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Quarta-feira, 6/2/2013
Luis Salvatore
Diogo Salles

Gregory Berns estudou a mente iconoclasta em seu livro O iconoclasta e definiu que eles possuem três características fundamentais: uma percepção diferente sobre as coisas; a ausência do medo em fracassar; e, por último, ter "inteligência social". Luis Salvatore pode ser considerado um iconoclasta. Primeiro porque não teve medo de abandonar seu confortável emprego em escritório (e uma possível carreira), para correr atrás de seu sonho. Segundo porque o sonho de Luis era cair na estrada e descobrir seu país, o que lhe proporcionou enxergá-lo de uma maneira única. Mas, entre os três itens, Luis se destacou mesmo na "inteligência social", pois soube encontrar os tais "conectores" ― definidos por Berns como as pessoas que levam a mensagem adiante ―, permitindo a cada um expandir seu próprio conceito a partir do dele. A primeira conectora, que compartilhou dessa mesma visão e embarcou no sonho desde o início foi sua irmã, Ana Elisa. Não surpreende que uma enorme lista de conectores tenha se espalhado pelas mais variadas áreas de atuação. Médicos, advogados, professores, empresários, músicos, artistas. Todos se tornaram voluntários e encontraram no Instituto Brasil Solidário uma forma de ampliar horizontes e trabalhar numa grande causa pelo país, ajudando a transformar o IBS em referência no terceiro setor.

Mas antes que esse olhar iconoclasta para o Brasil fosse lançado de fato, ele foi estudado através das lentes de uma máquina fotográfica, fruto de uma herança familiar. Luis e Ana são netos de Eduardo Salvatore (1914-2006), um dos membros fundadores do Foto Clube Bandeirantes em 1939, uma vertente experimental (iconoclasta?) na fotografia. Por dez anos, os irmãos Salvatore produziram um verdadeiro ensaio fotográfico sobre o Brasil, em mais de 200 mil imagens. Uma pequena parte desse imenso acervo ganhou as livrarias ― primeiro com O Brasil na visão do brasileiro (2004), e mais recentemente com Caminhos de um Brasil Solidário (2010, Melhoramentos). Depois dessa primeira década de trabalhos sociais, Luis e Ana resolveram voltar no tempo e contar como tudo começou. E foi dos primeiros registros em vídeo que saiu o documentário Em Busca dos Brasileiros ― Registros da Expedição Trilha Brasil. Lançado em novembro de 2010, o filme revisa a Expedição Trilha Brasil, que percorreu o país durante oito meses do ano de 2000 tendo como gancho os 500 anos do descobrimento. Começava ali uma longa história de identificação e resgate cultural de seu país.

Nesta Entrevista, Luis fala de como se deu essa guinada em sua vida, do início difícil para quem começou do zero como empreendedor, das evoluções do IBS ao longo dos anos, das dificuldades de lidar com as distorções das leis de incentivo e com a burocracia no setor público, deixando uma reflexão: "Não precisa querer mudar o mundo, mude suas atitudes diárias. Isso já é um grande passo".

1. Luis, para começar, voltemos ao ano 2000, quando você descobriu o Brasil profundo ao lado da sua irmã Ana Elisa. Recentemente foi lançado o documentário Em Busca dos Brasileiros, que mostra a gênese de todo o trabalho de vocês numa cruzada pelo país. Depois de um ano de planejamento, qual era o real sentimento antes de cair na estrada? Vocês sentiam que algo mudaria em suas vidas ou o espírito foi mais de aventureiros sem destino? Qual foi o grau de influência do seu avô Eduardo Salvatore nessa empreitada e quanto pesou o fato de você ter descoberto ser diabético aos 20 anos?

Tudo aconteceu de uma maneira muito peculiar. Foi um momento da minha vida em que estava disposto a tudo e, na minha cabeça, não tinha nada a perder. Como costumo dizer, a descoberta do diabetes foi apenas a faísca em um barril de pólvora que estava dentro de mim havia três anos. Quando eu trabalhava na Pepsico, meu chefe José Talarico disse uma coisa para mim: "saiba realmente o que você quer, corra atrás. Se fizer isso, o céu será sempre o seu limite". Isso aconteceu num momento em que eu vivia em conflito dentro da empresa, pois estava no departamento jurídico, mas corria o tempo todo para a área de marketing, e isso estava desagradando algumas pessoas lá dentro. Vivia um conflito interno, já sabia que não queria seguir a advocacia, mas entendia que poderia "migrar" de área. Mas ai houve o balde de água fria. "Quer ser publicitário? Então faça a faculdade e volte depois com o novo currículo" ― foi uma das respostas que tive na época. Pois larguei o emprego, não fiz a faculdade e segui o meu instinto puro: a vontade de conhecer e mostrar o Brasil através do olhar do povo e com a convivência extrema junto à população, coisas que havia feito em outras viagens sem pretensão profissional.

Na verdade, a viagem foi muito planejada, só que eu não era "alguém", era apenas um jovem sonhador, cara de moleque, taxado de maluco pela maioria e querendo "vender" um trabalho de gente grande junto com a Ana Elisa, que desde o primeiro momento se dispôs a cair na estrada comigo, e depois também com todo apoio da Danielle, com quem posteriormente me casei. A Expedição Trilha Brasil já previa livro fotográfico, exposições de arte e filme documentário, além da própria viagem em si, fundamentada na experiência fotográfica e na troca de histórias essencialmente humanas. Curioso que o primeiro livro foi lançado apenas em 2004, e o filme em 2010. Projetos lá de trás, que nos remetem ao início de tudo, por isso tanta emoção ao conseguir fazê-los sair do papel ― mesmo que, numa primeira análise, pareça um pouco "fora do tempo". Mas hoje sei que tudo veio no tempo certo, um tempo que faz todo sentido em vista do que aconteceu dessa expedição aos dias de hoje.

Sobre influências, veja que curioso: meu avô Eduardo me dava as diretrizes fotográficas do trabalho, mas quem me dava as luzes e inspiração para buscar o desconhecido era meu outro avô, Plínio, que era dentista. Cresci ouvindo histórias de suas viagens como originário do Projeto Rondon. Eram dessas histórias que eu lembrava na época em que desenhei o trajeto que percorremos na Expedição Trilha Brasil (com os equipamentos do outro avô!). Eu sabia que muita coisa mudaria após a viagem, e uma certeza caminhava lado a lado com cada palavra do plano da expedição: nada seria igual, eu nunca mais seria o mesmo, e não teria outra forma na vida de conhecer tantas coisas nem tanta gente. Nunca foi uma simples aventura. Hoje, lembro do antigo chefe, e sei que ele estava errado. O céu não é o limite, podemos ir além dele. Estamos indo.


Expedição 2000: o Brasil em busca dos brasileiros

2. Após a Expedição Trilha Brasil, você se propôs, nos anos seguintes, a seguir o rastro do Rally dos Sertões e trabalhar nas comunidades locais, por onde a prova passava. Em 2003, você firmou uma parceria com a organizadora do evento e passou a produzir as ações sociais oficiais do Rally, que acontecem até hoje. Você sentia que essa competição off-road carecia de um olhar mais humano ou era uma boa oportunidade para chegar a lugares mais remotos? Seria correto dizer que o Instituto Brasil Solidário nasceu de uma combinação do que você viu e viveu na expedição em 2000 junto com as ações sociais subsequentes no Rally?

Quando voltamos da Expedição, a ficha caiu. Havíamos feito algo incrível, tínhamos em mãos um material excepcional para trabalhar, porém não tínhamos um centavo sequer para a continuidade. Nessa volta, descobri porque tantos projetos morrem e porque tanta gente tenta "viver" de uma mesma ideia por anos a fio. O mercado de patrocínios é cruel com seus idealizadores. A continuidade é algo muito, muito difícil. Foi um choque.

Na tentativa de trabalhar esse material (algo muito mais caro do que a Expedição em si), divulgar a Expedição e montar a continuidade do projeto de descobrimento para outras regiões do pais (algo que nunca aconteceu), começamos a Trilha Brasil Comunicação, com a Ana Elisa fazendo trabalhos comerciais de design gráfico, e eu como free-lancer de fotografia e jornalismo para revistas. Com isso, havia sempre a tentativa de "vender" os produtos da viagem e estruturar a continuidade para outras regiões do continente.

Nesse meio tempo, apareceu uma proposta de participar de uma equipe do Rally dos Sertões como navegadores. Eles pensavam que poderíamos ajudar com o conhecimento que tínhamos do sertão brasileiro. Ao analisar o roteiro do evento, percebemos que ele percorreria várias cidades visitadas pela Expedição. Era a chance de voltar e acabamos topando, mas de outra forma: fazer uma equipe solidária, levando ajuda a estas cidades e pessoas em nome dela.

Foi nesta época que sonhei (literalmente) com livros. Acordei em casa e disse a Ana: "vamos montar bibliotecas nessas cidades!". Daí em diante fomos conhecer a estrutura do evento, e ficamos sabendo que eles distribuíam cestas básicas no percurso da prova. Seguimos nosso planejamento paralelo com a equipe, e montamos um mega projeto de livros e kits escolares. A equipe daria um caminhão para subir com tudo, e nossa hospedagem. Era o suficiente para nós, naquela situação.

Tudo o que queríamos era voltar para as cidades e levar alguma forma de ajuda não assistencial. Só que o projeto de livros (Livro na Estrada e Pé na Tábua) cresceu, ganhou fôlego e fizemos, naquele ano, um trabalho gigante de mídia (incluindo o Fantástico), o que levou os holofotes da organização não só para a equipe, mas para o projeto de dois malucos e um cachorro no Rally.

A partir do resultado, começamos as conversas para oficializar o projeto, sendo que em 2002 houve uma parceria oficial e em 2003 assumimos tudo o que diria respeito a ação social no percurso da prova, já que ela tinha uma veia solidária não estruturada, ainda. Neste primeiro momento, em 2001, eu não sabia se a prova carecia de um olhar diferente, porque não a conhecíamos muito. Foi uma oportunidade que deu certo, pois de fato precisavam mesmo ― e percebemos isso após a ação daquele ano, bem como as oportunidades que foram surgindo a partir dali. O Instituto nasceria de qualquer forma, mas vejo que o Rally acelerou o processo e viabilizou as primeiras formas financiadas de levarmos estas ajudas, pois, além da organização, passamos aos poucos a ser procurados por empresários e até pilotos, que ingressaram na rede de apoiadores e financiadores. De lá, saíram todas as bases dos projetos que se desdobraram no IBS, além de clientes para a Trilha Brasil Comunicação.


Livro na Estrada e Pé na Tábua: Ana Elisa entrega kits escolares

3. Antes de o meio ambiente e a sustentabilidade se tornarem bandeiras da moda, você já realizava um projeto ambiental no Rally dos Sertões, com oficina de reciclagem e palestras sobre meio ambiente. Nos anos seguintes, foram criados projetos de hortas comunitárias, coleta seletiva e compostagem. Hoje vocês têm os agentes mirins, crianças e adolescentes, que se tornam os multiplicadores dessas ações dentro das escolas e das comunidades. Como esses agentes mirins continuam os trabalhos implementados? Já é possível enxergar alguma mudança de atitude das pessoas em relação ao meio ambiente?

Desde a ação de 2001 a base seria a educação, através de livros, como disse anteriormente. Só não fizemos mais lá atrás porque não tínhamos verba. Mas, em nossas cabeças, sabíamos das carências, coisas observadas para temas ambientais e saúde durante a Expedição. Então tudo foi acontecendo naturalmente, de forma que as áreas foram, na medida do possível, incorporadas. Saúde sempre foi uma prioridade do orçamento para o trabalho no Sertões, mas defendíamos a criação de áreas paralelas, como foi acontecendo aos poucos e na medida dos anos.

Hoje trabalhamos várias frentes. Por isso os trabalhos são sustentáveis, ou seja, além de princípios de preservação no geral, seguem mesmo sem nossa presença física nesses locais. Com isso, identificamos quem realmente gosta do quê, e separamos estas pessoas nas respectivas áreas: saúde, educação & leitura, meio ambiente, cultura e inclusão digital.

Especificamente na área ambiental, o bacana é que ela caminha lado a lado com a saúde. Começamos com pequenas oficinas, mas hoje o trabalho é o mais impactante para os efeitos de multiplicação. Ou seja: as escolas criam hortas que abastecem a merenda, geram renda, organizam o espírito de equipe na escola, mudam a realidade física com conceitos de preservação (no caso das salas sustentáveis), levam os alunos para práticas externas as escolas com os trabalhos de viveiro e arborização, reduzem a geração de resíduos com as oficinas de papel reciclado e geração de artesanatos e, por fim, isso tudo se transforma em Lei Municipais. Os agentes não só tem orgulho em exibir suas camisas de monitores (ganhar camisa é um fetiche para eles), como levam para casa todos esses conceitos. E assim a coisa toda vai mudando, nunca regride.

Para exemplificar, ao chegar pela primeira vez em Poço das Trincheiras (Alagoas), ficamos impressionados com o grau de sujeira encontrada não só na escola, mas nas ruas. Dois anos depois, chegamos a uma comunidade limpa, com coleta semanal de rua (que antes não havia) e com as demais ações acima citadas em andamento. Não resolvemos tudo, ainda há um longo caminho para pequenos esgotos abertos e o lixão da comunidade, mas demos o primeiro passo para uma mudança gradual e contínua, através da conscientização e o papel de cada um na sociedade.


Colhendo resultados da horta comunitária

4. Na área da saúde, além das palestras de prevenção nas mais variadas áreas da medicina, também são feitos atendimentos e doações de medicamentos genéricos. Por que em tantos estados brasileiros ainda é tão difícil a medicina mais especializada sair das capitais e ganhar o interior? Na sua opinião, por que o IBS encontrou tantas cidades onde as pessoas nunca tinham sido atendidas por um oftalmologista? Na área odontológica, por que ainda é tão difícil fazer um tratamento de canal ou encontrar um ortodontista para corrigir o alinhamento dos dentes?

A área médica é cara. Os profissionais são caros, os equipamentos são caros, os medicamentos são caros, os óculos são caros. Em nossos projetos, é a área mais cara e requer maiores cuidados em termos de preparação com os locais. Por isso, o problema é realmente financeiro. Num Estado mal administrado, onde os desvios são uma triste realidade, imagine o que deve acontecer só na área da saúde? Eu costumo dizer que se não tivesse feito advocacia (ou publicidade), faria medicina. Mas não para atender em hospitais ou clínica particular, e sim ao que a essência do médico deveria atender: a vida. Não sei se é exatamente isso, mas para se formar médico, é gasto um tempo absurdo em estudos e especialização com poucos ganhos financeiros. Como resultado, quando formado, a maioria dos médicos só quer uma coisa: recuperar o "tempo perdido", ganhando muito dinheiro. Não é uma crítica, mas no fundo é um fato que observei por todos esses anos, de forma que, para a maioria, é preferível ficar na cidade grande. Embora haja uma distorção nessa informação: muitas prefeituras no interior pagam muito bem para ter especialistas ― o problema é que as pessoas não querem ir para o interior mesmo. Aí entram nossas ações, porque levamos especialistas para os referidos municípios. Tudo de graça e com o melhor equipamento que temos disponível. É o mínimo que poderíamos fazer.


Consulta com oftalmologista e entrega de óculos

5. Na área de cultura e educação, o IBS atua na construção de bibliotecas, doando acervos, produzindo oficinas de artes plásticas, pintura, desenho, fotografia. Além disso, promove também eventos culturais como cinema e teatro de marionetes e contadores de história. Mas, apesar de todos os esforços, a questão se revela mais profunda. Por que o Brasil, mesmo sendo um país riquíssimo culturalmente, ainda peca tanto em disseminar a cultura e as artes para o seu povo? Como fazer para que os grandes artistas que não encontram um palco despontem em meio a esse isolamento cultural?

Aprendi nesse curto espaço de vida que as pessoas não valorizam o que têm à sua volta. Não valorizam o Parque Nacional que está ao lado, não valorizam as belezas naturais de sua cidade, a cachoeira da fazenda... O violeiro, o pintor, o artista. Nossa educação é baseada em valorizar o político, o rico, o fazendeiro, o super astro, o dono de uma "Hilux" [nota: ter uma Hilux é símbolo de status e poder no sertão]. Mas não valorizamos o sanfoneiro da cidade, mesmo que ele toque muito melhor do que muita gente que está na TV. Acho que o problema é cultural mesmo. O que fazemos para essa mudança? Trazemos essas pessoas para o holofote dos trabalhos, pagamos por eles, gravamos seus CDs, compramos as suas artes, patrocinamos oficinas deles nas escolas, doamos instrumentos e equipamentos de ponta, incentivamos sua inclusão digital para auto-promoção (blogs por exemplo). Tudo para que, primeiramente, sua população os veja, e em seguida possamos aumentar a sua confiança e, quem sabe, despontá-los para o mercado. Está acontecendo desde o violeiro Coque, em 2005, e foi adiante com o Gugu dos Teclados (2006), Doca Sanfoneiro (2009), Banda Nascer do Som (2010), Filarmônica de Cabaceiras (2010), Mônica Soares (2011), entre outros.


Bibliotecas completas e cantinho da leitura

6. A principal preocupação do terceiro setor é a inclusão social, mas, no mundo de hoje, esse conceito implicou em outras duas áreas de atuação: a inclusão digital e o microcrédito. Nesse contexto, abriu-se mais um flanco, com a necessidade de uma educação financeira e digital? Como o IBS atua nessas áreas, além da doação de equipamentos e de administração de pequenos créditos? Para um país que ainda peca até em educação básica e saneamento, como encaixar essas duas novas propostas para um povo com necessidades muito mais urgentes?

Nós não somos banco, e logo percebemos que seria impossível montar uma estrutura de crédito (empréstimo), de forma que inventamos uma outra frente: a de crédito não reembolsável para pequenos empreendimentos. Ou seja, doação financeira para negócios sustentáveis, através de verba para equipamentos e materiais necessários para o negócio deslanchar. Para tanto, o negócio deve ser em estrutura comunitária (tipo associação ou familiar), beneficiar localmente a economia (comprar produtos e matéria-prima no próprio local do negócio) e relação próxima com nossa equipe. Ou seja, não financiamos coisas nem pessoas desconhecidas, mas apenas aquilo em que compartilhamos a vontade e entendemos oferecer baixo risco. Na parte financeira, participamos apenas com algumas orientações do negócio, em geral ouvimos os beneficiários e sugerimos apenas algumas mudanças que sejam vitais. Pela agência Trilha Brasil, damos suporte nas peças de comunicação visual (logomarca) e damos o material de divulgação (folder, por exemplo). Eu acho que a parte de saneamento vem no paralelo.

Por exemplo, financiamos e ajudamos a inaugurar uma pequena fábrica de biscoitos em Quixaba, na Bahia, mas uma das nossas exigências foi que a comunidade seguisse algumas normas de higiene. Com o negócio decolando, as cooperadas (todas mulheres) vão ter mais dinheiro para gastar com coisas pessoais. É esse tipo de orientação que temos dados a quem ajudamos, acompanhando de perto o negócio e os desdobramentos dele ― comerciais e pessoais. Como é o IBS quem dá a verba (e a oportunidade), em geral somos ouvidos para os desdobramentos sequenciais.


Inclusão social andando junto com a inclusão digital

7. Em março de 2011, o IBS promoveu o primeiro Encontro Amigos do Planeta na Escola, onde professores e gestores de escolas beneficiadas vieram de todo o Brasil para debater o desenvolvimento sustentável e trocar experiências sobre os trabalhos aplicados nas escolas. Quais foram os resultados desse encontro e quais são os planos para 2012?

Há muito tempo sabíamos que a fórmula para se obter resultados consistentes não estava em um projeto anual, com data certa para começar e outra para terminar. Projetos de longo prazo eram um sonho antigo e conseguimos junto a Casas Bahia viabilizar um trabalho com um "mantenedor" ― que, diferentemente de um patrocinador, lhe confia uma missão, com mais tempo, mais desafios e mais responsabilidade.

Seguindo exatamente esse olhar, nossa missão foi desenhada para, em 24 meses, mostrar como os trabalhos poderiam de fato se tornar sustentáveis nos lugares escolhidos. Assim, analisando os resultados ao final dos primeiros 12 meses, viabilizamos a ideia de juntar todos os beneficiários para apresentar e debater resultados num único espaço.

O evento tinha a seguinte lógica: cada cidade deveria mandar uma delegação formada por no mínimo 5 integrantes, apresentar um datashow completo (dados e fotos) de políticas públicas, casos e um filme institucional. Além disso, cada um defenderia um tema, escolhido por sorteio. Tudo feito por eles com equipamentos que ganharam especialmente para estes registros.

O Encontro foi concretizado na histórica cidade de Lençóis na Bahia, e no mercado central deveriam deixar durante a semana uma mostra de resultados e culturais regionais. Lá aconteciam ainda apresentações de convidados nossos e alunos de cidades próximas. Além disso, proporcionamos a eles jantares, passeios e muita interação, como se pudesse devolver o resultado do empenho dado ao trabalho nos meses anteriores. Eram cerca de 150 pessoas, com alimentação, hospedagem, tudo incluído, em uma semana de evento.

De lá, ao final de tudo, percebi a dimensão real do projeto, dos anos trabalhados por esta causa, de cidade em cidade ― não só em termos operacionais, mas territoriais. Estivemos com pessoas, de todas as regiões do Brasil. Os diretores da Casas Bahia estiveram lá, incluindo a diretoria executiva e os responsáveis diretos pela operação dentro da empresa (o projeto é financiado com material reciclado e logística reversa, envolvendo muita gente, e de muitas áreas internas). Foi um impacto muito grande para todos os envolvidos. Saímos conscientes de tudo isso, e já temos o contrato assinado para mais 30 meses de projeto, para mais seis novos municípios. A ideia é que a cada 30 meses aconteça um novo encontro. Já estamos preparando o próximo.

Quanto a 2012, começaremos o ano com uma grande novidade: seremos homenageados no carnaval pela escola X9 Paulistana, que trará o Rally dos Sertões e o povo brasileiro como tema de seu desfile. Em agosto deste ano dois carnavalescos da escola nos acompanharam nos trabalhos, mas foi uma grande surpresa para nós ver o resultado deste contato. O desfile trará à avenida não só a nossa logomarca estampada na roupa que simboliza a ação social que estamos desenvolvendo há 12 anos pelo Brasil, mas também o nome do Instituto aparecerá na letra do samba enredo ("nessa viagem, diversas linguagens, folclore e tradições, Brasil Solidário, missão social, o meio ambiente é fundamental"). Será um momento muito interessante para o público do sambódromo associar aquilo que fazemos, neste que é um grande show cultural brasileiro para o mundo.

8. O IBS só trabalha com a iniciativa privada. Porém, não utiliza as leis de incentivo, que são usadas apenas como meio para "abatimento" de impostos. Quais são as falhas e os erros de critério da Lei Rouanet e onde ela poderia melhorar? Como funciona a Lei das Oscips, que permite uma dedução de 2% sem burocracia, e quais benefícios ela traz ao terceiro setor?

Acho que a primeira coisa seria mudar o lado histórico, de que o investimento não é simplesmente abatimento de imposto, mas uma oportunidade que o governo dá para que a iniciativa privada participe de forma mais ativa do processo educacional e cultural do país. As leis servem para ajudar, mas no caso da Rouanet, penso que 4% é um percentual restrito demais para a maioria dos investidores. Justamente por isso que fica apenas viável nas grandes empresas (geralmente bancos e indústrias petroquímicas). Por isso, não usamos leis de incentivo no momento. Tudo é feito pela iniciativa privada.

Já a Lei das Oscips foi feita originalmente com outra finalidade: possibilitar as parcerias público-privadas, autorizando os governos (federal, estadual ou municipal) a terceirizar serviços a entidades, sem licitação. Daí já viu o que aconteceu. escândalos e mais escândalos em cima das ONGs, porque muitas delas foram criadas somente para pegar essa verba sem licitação. De quebra, a Lei "deu" 2% para as empresas doarem e 6% para pessoas físicas (igual à Rouanet), desde que tributadas em Lucro Real, em cima do valor do imposto, só que sem passar pelo processo burocrático da Rouanet, só com uma prestação de contas anual ao Ministério da Justiça. Ou seja, esta lei apenas deu uma oportunidade a mais para atravessadores, e, é claro, não resolve nada.

O certo seria repensar a forma de doação, tanto de pessoa jurídica como de física, assim como o controle dos beneficiários (autorizados a captar), de uma forma local e mais objetiva (investimentos de empresas em âmbito local e próximo). Da forma atual, com centralização federal, é muito burocrático. Minha última tentativa de captar recursos foi numa ação social do Rally e no livro Caminhos de um Brasil Solidário. Depois de idas e vindas de documentos (que naturalmente têm validade) e o não cumprimento do Ministério nas análises em data hábil, desisti de vez de usar esse sistema. Foram quatro ou cinco documentos perdidos, certidões enviadas que, ao serem analisadas, já estarem vencidas e, por final, negadas por isso.

Não dá certo dessa forma e favorece apenas o "esquema". O Brasil não é o país dos esquemas? Pois a meu ver este é apenas mais um em andamento, e nós optamos por não estar nele. Por outro lado, descobrimos formas novas de trabalhar. Um bom exemplo é o do Amigos do Planeta, com a Casas Bahia, já que nossa verba é originária de venda de material reciclado (papel, papelão, isopor, plástico). Além de ser uma ótima iniciativa, nos dá uma verba sustentável e sem burocracia. Mas é claro que a empresa teve uma consciência ao não pegar "de volta" essa verba da venda dos materiais, coisa que muitos não topariam fazer.

9. Antigamente, quem trabalhava numa ONG era visto como um abnegado que se doava em prol de causas públicas, que deveriam ser atribuições do estado. Nos últimos anos, com a terceirização dessas políticas públicas pelos governos, as ONGs passaram a ser usadas como instituições de fachada, para desvios de dinheiro público e até lavagem de dinheiro. Foi em meio a esse cenário desolador que nasceu e cresceu o IBS. Como fazer distinção entre as instituições sérias e as de fechada, em meio a tantas denúncias de corrupção e repasses ilegais? E sem rodeios: você algum dia trabalharia com dinheiro público, mesmo tendo de se render às idiossincrasias políticas e partidárias?

Quando estávamos na negociação do processo seletivo do Amigos do Planeta, um dos pontos era o histórico com os governos, coisa que nunca tivemos. Foi um dos fatores que acabou levando o projeto para a administração do IBS. Não que seja um requisito essencial, mas não ter repasses públicos por si só já é uma diferença de uma ONG para outra. Isso porque o dinheiro privado é mais apertado, controlado, restrito, difícil de conseguir e preso a relatórios, coisas que o poder publico não faz, definitivamente, de forma organizada. Nós somos como uma empresa, só que somos ONG. Poderia dizer que somos uma empresa que ajuda pessoas. Juridicamente, isso se chama ONG.

Dinheiro público? De alguma forma, já fazemos isso, com a entrada de 2% via Oscip. A diferença é que isso não está atrelado a questão política nem partidária. Sinceramente, estamos bem e felizes com nossos orçamentos, e temos pretensão de continuar assim, com projetos de qualidade e muito bem acompanhados por nossos parceiros. Se você parte para algo realmente público, tem o lado bom, porque normalmente os valores são maiores, mas tem o lado ruim, pois estará associado ao governo que lhe contrata. Não pretendo fazer isso, porque somos independentes, e sabemos o que queremos como resultado e de fato estamos conseguindo: mudar as Leis (por ora municipais) de nosso país para que os governos (e novos governos) mudem, de fato, a realidade que já esta sendo mudada. Ou seja: hoje o governo é quem está trabalhando para nós, independente do partido. Não é assim que deve ser?

10. As empresas investem na área social acreditando que estão fazendo um investimento em marketing e retorno de mídia, e buscando melhorar sua imagem frente ao consumidor. Se a verba para investir no terceiro setor geralmente sai de um "resto do orçamento" da comunicação da empresa, isso causa muitas incertezas no orçamento das ONGs. As empresas ainda não estão estruturadas para fazer esses investimentos? De que outras formas o investimento na área social traz benefícios aos patrocinadores? Em sua visão, como profissionalizar essa área dentro de uma empresa, tendo departamento e orçamento próprios?

Quando comecei a trabalhar com isso, há treze anos, eu via a coisa como investimento em marketing mesmo. Mas, ao longo da última década, descobri que é um pouco diferente, pelo menos em alguns casos. Para as empresas que trabalham com a gente, mais importante do que a publicidade externa é a satisfação do colaborador, ao saber o que sua empresa faz pela sociedade. O funcionário satisfeito é mais feliz, tem orgulho do seu trabalho e defende sua empresa. Mas é claro que existem as outras, que apenas querem a publicidade. Estamos cercados, na maioria, pelo primeiro caso, e isso é bom porque não somos só uma oportunidade para estas empresas, mas sim parceiros de negócios e de bem estar e motivação do funcionário.

A mídia espontânea é importante para a manutenção do projeto, mas existem várias outras de formas de assegurar o retorno desejado. Para isto, a empresa tem que comprar o projeto como dela, ouvir mais sobre o processo de transformação real, usar as informações geradas para seu colaborador, para os seus clientes e público final, junto com os agentes realizadores do projeto em si, mas sem tornar isso um marketing direto e agressivo.

Penso que o maior ganho na verdade não é o de mídia, mas sim o valor agregado ao seu produto ou marca por acreditar de verdade em ações desse tipo e principalmente no potencial do ser humano, que é a filosofia e o corpo de um programa social. Como sempre falo, gostamos de trabalhar com aquelas empresas que não só "assinam o cheque", mas mandam representantes para ver sua compensação.

É preciso estar junto para compreender, afinal, social vem de sociedade, aquilo que construímos e por quem também lutamos para nossa própria sobrevivência. Não dá para enxergar um projeto só lendo relatórios. Vejo que a maioria das empresas ainda não está devidamente estruturada internamente para avaliar seus investimentos sociais. Alguns montam suas próprias fundações para assegurar o investimento ao seu negócio. Outros terceirizam e acompanham os relatórios, mas poucos seguem juntos. Em ambos os casos existem falhas ou falta de tempo e pessoas para entender, avaliar e acompanhar o investimento. Como ainda é algo novo, temos uma lição enorme para aprender com tudo isso e ajudar a construir isso nas empresas. E estamos aprendendo.

11. Nos últimos anos, o assistencialismo tem crescido, não só nas políticas governamentais, mas também em ações (organizadas ou não) vindas da sociedade civil. Se, por um lado, o assistencialismo contribui de alguma forma para o avanço social do país, ele também cria dependências e não garante um futuro a seus beneficiários. Como aliar ações assistencialistas, que atacam os problemas mais urgentes, com ações mais complexas, com visão de longo prazo e olho no futuro? Em suas andanças pelos rincões, o que você viu de verdade e o que você viu de mito nessa exploração da pobreza, da miséria e da fome por parte de políticos? Com que frequência você vê cidades controladas por coronéis, e como lida com isso?

Nunca quisemos fazer projetos assistenciais, com roupas e comida ― embora reconheça a importância de quem faz isso. Acredito que são ações conjuntas, porém nós optamos por não seguir a linha assistencialista, como expliquei. O que incomoda é que o poder público, por falta de conhecimento de outras possibilidades (como as que nós levamos) tende a fazer o assistencialismo em troca de algo ― no caso, o voto ―, e é ai que está o problema.

Acredito que estamos contribuindo para uma melhoria, porque as ações passam a ser cobradas pelo povo, que aprende e tem uma nova visão de vida ao receber ensinamento para poder "plantar e colher". E vejo que a maioria das prefeituras quer receber nosso trabalho. Poderíamos ser odiados pelo poder publico, porém, somos amados por todos (ou pela grande maioria).

A lição de casa é mostrar que o desenvolvimento social e sustentável pode ser alcançado por qualquer município, desde que ele passe a investir corretamente sua verba em desenvolvimento educacional e de formação humana. Nesse caso, não estou falando só de estradas, pontes e casas populares. Pode parecer absurdo, mas é enorme o volume de verba gasto individualmente em potenciais eleitores. É preciso pensar como um todo, não só no número da legenda. É preciso deixar de dar botijão de gás, sacos de cimento e sandálias de dedo, para que a verba seja gasta nas escolas, nos médicos locais, nos equipamentos, na capacitação local de gestores. Este ainda é nosso câncer, mas vamos lutar para curá-lo até o resto de nossas vidas. E achamos o caminho, é uma questão de tempo.

12. Para encerrar, queria que você falasse um pouco a quem está se iniciando no terceiro setor e no empreendedorismo, usando da sua experiência na área. O que mudou e o que permaneceu o mesmo no Brasil nesses últimos dez anos, e quais serão os maiores desafios ― seus e do Brasil ― nos próximos dez anos?

1. Nenhum sonho é impossível;
2. Somos ricos e capazes. O que nos falta é educação direcionada;
3. Seja paciente e persistente;
4. Trabalhe com paixão. No meu caso, a fotografia que me levou à transformação;
5. Não precisa querer mudar o mundo, mude suas atitudes diárias. Isso já é um grande passo;
6. Monte uma equipe que compartilhe dos mesmos ideais;
7. Nunca perca a sua origem e ética. Nossa essência é a mesma até hoje, independente da dimensão dos projetos e patrocinadores;
8. Tudo é lição e aprendizado. Não existe fracasso;
9. Acredite em seu país e no nosso povo, extraordinariamente cultural e essencialmente feliz;
10. Tenho certeza do que vim fazer por meu país. Será maior, muito maior daqui a dez anos, embora isso só tenha ficado claro há pouco tempo.

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Diogo Salles
São Paulo, 6/2/2013

 

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