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Segunda-feira, 11/4/2011
Encontro com Kurt Cobain
André Forastieri

Olhos mortos, dentes limosos, cabelo imundo, pele macilenta. Sovaco fedido e hálito pestilento. Kurt Cobain cheirava mal e parecia pior ― um tampinha insignificante e desagradável. Ei ― eu estava lá e é assim que eu lembro. Como aqueles correspondentes de guerra, Christiane Amanpour: "Testemunha Ocular da História". Estou falando que Kurt Cobain era um merdinha e era.

Vocês jovens de hoje não sabem o que foi aquele período de trevas. O início dos anos 90 está para a semana passada como a peste negra para Botticcelli. Não existia internet nem TV paga nem MTV nem iPod. Para saber de música você lia jornal ou revista. Fazia o que eu fiz no dia em que completei 17 anos: pegar um ônibus em Piracicaba e ir até Campinas para comprar meu primeiro disco importado, The Name of This Band Is Talking Heads.

Essa era a minha vida e a de Kurt Cobain em 1993. Somos da mesma geração, eu mais velho dois anos, e igualmente caipiras ― perto de Olympia, Washington, Piracicaba é Paris. Sonhávamos igualmente em cair fora e ser alguém.

É o sonho do adolescente fã e quem não foi fã não entende. Colegas brucutus e meninas bestas nos tacham de malucos, nerds, otakus, esquisitos, sonhadores, obsessivos ― e somos, claro, e isso é bom, é fundamental e é a chave da vida.

Fanático por gibi, eu fantasiava em desenhar X-men para a Marvel. Louco por rock, eu sonhava em ser... jornalista. E consegui. Aos 27 anos todos os meus sonhos de rockstar já tinham se materializado. Eu era editor da única revista de música do Brasil que importava, a Bizz, cara, o único veículo nacional de rock, e isso era muito melhor que ser um pobre de um músico.

E agora eu ia fazer a única entrevista de Kurt para a mídia impressa durante a estada do Nirvana no Brasil.

Eu não era o cara certo. Esse é outro André, o Barcinski, um repórter do Notícias Populares que fez uma viagem de dois meses pela nova América roqueira e flagrou o estouro do Nirvana ao vivo e a cores. Tudo graças a: a) a irresponsabilidade financeira do então diretor do jornal, que acobertava suas milionárias ligações telefônicas internacionais; e b) a Bizz, que publicava mensalmente as reportagens que ele enviou de lá. Elas deram origem ao livro Barulho e Barça virou oficialmente o cara que apresentou o novo rock americano (grunge, indie) ao Brasil.

Me apresentou também o Nirvana, Nevermind, naquele apê da praça Roosevelt, pilhas de CDs ― me deu o Ten do Pearl Jam, "gostou, então leva, achei chato pra caceta".

Ei, veja, tinha outros caras fazendo outras coisas que sabiam de tudo antes (meu compadre Renato Yada tinha o Bleach antes de todo mundo e achava o Nevermind bem inferior, lembro), mas que me importa? Essa é a minha história com Kurt Cobain. Outros jornalistas têm melhores e que contem as suas.

O Barça era mais indicado para entrevistar o Cobain mas eu era o cara certo. Não porque escrevi a introdução de Barulho ou a crítica de Nevermind para a Bizz (lembrem, o único veículo nacional de rock na época), que acabava com um comando clássico: "Compre, roube, dê um ao seu melhor amigo, dê um para o seu amor".

Eu era o cara porque eu era o editor, eu mandava, eu decidia quem fazia as paradas e eu não ia deixar para ninguém mais a boiada de entrevistar o maior astro de rock do mundo.

Parece grande furo de reportagem, quaquaqua ― o gerente de internacional e mais a assessora de imprensa da BMG me pegaram em casa, me levaram até o Morumbi e me botaram na frente do cara.

Era o momento do rebelde picar cartão. A Bizz era a única revista de rock com porte para ajudar a vender discos. Kurt estava sentadinho comportado na cadeira porque o patrão mandou. Repórteres mais abelhudos que eu (ou mais fanzocas que eu, decida) colaram no cara dias, saíram com ele, cheiraram com ele.

Foi nas cobertas, acho. Duas cadeiras e um banquinho. Por perto, a mulher do cara, mais fedida que ele, sobrevoava o marido como um abutre. Serrava meus cigarros só pra chegar perto e ver o que Kurt estava dizendo. Longe, pululante, Dave Grohl papeava com Fabio Massari e Daniel Benevides, jornalistas de uma MTV que ainda começava. Uma hora e pouco de conversa ― o resumo saiu na Bizz e tem naquele CD com todo conteúdo da história da revista.

Era uma tarde ensolarada. Roadies faziam a passagem de som e eu estava frente a frente com meu espelho, o André Forastieri que não deu certo, o fã que se fodeu: Kurt Cobain, o típico caipira que vira crítico de música mas acabou virando astro.

Veja: o Nirvana realmente salvou o rock da irrelevância. Sério. E os jornalistas de rock não tiveram nada com isso. Foi culpa do vídeo de "Smells Like Teen Spirit". Foi o voto do público que instaurou o caos e enterrou a porcaria de rock que dominava a cena no final dos 80.

Mas a razão porque o Nirvana foi tão incensado é porque todos os jornalistas de rock do planeta se reconheciam em Kurt. Cobain compunha como nós comporíamos, com a enciclopédia do rock na cabeça: agora uma parada tipo Pixies, agora Carpenters, agora "More than a Feeling". Ou como eu intuía que comporia porque ele de fato fez, e eu não. Nunca quis e nunca tentei. Mas Kurt Cobain forçava a questão: por que não? Por que nos acomodamos em vidas medíocres se podemos ser muito mais? Kurt perguntava: veja, sou um pobre diabo como todo mundo e aqui estou realizando grandes coisas.

A ascensão irresistível do Nirvana foi o triunfo do punk no coração da América. Punk é: faça você mesmo, procure outros como você e foda-se o resto. É o espírito da internet, claro. Se a geração interativa do século XXI é cyber(punk) por se inspirar no Nirvana ou se Cobain intuiu para onde ia a cultura nos anos após sua morte, você escolhe.

O triunfo espiritual de Kurt é incontestável e seu fracasso pessoal também. Como John Lennon, Raul Seixas ou Renato Russo, Kurt era um pobre diabo que precisava ser amado e idolatrado, conseguiu e não segurou a onda. Percebi isso entrevistando aquele moleque sujinho mas não entendi. Éramos os dois muito jovens. Hoje tenho 41 e ele vai ter sempre vinte e poucos. Sou sortudo.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no portal G1.

André Forastieri
São Paulo, 11/4/2011

 

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