Inferno em digestão em <I>Terra sonâmbula</I> | Blog de Renato Alessandro dos Santos

busca | avançada
63210 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Lenna Baheule ministra atividades gratuitas no Sesc Bom Retiro
>>> “Carvão”, novo espetáculo da Cia. Sansacroma, estreia no Sesc Consolação
>>> “Itália Brutalista: a arte do concreto”
>>> “Diversos Cervantes 2025”
>>> Francisco Morato ganha livro inédito com contos inspirados na cidade
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> Literatura e caricatura promovendo encontros
>>> Stalking monetizado
>>> A eutanásia do sentido, a poesia de Ronald Polito
>>> Folia de Reis
>>> Mario Vargas Llosa (1936-2025)
>>> A vida, a morte e a burocracia
>>> O nome da Roza
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
Colunistas
Últimos Posts
>>> O coach de Sam Altman, da OpenAI
>>> Andrej Karpathy na AI Startup School (2025)
>>> Uma história da OpenAI (2025)
>>> Sallouti e a história do BTG (2025)
>>> Ilya Sutskever na Universidade de Toronto
>>> Vibe Coding, um guia da Y Combinator
>>> Microsoft Build 2025
>>> Claude Code by Boris Cherny
>>> Behind the Tech com Sam Altman (2019)
>>> Sergey Brin, do Google, no All-In
Últimos Posts
>>> Política, soft power e jazz
>>> O Drama
>>> Encontro em Ipanema (e outras histórias)
>>> Jurado número 2, quando a incerteza é a lei
>>> Nosferatu, a sombra que não esconde mais
>>> Teatro: Jacó Timbau no Redemunho da Terra
>>> Teatro: O Pequeno Senhor do Tempo, em Campinas
>>> PoloAC lança campanha da Visibilidade Trans
>>> O Poeta do Cordel: comédia chega a Campinas
>>> Estágios da Solidão estreia em Campinas
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> FLIP X FLAP
>>> Viciados em Internet?
>>> Um plano
>>> 29ª Bienal de São Paulo: a politica da arte
>>> Música Popular, não
>>> Cinema de Poesia
>>> O anti-Twitter
>>> Sonia Regina Rocha Rodrigues
Mais Recentes
>>> A Dinâmica da Consciência - William James Revisitado de Renato Rodrigues Kinouchi pela EdUFABC (2013)
>>> Agora É Com Você! de Patricia Kenney pela Madras (2008)
>>> Palmeiras X Corinthians 1945: O Jogo Vermelho de Aldo Rebelo pela Unesp (2010)
>>> Uma Nova Fase Do Capitalismo? de François Chesnais/ Gerard Duménil e outros pela Cemax (2003)
>>> As Rosas de Rainer Maria Rilke pela 7 Letras (2002)
>>> Falsa Submissão de Laura Reese pela Record (1996)
>>> As Rãs de Mo Yan pela Companhia Das Letras (2015)
>>> O Compadre De Ogum de Jorge Amado pela Record (2006)
>>> Nevasca de Neal Stephenson pela Aleph (2008)
>>> Como Manipular Pessoas de Robert-Vicent Joule e Jean-léon Beauvois pela Editora Novo Conceito (2010)
>>> ¿dónde Está Emiliano Fuentes? Aventura Joven de Elvira Sancho pela Difusión (2011)
>>> Hacking Growth de Sean Ellis/ Morgan Brown pela Alta Books (2020)
>>> Memorial de Maria Moura de Rachel de Queiroz pela Folha de S. Paulo (2008)
>>> Aborrecente, Não. Sou Adolescente! de Vera Lúcia Marinzeck De Carvalho pela Petit (2000)
>>> Realismo Capitalista de Mark Fisher pela Autonomia Literária (2020)
>>> Feminismo, corpo e territórios de Preta Ferreira e Judith Butler/ Flávia Birolli pela Boitempo (2023)
>>> As Outras de Evelyn Lau pela Scipione (1998)
>>> O Herói E O Fora-da-lei de Margaret Mark/ Carol S Pearson pela Cultrix (2019)
>>> A Hora Do Amor de Álvaro Cardoso Gomes pela Ftd (2001)
>>> Mr Holmes de Cullin Mitch pela Canongate London (2015)
>>> Eterna Vigilancia - Como Montei E Desvendei O Maior Sistema De Espionagem Do Mundo de Edward Snowden pela Planeta (2019)
>>> De Paris, Com Amor de Lino De Albergaria pela Saraiva (2009)
>>> Escolhas. Uma Autobiografia Intelectual de Heloisa B. Hollanda pela Língua Geral (2009)
>>> Às Vezes Um Pássaro - Poesia de Various pela Pontes (2014)
>>> Jóvenes y procesos migratorios: "Nosotros perdimos la patria, quedará siempre esa ausencia?" de Maria Isabel Castillo, Isabel Piper Shafir pela Instituto Latinoamericano De Salud Mental Y Derechos Humanos (1996)
BLOGS >>> Posts

Domingo, 12/6/2016
Inferno em digestão em Terra sonâmbula
Renato Alessandro dos Santos
+ de 3400 Acessos

"Aqui nadie se queda inmóvel. Mi pueblo es movimiento. Mi pátria es um camino." (Pablo Neruda)

"Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem." (Bertolt Brecht)

Olhando para trás, lá se vão 24 anos. Terra sonâmbula, romance de Mia Couto, tem essa idade - praticamente o mesmo número de anos que sinalizam o fim da guerra civil de Moçambique, em 1992. Vida difícil a dos moçambicanos. Não bastasse a independência tardia (1975), encerrando a fase de guerra anticolonial, o país entrou em outra batalha, interna, a guerra civil que, de 1976 a 1992, deixou o chão e a vida esburacados. Luta necessária, amplamente mortífera, e que assinala um período em que um tardio império decadente não mais estenderia suas mãos para pilhar e para fazer sofrer aqueles que, além-mar, viram-se enredados numa máquina lusitana que perdeu a sincronia com a máquina do mundo. Duro é compreender que finda a luta pela independência, de 1965 a 1975, contra aqueles que vieram com a língua de fora, começaria outra contra aqueles que, do lado de dentro, não se compreendiam nação uma, surdos que estavam à diversidade de línguas que demarcam territórios e que expuseram uma cizânia, uma ferida que indicava que o ódio e a intolerância ainda tinham muito a dizer a Moçambique.

E a literatura, o que tinha ela a falar sobre tudo isso?

Uma boa resposta está em Terra sonâmbula, um dos 12 livros africanos mais admirados do século 20. “Nele”, afirma a professora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, “as estórias entrançadas constituem-se como uma rede poética que dá a resposta da literatura à crise político-social por que passa Moçambique”.

E que resposta! Política e literatura de mãos dadas, depois de levantadas do chão.

Primeiro, repleta de sinais de uma guerra recente, a estrada por onde passam dois personagens que levam o leitor travessia adentro. Os sinais: carros incendiados e retorcidos, pessoas mortas e carcomidas a servir de pasto a aves de rapina; sem comida, sem futuro, sem sonhos. A terra está sonâmbula.

Depois, esses personagens que, no romance, fazem a diferença e indicam o desenrolar do enredo. Dois. Um velho e um menino: Tuahir e Muidinga. Duas gerações a abrir a estrada para seguir adiante. A tradição e o porvir. O menino perdeu voz, dignidade, esperança, mas o velho ajuda-o a reencontrá-las, e partem, até porque não há outra coisa a fazer a não ser manter-se em movimento.

O machimbombo & a mala

Caminham os dois e, de repente, veem um machimbombo abandonado, uma espécie de micro-ônibus que servirá como uma âncora aos dois, âncora para regressar, âncora temporária a amortecer as agruras da estrada. Mas o que é aquilo ali? Ali está o que restou de um homem e, anexado a ele, uma mala. É preciso enterrar o corpo, e eles assim o fazem; é preciso ver o que há dentro daquela velha mala e, ao abri-la, o que o menino encontra são onze cadernos, escritos por Kindzu, terceiro personagem que, fugitivo também, será uma espécie de bálsamo para a travessia de Tuahir e Muidinga, porque nesses apontamentos os dois encontrarão o sonho que parece inexistir na terra sonâmbula.

E vai assim, um livro dentro do outro, em abismo. Muidinga descobre que sabe ler, algo que julgava perdido, e, levantando a voz, narra para Tuahir, cego para as miçangas das letras, a biografia misteriosa de Kindzu, cuja vida também é marcada pelo movimento pícaro da estrada e pelas investigações oníricas que engendra.

Kindzu é filho de um pescador, o velho Taímo. O pai não compreende que o filho tem de ir embora de sua terra, e o menino não entende o porquê da ojeriza do patriarca. Conflito de gerações, conflito marcado por duas visões contrastantes: o filho acredita que a resposta está lá fora, enquanto o pai não o perdoa por fugir e escapar de onde nascera. Eis o sal da terra. Kindzu parte, bem como o pai, que resolve ir para o além-mar que separa o mundo dos vivos e dos mortos. Longe de casa, o rapaz espera encontrar os naparamas, guerreiros que estão mais para lá do que pra cá, isto é, que têm lá seu quinhão no mundos dos mortos e, por isso, representam a tradição de heróis que podem recuperar a grandeza da terra para seu povo.

Parte Kindzu, e seu pai, vez ou outra, surge para lhe iluminar ou apagar o caminho, pois o velho - no mundo dos mortos - ainda não o perdoou. E estrada afora, o passado do país é reaceso pela voz do filho, que, estrada adentro, reencontra ancestrais capazes de resgatar o fio da memória tão severamente obliterado pela assimilação lusitana, isto é, pela borracha que os portugueses esforçaram-se em usar a fim de apagar a memória popular. Assim, emergem estórias capazes de ilustrar a cisão entre o mundo real e o mundo dos sonhos, espelhados pela narração em primeira pessoa de Kindzu e contrastados pela terceira pessoa do narrador, que apresenta a realidade em ruínas, em carcaças, em destroços que povoam a estrada de Muadinga e Tuahir.

É essa voz de Kindzu que resgata o saber africano dos anciãos, bem como a identidade perdida durante o processo de colonização português. Em seus cadernos, a poesia resgata os laços do passado, trazendo ao encontro do leitor a memória do tempo perdido: o canto do galo mimético e independente de Vinticinco de Junho, ou Junho ou Junhito; a perseguição de Nhamataca por rios, à espera de vê-los brotar da terra; as velhas em transe que em busca de gafanhotos parecem ecoar um canto ranzinza de cigarras; o velho português Romão Pinto e sua esposa, a africana Virgínia, personagens que carregam no nome o fardo da colonização; a mulher que em busca do filho ocupa a carcaça de um velho navio ancorado, repleto de mantimentos que apodrecem à revelia de uma população faminta... Essas e outras estórias são costuradas por Kindzu, enquanto do outro lado do espelho os dois personagens servem-se delas como aqueles que, na oração, encontram força para escapulir de uma vida rasteira e seca.

É assim, nesse diálogo entre o passado e o presente, entre o imaginário e a realidade, que Terra sonâmbula encontra, por meio da literatura, o caminho por onde os moçambicanos têm de seguir adiante, estrada afora, vida adentro, como um metrônomo que regressa ao passado para, no presente, seguir como o rio que vai engolindo tudo pela frente, a despeito das margens que o oprimem.

+++

ilustração de HELTON SOUTO

+++

RENATO ALESSANDRO DOS SANTOS, 44, é professor no curso de Letras do Centro Universitário Moura Lacerda e no Colégio COC-Batatais. Fez doutorado em estudos literários na UNESP, de Araraquara, e é autor de Mercado de pulgas (Multifoco), da dissertação A revolução das mochilas e da tese Romances rebeldes — a tradição de rebeldia na literatura norte-americana: de Moby Dick a On the Road. É editor deste sítio: TERTÚLIA. Contato: realess72@gmail.com; Facebook: Renato dos Santos Santos.

+++

HELTON SOUTO nasceu em 76. Ribeirão Preto. Casado com Silvana. Cientista social, educador, gerente de projetos na área de educação e juventude, artista plástico e ilustrador. Desenha e pinta desde sempre. Torce para o São Paulo. E seu cachorro se chama Yoda. Blog: Andar na pedra. Contato (Facebook): Helton Souto.



Postado por Renato Alessandro dos Santos
Em 12/6/2016 às 14h12

Mais Blog de Renato Alessandro dos Santos
Mais Digestivo Blogs
Ative seu Blog no Digestivo Cultural!

* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Economia Brasileira Contemporanea Gremaud
Amaury Patrick et Al
Adios
(2004)



Técnica da Chefia e do Comando
Celso de Magalhães
Ibge



O Livro do Juízo Final
Roselis Von Sass
Ordem do Graal na Terra
(1988)



Os Filósofos e as Máquinas
Paolo Rossi
Companhia Das Letras
(1989)



Cidades Mortas
Monteiro Lobato
Globo
(2010)



Dois Pontos e uma Reta
Seicho Matsumoto
Clube do Livro
(1970)



500 Anos
Regina Coeli Rennó
Ftd
(1998)



O Sabor do Churrasco
Carlos Gabriel
Melhoramentos
(2005)



O Signo dos Quatro 2 299
Sir Arthur Conan Doyle
Melhoramentos



Homeopatia
Joseph Tétau
Dolisos
(1985)





busca | avançada
63210 visitas/dia
1,7 milhão/mês