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Sexta-feira, 30/3/2012
Meu encontro com o Millôr
Julio Daio Borges


Ricardo Moraes/Folhapress

* Meu primeiro contato com a obra do Millôr foi através da Bíblia do Caos, sua coletânea de frases, de 1994. Lembro que a Veja encheu duas páginas só com aforismos dele, e comprar o livro se tornou uma inevitabilidade. Nunca li o Millôr Definitivo de cabo a rabo ― e acho que nem era esse o objetivo do autor ― mas guardei algumas frases para sempre. "Livre como um táxi" é a minha preferida. É um trocadiho que não sei se faz muito sentido para as novas gerações, mas é genial. Inúmeras vezes tentei imaginar algo melhor, mas não consegui. Pessoalmente, ele me disse que publicava aforismos, na imprensa, toda semana. "Às vezes, sai uma frase ótima", ponderou. Como tinha décadas de trabalho na imprensa: "Se você juntar a vida inteira, de repente tem uma obra". Era o típico humor dele. Apesar de seu inquestionável gênio, conseguia falar de seus feitos como se fossem algo natural. Como se fossem uma mera acumulação do trabalho de anos. Tanta gente pode escrever frases toda semana, mas, chegar a "livre como um táxi", só o Millôr.

* Aliás, o Daniel Piza deve ter ouvido esse conselho. Porque se dedicou a publicar frases na sua coluna Sinopse, desde que ela começou. Os tais "aforismos sem juízo". Lembro que, quando a Sinopse fez 1 ano, o Daniel publicou uma coluna inteira só com as frases das primeiras 52 semanas. Eu nunca gostei dos "aforismos" dele e, já naquela época, mandei um e-mail criticando algumas frases e tentando dissuadir o Daniel da empreitada. Não adiantou. Ele seguiu em frente. E, mais de uma década depois, publicou até em livro: Aforismos sem juízo (2008). Lembro, ainda, que alguém criou um "fake" dele no Twitter, e o Daniel me escreveu perguntando se eu sabia quem era (ameaçando processar o sujeito). Entrei e achei que os tweets fossem uma gozação dos tais "aforismos sem juízo". Eram os próprios.

* Voltando ao Millôr, o Daniel conta que, quando organizou Waaal ― O Dicionário da Corte de Paulo Francis (1996), este ficou meio decepcionado com a magreza do volume, afinal ― depois de décadas igualmente na imprensa ― esperava alguma coisa nas dimensões da Bíblia do Caos. Afirmava, para além da amizade de toda a vida, que o Millôr, se escrevesse em outro idioma mais conhecido, teria a estatura de um Voltaire. Quando o Francis morreu, o Millôr foi quem escreveu um dos melhores obituários, que li e reli: "Dá-lhe, sweet prince!". Está lá, no "saite" dele, o humor que não perdoava nem o amigo morto: Millôr diz em tom de blague que cansaram de fazer as contas e que era impossível o Paulo Francis ter lido tudo o que citava...

* Nos primórdios do Digestivo, cadastrávamos todos os e-mails de jornalistas que pudéssemos encontrar. E, num belo dia, apareceu o Fabio Danesi Rossi, um dos primeiros Colunistas, com o e-mail do Millôr (conseguido através de uma pessoa conhecida dele, que trabalhava em alguma redação). Cadastramos o Millôr e, naquele mesmo ano, aportou uma mensagem dele na nossa caixa postal: "Excelente, Digestivo", exclamava o mestre. Respondia ao meu "Digestivo" de número 29, em que eu falava de uma montagem de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (que, eu não sabia, fora traduzida pelo Millôr). E, para nosso espanto, o Guru do Méier seguiu se manifestando sobre as nossas newsletters... Lembro que respondeu a uma das "Peristálticas" (Notas dos Colunistas, precurssora do "Blog" do Digestivo), que continha um texto do Rafael Lima, sobre o caso "Pasquim versus Simonal". Foi um dos episódios mais controversos do jornal, mas o Millôr nos respondia serenamente, como se merecêssemos alguma consideração. O Digestivo tinha menos de um ano.

* A uma das newsletters de aniversário do site, aliás, ele me respondeu: "Daio, você chegou. Fica! Seu companheiro de jornada, por vias travessas, Millôr". Gostei tanto que, no meu primeiro cartão de visitas, imprimi a frase atrás. Para ler e reler. Lembro que, quando da primeira manifestação dele, eu ainda trabalhava no banco, e foi a primeira vez que me perguntei o que estava fazendo lá. Eu não conseguia montar uma equipe, porque o meu chefe não achava que era a hora, mas eu já coordendava uma dezena de Colunistas e nós tínhamos recebido um elogio do Millôr Fernandes! Ainda no banco, conheci o Rodolfo Felipe Neder, que administrava o site do Millôr, e ele, sugerindo uma parceria entre nós, colocou o logo do Digestivo, como se fosse um teaser, no Millôr Online (sem o hyperlink, só para me atiçar). Quando mostrei o feito a uma colega do banco ― a quem eu revelava meus planos mirabolantes ―, ela quase caiu de costas.

* Já fora do banco, conversei com o Rodolfo por telefone e marcamos um encontro. Acabamos nos tornando amigos. Ele me contava boas histórias do Millôr. Falava com ele quase todos os dias. Além do "saite", administrava todos os contratos do Guru do Méier. E ficava procurando oportunidades para o Millôr Online. Foi dele a iniciativa de levar o Digestivo para o UOL, mas fiquei tão desanimado com a primeira reunião que acabei desistindo. Uma empresa grande era tudo o que eu não queria ― tinha acabado de sair de uma ―, e ainda queriam me ensinar como tocar o site que eu havia criado do nada (e que havia chamado a atenção do Millôr)? Troquei a mailing list do Digestivo com o Rodolfo e, de repente, o nosso site ganhou o público do Millôr Online no UOL.


Millôr, pouco antes do nosso encontro, na Flip

* E foi graças ao Rodolfo que eu conheci o Millôr. Há quase dez anos, quando vivíamos o "pós-bolha", e eu pensei em transformar o Digestivo numa revista impressa (quem diria...). Convidei os principais Ensaístas do site e já contava com a anuência do Daniel Piza e do Diogo Mainardi, quando resolvi ir ao Rio, convidar mais "pesos pesados". Ao chegar no hotel, havia uma mensagem para mim, por escrito: "Sr. Millôr Fernandes ligou". Era tão surreal aquilo, que resolvi guardar o bilhete e ficou na minha mesa de trabalho durante anos. Mais tarde, no meio das ruas do Rio, me liga o Millôr no celular. Era tão inusitado quanto... Marquei, com ele, no seu estúdio, no final da tarde. Antes, eu iria passar no apartamento do Ruy Castro, para convidar este e o Sérgio Augusto para o meu projeto.


Ruy no Leblon, perto da sua casa

* Já havia conhecido o Sérgio na época do meu primeiro site, o "J.D. Borges". E já havia encontrado o S.A., pessoalmente, na noite de autógrafos dos Lado B (2001). O Ruy Castro, eu conheci na Bienal do Livro de 2002, a minha primeira através do Digestivo... Eu havia criticado o Ruy na época do "J.D. Borges", e ele ficou um tempão olhando o meu cartão de visitas, no meio do evento, provavelmente me achando o maior cara de pau da Bienal... Perguntei se a letra estava muito pequena, ao que o Ruy Castro respondeu sério: "Não; eu enxergo muito bem...!" Nesse segundo encontro em sua casa, porém, o Ruy estava mais solto e fazia piadas comigo o tempo todo: "Senta aí nessa cadeira, foi o último lugar em que o Paulo Francis sentou quando esteve aqui pela última vez..."


S.A. e a New Yorker

* A conversa foi tão boa que o tempo acabou passando e eu tive de sair correndo para pegar o Millôr ainda no estúdio. O Ruy ― através da Heloísa Seixas, que tinha escritório no mesmo prédio do Guru ― me alertava que o Millôr, naquele horário, já devia ter ido embora. Mas eu tinha marcado... Fui. E o Guru do Méier havia, realmente, ido embora. Fiquei arrasado. Tinha furado com o meu herói...! Naquela noite, o Ruy Castro até havia me convidado para ir encontrá-los numa noite de autógrafos do Armando Nogueira, para onde eles se dirigiam depois da nossa reunião. Mas eu fiquei tão triste de ter perdido a hora com o Millôr que não consegui sair do hotel de novo. No dia seguinte, ia tentar a sorte no estúdio, mais uma vez.


Millôr no estúdio

* Acabei conseguindo uma outra hora com o Millôr. E não marquei mais nada, para não correr o risco de me atrasar. Era o dia de pegar o avião de volta, e eu fiquei com a minha mochila no meio da praia de Copacabana, lendo sobre a morte do Roberto Marinho (tinha acabado de acontecer). Um especial longo, na revista Época, onde o repórter revelava um dado curioso, sobre o velório do Paulo Francis. Contava que o corpo estava para ser enterrado no cemitério São João Batista, quando o Roberto Marinho chegou e quis ficar sozinho com o Francis. Saiu de lá comentando: "Era um rapaz muito jovem..." O Francis havia chamado o Roberto Marinho de "cocô", no Pasquim. Mas o Roberto Marinho o contrataria, anos depois, na TV Globo. (Segundo o Rodolfo, para descrença do Millôr ― que nunca acreditou que o Francis iria para a Globo...)


Mais uma, clássica, no estúdio

* O Millôr me recebeu, por fim, em seu estúdio. E não estava bravo comigo, para a minha total surpresa. Até fez café para mim, o que foi mais um dado surreal daquele encontro... Eu carregava um "boneco" do projeto de revista do Digestivo e ele quis olhar. O homem que havia passado por toda a história da imprensa brasileira no século XX, desde a revista Cruzeiro, me elogiou de novo: "Está muito bem diagramado". Estava sendo gentil, claro. Eu havia feito um simples curso de PageMaker e havia me inspirado, largamente, no projeto gráfico da New Yorker (o mesmo que inspirou a Piauí, tempos depois). Em seguida, o Millôr pôs seus óculos e começou a ler os textos, que eram dos Colunistas do Digestivo até então. Em mais um gesto de grandeza seu, comentou que nunca escreveria um trecho como "a clássica frase" (de um dos Colunistas mais populares do site). Preferia "a frase clássica" ― porque, simplesmente, não conseguia posicionar o adjetivo antes do substantivo. De repente, editando os nossos textos, o Millôr era um de nós.


Digestivo na GV-executivo

* Além de convidá-lo para o projeto de revista do Digestivo ― que ele desde o começo aceitou ―, eu queria tentar entrevistá-lo, mas ele, imediatamente, me desestimulou. Há quase dez anos, revelou que todo mundo queria fazer "a última entrevista" com Millôr Fernandes. Mas rebatia que havia escrito o roteiro da própria vida, e que não morreria no final. "No máximo, desapareço na linha do horizonte!" Subitamente, desisti de perguntar qualquer coisa e deixei só ele falar. Eu me sentia como numa das "aulas espetáculo" do Ariano Suassuna, mas era a única pessoa na plateia. Comigo pensava: "Quanto vale o tempo deste homem?"


A GV-executivo com o Digestivo

* Perdi a noção do tempo, aliás, e não sei quantas horas fiquei no estúdio. Só sei que quase perdi o avião também. O taxista teve de seguir "voando". Entrei correndo no aeroporto. E até hoje não sei como pude embarcar. Durante o voo, peguei meu caderno de anotações e registrei as falas do Millôr. Eu não planejava fazer nada com aquilo, mas também não queria perder nenhum detalhe. Fui inaugurar a seção "Entrevistas", no Digestivo, anos depois, mas nunca quis usar as minhas anotações para reconstituir minha conversa com o Millôr. Continuei em contato com ele, mas, mesmo quando voltei ao Rio, fiquei sem graça de marcar, de novo, no estúdio. Sempre imaginei que homens importantes, como o Millôr, eram muito incomodados, e eu não queria ser chato. A revista do Digestivo não saiu naquele ano, mas, no ano seguinte, fizemos uma com a FGV/SP, e o Millôr fez, orgulhosamente, a capa. (Tenho até hoje guardado o desenho que ele nos mandou.)


* O Millôr era uma lenda viva da imprensa e da cultura do Brasil e não encontro ninguém à altura para substituí-lo. Além do Paulo Francis, conviveu com outro ídolo meu, o Nélson Rodrigues. Em Anjo Pornográfico, a biografia do Nélson, o Ruy Castro nos conta que o Millôr foi o único homem a ser admitido no clã dos Rodrigues. (Tanto que, por ser o único rapaz a frequentar a casa da família, teve as três irmãs do Nélson apaixonadas por ele...) O Daniel Piza ― que o Millôr chamou de "aquele moço amigo do Paulo Francis" ― uma vez me confessou que tinha passado um tempão em dúvida sobre quem admirava mais: o Francis ou o Millôr. "Por causa das frases", justificou...

Para ir além
Millôr no Digestivo

Julio Daio Borges
São Paulo, 30/3/2012

 

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