o contexto austríaco.

Pois bem. Acaba de ser publicada no Brasil a novela Sim (Companhia das Letras, tradução de Sergio Tellaroli), em que podemos revê-lo com sua metralhadora giratória em ação. A “técnica” da prosa e os alvos são praticamente os mesmos, o que não deixa de impressionar já que, aceitos o procedimento narrativo e suas “vítimas”, a cada texto de prosa se descortina algum tipo de acerto de contas com o passado austríaco e ocidental e com a própria possibilidade de ele ser narrado.

É preciso, então, considerar a “técnica” narrativa empregada. O procedimento de Bernhard é adotar um discurso “infinito”, um fluxo: quase todos os seus textos em prosa se constituem de um único parágrafo, forma com que ele confere à própria noção do parágrafo como exposição de um raciocínio a função de mimetizar as ideias fixas que estruturam o que será contado.

Cada romance ou novela, assim, se estrutura em torno de alguns poucos “fatos”, cuja cronologia é minuciosamente embaralhada, ou seja, vários passados e o presente referidos aos “fatos” vão permitindo ao leitor, como num caleidoscópio, ir montando a rede de significados que os articulam. Ou, numa outra imagem, é como se as diversas facetas de uma pedra preciosa muito lapidada se mostrassem ao leitor e que, ao final, revelassem suas trincas.

A esse procedimento ainda se soma um outro que produz a excelência da narrativa: é como o autor passa de um foco temático a outro, o que poderíamos caracterizar como “deslizamento”. Fazendo e refazendo a enunciação de uma circunstância consecutivamente, ele vai, nas melhores passagens, introduzindo de forma sub-reptícia traços de outra circunstância que lhe faculta tratar dela nos mesmos termos, ou seja, reescrevendo-a de vários modos. Adotando a mesma estratégia, ele de novo salta de circunstância, num círculo vicioso ou de fogo que lhe permite aprofundar, dinamizar e confrontar as poucas contingências que estruturam o relato.

Seria possível aventarmos analogias dessa forma de escrita com tendências das artes visuais pós-modernas que também operam com reiterações, repetições ao infinito. Mas talvez o paralelo mais notável seja com a música contemporânea que vai pelo mesmo caminho. Basta pensar em peças musicais de Steven Reich que jogam com microestruturas sonoras que, a cada vez, vão sendo levemente alteradas, torcidas. Aparentemente, estamos ouvindo uma música que se repete, mas isso é uma ilusão. As transformações mínimas ocultam, entre o início e fim da peça, um grande deslocamento rítmico e melódico. Parece-me possível, em parte, o paralelo com o procedimento de Bernhard: ao repetir os mesmos “fatos” de mil e um modos tenuemente distintos, ele vai somando o efeito deles para a culminância que suas últimas palavras no texto alcançam.

Por outro lado, contar e mesma estória de mil modos, numa tentativa desesperada (homóloga ao desespero dos personagens) de atingir o relato verdadeiro, a narração precisa e absoluta, testemunha o próprio fracasso do esforço, tanto mais pela predominância do narrador em primeira pessoa. Trata-se do oposto do narrador onisciente que já foi modelo no passado literário. Aqui, o narrador chega até ao inconfiável, e é óbvio que ele não está preocupado com isso, dada sua parcialidade radical. O máximo desespero é não conseguir encontrar as palavras capazes de materializá-lo ou qualquer outra coisa.

Diversos narradores de Bernhard comportam traços autobiográficos, como o interesse pela música (o autor estudou violino), o que também se observa na novela Sim, com a fixação nada casual do narrador por Schumann, que tentou matar-se e manifestou distúrbios mentais em seus últimos anos de vida. Mas esse texto me parece aquele que mais proximidade guarda com sua biografia: pelo fato de o personagem padecer de uma doença pulmonar (Bernhard lutou a vida toda com esse problema do qual veio a falecer) e pelo seu desejo contínuo de se matar (ideia que também perseguiu implacavelmente o autor, como nos diz em sua entrevista a Kurt Hofmann).

Como sempre, na novela também não se opera com uma narrativa sem lacunas ou que se assemelhe a um romance de formação (e aqui não custa relembrar o completo horror que um de seus narradores sente por Goethe). Isso porque, por um lado, só encontraríamos deformação, e, por outro, só temos acesso a certos fatos singulares que, da perspectiva do narrador, são decisivos para sua conformação psicológica e de pensamento.

Os elementos de Sim podem ser reduzidos a poucos traços: o narrador vai visitar um amigo corretor de imóveis porque se encontra em um estado crítico de depressão e vontade suicida, seu desespero desmedido o posiciona numa situação terminal. Lá, um casal, um suíço casado com uma persa, que havia comprado um terreno de seu amigo, chega na casa e, sem que haja explicação, o narrador se sente temporariamente salvo de seu estado ao conhecer a mulher.

O cenário da novela é uma região rural da Áustria, lá vivem o narrador, o amigo e é para onde o casal está se mudando. O contato com a persa se desdobra em alguns passeios que fazem pela floresta quando a mulher se dá a conhecer. O pano de fundo filosófico (em outras narrativas ele se acompanha também de textos filosóficos), é O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, de quem se irmana no pessimismo, na malignidade da vontade, na misantropia, além de se nutrir das reflexões do filósofo acerca do suicídio. Como se vê, são poucos os elementos factuais da narrativa. Mas esses poucos dados são explosivos em função do modo como o narrador os avalia. E cada um deles abre para um conjunto de aspectos que mapeiam uma biografia e uma história de época. E aqui é o momento de esmiuçarmos seus “alvos”.

Tal qual em suas outras narrativas, Sim reafirma o repúdio de Bernhard pela conformação política, religiosa, cultural e ideológica da Áustria, maior ainda em sua área rural, onde se atingem os píncaros do preconceito, da desconfiança, do xenofobismo (de suíços, persas ou quaisquer outros), do conservadorismo, do reacionarismo mesmo, político e moral, da ojeriza ao diferente. Contrastado com o cenário predominantemente urbano de suas outras narrativas, com a ignomínia da vida na cidade, Sim a suplementa e a ultrapassa. E vai além da náusea.

Assim ele configura seu país, com um passado ligado violentamente ao nazismo, ao qual aderiu em primeira mão, mesclado com um cristianismo católico dos mais tradicionais. O somatório de catolicismo e totalitarismo político de direita marca o país como uma chaga, não apenas até o falecimento do autor, mas ainda hoje. O repúdio entre raças, o reacionarismo moral e cultural, os avanços mundiais da ultradireita tornam dolorosamente atuais Sim e seus outros livros.

Rodeado de seres humanos da pior espécie, o narrador desesperançado, contudo, mesmo assim consegue ser surpreendido em sua trajetória suicida, confrontado com a persa, que lhe revela um limbo existencial ainda mais tenebroso, mais monstruoso, quando um nada maior suplanta o nada anterior. O suprassumo do colapso dessa relação entre os dois é o arco que vai de um enorme interesse de um pelo outro no início à completa repulsa no final.

O título da novela, contudo, durante todo o percurso, é intrigante, já que nada o esclarece no que é contado. Mas “sim” é a última palavra da narrativa e, pensando-a retroativamente, ela ilumina com precisão o sentido que se pretende. Uma iluminação que é, antes, a escuridão total, num oximoro. Dizer mais seria entregar a chave do texto.


Outros títulos de Thomas Bernhard em português: Perturbação (Relógio d’Água, Portugal), Betão (Minotauro, Portugal), Derrubar árvores: uma irritação (Todavia), O náufrago, O imitador de vozes, Mestres antigos (os três pela Companhia das Letras), O sobrinho de Wittgenstein (Rocco) e Andar (Editora Brasileira de Arte e Cultura).

Nota do Editor
Leia também "O náufrago, de Thomas Bernhard", "Niilismo e iconoclastia em Thomas Bernhard", "Sobre a vida no campo" e "De una catástrofe a otra".

Ronald Polito
Juiz de Fora, 17/11/2023

 

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