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Terça-feira, 24/9/2013
Entrevista de Aniversário
Julio Daio Borges

O texto sobre o fim da Bravo! repercutiu. Além desta foram outras duas entrevistas. Gostei, particularmente, da que segue, pois funcionou como uma pequena retrospectiva. As perguntas são do Paulo Palma Beraldo, da Unesp e do DESinformando. Aproveitei o aniversário do Digestivo para reproduzir aqui e dividir com quem agora lê. Bom proveito e obrigado por estar aí, do outro lado da tela. ― JDB

O que o Digestivo Cultural significava para você em 2000. E hoje? Quais planos do 'passado' continuam no Digestivo?
Significava uma newsletter. Um punhado de notas sobre assuntos culturais. Uma maneira de palpitar sobre "a cena", sem precisar ser "da área". Hoje a newsletter continua. E os meus textos são a base de tudo. Só quando escrevo vejo algum sentido no todo. Acho que, depois de uma década, continua o espírito crítico. "Estou completando a minha educação", como diria o Paulo Francis. Sou menos "impressionista" do que em 2000 ― como dizia o Daniel Piza ―, e acredito mais no que escrevo hoje.

Como é a rotina do Julio? O que você não fica sem ler? E o que você absolutamente não faz questão de ler?
Estou muito envolvido com a nova seção "Livros", do Digestivo. Então minha investida no e-commerce, digamos assim, ocupa muito da atual rotina. Já escrevi todos os dias, hoje produzo tudo uma ou duas vezes por mês. Gostaria de voltar à produção semanal. Vamos ver. Leio sempre o Twitter. Às vezes compro um jornal ou revista na banca. Não leio nada fixo, porque não gosto especialmente de nenhum veículo. Leio, sobretudo, livros. "Os clássicos que ainda não li", como disse o Miguel Sanches Neto. No início deste ano, terminei de ler Homero e nada me impressionou tanto desde então.

Quais são suas referências no jornalismo cultural e na literatura?
No jornalismo, Paulo Francis e Nelson Rodrigues. Na literatura, Rubem Fonseca. Isso quando o Digestivo começou. Hoje, Cervantes, como romancista, Homero (de novo), como poeta, e Tchekhov, como contista. Estou citando os que mais me impressionaram em cada gênero. Elogiei muitos outros nomes desde 2000 ― estão nos arquivos do Digestivo ;-)

E qual sua opinião sobre o modo como o jornalismo cultural é feito atualmente no Brasil?
Depois do "Caderno Fim de Semana", da época do Daniel Piza na Gazeta Mercantil, o jornalismo cultural ficou meio envergonhado, quase sumiu. Acho que a Bravo! foi um bom momento, mas a "fase áurea" durou pouco. Vejo a cobertura diária, e semanal, muito presa(s) aos lançamentos, e eventos. Quem faz alguma reflexão, hoje, é a Piauí, mas ela nunca quis o rótulo de "jornalismo cultural". O Rascunho faz um trabalho importante, em matéria de literatura, mas somos muito condescendentes com nossos contemporâneos. Para o bem ou para o mal, "é todo mundo amigo de todo mundo"...

Revistas fechando, jornais demitindo profissionais e a internet cada vez mais chamando a atenção e público ― já são mais de 90 milhões de brasileiros conectados. Qual sua opinião sobre o modo de se produzir conteúdo na atualidade? E qual é o futuro do impresso, a seu ver?
Começando pelo final, os impressos não devem acabar, mas vão se tornar um luxo, com cada vez menos gente pagando por eles. A internet sempre foi muito interessante, mas tem "de tudo" nela. A produção de conteúdo deve continuar desordenada, faltam editores e o leitor acaba tendo de fazer muito do trabalho sozinho. Não tenho esperança de que o jornalismo, como profissão, volte a ser o que era (antes da internet). Acredito que vamos fazer, cada vez mais, por amor à arte. Mais ou menos, como se faz literatura...

Entrevistas dão um background muito importante para quem as realiza. Quantas entrevistas você já fez? Qual a que mais te traz boas memórias? Por quê? E quem você gostaria de entrevistar que não está mais vivo?
Eu demorei para fazer entrevistas. Não me achava "preparado". Quando comecei, escolhi apenas gente de quem eu conhecia bastante a obra. Queria fazer entrevistas "definitivas". Como me exigia muito, não fiz tantas assim. Mas fiquei satisfeito com as que fiz. Praticamente entrevistei todo mundo que eu queria. Ou, pelo menos, conversei. Ou, ainda, conheci. Não tenho nenhuma frustração nessa área. Talvez retome as entrevistas caudalosas do começo, não sei...

Para você, qual a função da literatura?
Não acredito que tenha uma "função", no mesmo sentido que Oscar Wilde dizia que "toda a arte é inútil". E não por que a literatura, ou a arte, seja "uma perda de tempo". Mas porque elas são o contrário dessa nossa era "produtiva", em que tudo deve ter, justamente, "um fim", "um propósito", "um objetivo"... "Não temos tempo a perder" etc. Acontece que não somos autômatos. Não somos robôs. Então ― se você quiser ―, a literatura, a arte, são para aqueles momentos em que você se lembra de que é humano.

O jornalismo cultural é uma forma de se informar sobre os fatos relacionados ao meio social/cultural. Mas como definir o que é cultura? O que é cultura para você? Até que ponto os gostos, as expressões artísticas, até esportes, modos de falar de um país tão grande, como o Brasil, sofrem preconceito? O jornalismo cultural se preocupa mais com o a cultura cult ou com o pop?
São várias perguntas em uma. Não sei se vou conseguir responder tudo. Sobre a definição de cultura, eu não arriscaria uma. Sei que existe, por exemplo, a "antropológica", que abarca tudo o que diz respeito ao homem. Mas o meu foco talvez seja a "alta cultura" (que você chama de "cult"). Acompanhei o pop quando era jovem, mas é algo para um consumo mais imediato, não tem como se dedicar a isso a vida toda. (A não ser que seja a sua profissão.) Sobre "preconceito", uma era populista como a nossa, sobretudo no Brasil, é tão preconceituosa quanto qualquer outra. Basta ver o uso pejorativo que se faz da palavra "elite" ― que, como lembra o Sérgio Augusto, sempre foi "o melhor de cada sociedade"...

"O tempo se encarrega de apagar todos os cinquenta tons de cinza, e ainda arrasta para o esquecimento os crepúsculos, cabanas e toda essa xaropada que finge ser literatura. Enquanto isso, Coração das Trevas, publicada há mais de um século, é uma das novelas mais lidas por leitores de língua inglesa", escreveu Milton Hatoum (em artigo "Livros de verão e literatura de verdade", no Estadão). Qual sua opinião sobre livros que vendem, passam e logo depois são esquecidos?
Acho que o mercado editorial, como qualquer outro mercado, depende de boas vendagens para sobreviver. E os best-sellers cumprem essa função, de permitir que o mercado editorial avance e aposte, para contrabalançar, em literatura de verdade. O que aconteceu, ultimamente, foi uma consolidação dos grupos editoriais, inclusive no Brasil, e a impressão hoje é de que só produzimos best-sellers. Acontece que a grande literatura nunca morre. Mas também não espere vê-la na lista de "mais vendidos"...

Você fala outras línguas. Como avalia a capacidade de se comunicar em um idioma que não é o nosso? E como isso influi no trabalho?
Eu tive a sorte de ter uma mãe que praticamente me fez bilíngue, junto com os meus irmãos. Graças a ela, depois da segunda língua, ficou mais fácil aprender as outras. Acho que não ser "monoglota" é muito mais do que falar, escrever ou ler em outro idioma que não seja o seu, é ganhar outra visão de mundo, outras formas de pensar. No jornalismo, e na internet, quem só lê em português tem uma visão muito estreita do mercado e das possibilidades. E, em literatura, quem só lê em português fica preso ao Brasil e a Portugal, chegando, no máximo, a Pessoa e Camões. Eu não li Homero em grego e nem Virgílio em latim, mas sei que, se eu quiser, um dia posso tentar, e isso ― em si ― pode ser uma experiência.

"Meu trabalho não é ser fácil com as pessoas. Meu trabalho é torná-las melhores." O que o Julio faz pra tornar as pessoas ao seu redor melhores?
"Trato as pessoas como adultas, critico-as", escreveu o Paulo Francis. Acredito que o leitor interessado em cultura, em jornalismo cultural, tem algum desejo de evoluir. Então a crítica pode ajudar... E hoje, mais do que nunca, contextualizando, porque temos muita informação, mas nos perdemos, não sabemos o que vale a pena, onde devemos investir nosso tempo etc. O crítico é aquele sujeito que, justamente, "perdeu" um tempo, descobrindo de onde vêm as coisas, o que elas significam, quanto valem... Portanto, são os críticos que nos ajudam a "navegar" no mar de informação. E eu tento fazer a minha parte, com o que aprendi e com o que me ensinaram.

Em um texto ("Convivendo com a Gazeta e o Fim de Semana", no Digestivo), você fala da sensação de status que ler o jornal Gazeta Mercantil dava para a pessoa e cita o caderno "Fim de Semana", editado pelo Daniel Piza. Publicações como aquela fazem falta na atualidade?
Não sei se seria "status" a palavra. Eu diria que tínhamos respeito por aquele caderno, porque ele reunia o melhor do jornalismo cultural da época. Claro que faz falta, mas foi um momento, onde o Daniel dispunha de uma oportunidade e um orçamento, que hoje não há mais, e de um "dream team", que se dispersou... Acredito que as iniciativas, hoje, são mais fragmentárias. É quase uma ilusão achar que alguma publicação vai, novamente, reunir "o que há de melhor" (em qualquer assunto). O "melhor", hoje, pode estar em todos os lugares e em nenhum...

"Obrigado por ter opiniões numa época de tanta impessoalidade", disse você em editorial publicado no Digestivo em homenagem ao Daniel Piza. Você poderia desenvolver melhor essa ideia?
O Daniel se inspirou nas grandes personalidades do nosso jornalismo, como Paulo Francis e Nelson Rodrigues, e tentava seguir essa tradição. E o Daniel se posicionava bastante ;-) Porque achava que essa era a função do jornalista, do crítico... Quando escrevi aquele trecho, estava triste e com uma visão meio desiludida das coisas. Hoje acho que as grandes personalidades sempre vão existir; e que as grandes opiniões, também. Ainda que nem sempre estejam na grande imprensa, e no que se publica no presente...

Para ir além
"Histórico" do Digestivo

Julio Daio Borges
24/9/2013 às 12h52

 

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