Sou do tempo em que helicóptero era chamado de autogiro e avião era aeroplano, nos arredores dos anos 45 do século passado.
Às vezes, noite velha, eu acordava com o som longínquo de um aeroplano flanando nas nuvens, e imaginava ser o Flash Gordon em sua nave futurista, concebida pelo traço genial de Alex Raymond, até que o sono me embalasse de novo para a escuridão do nada.
Os espigões que agora pululam pela minha ex-doce e amorável Nictheroy, chamavam-se, naqueles idos, arranha-céus e se contavam por alguns dedos de uma só mão. As ruas eram povoadas por casas com generosos quintais, onde floriam e frutificavam árvores e flores, com o perdão da redundância aqui empregue com o intuito único de emprestar cores fortes ao cenário recriado pela imaginação.
No mar, as barcas movidas por rodas, como as do velho rio Mississipi de antanho, batizadas como Segunda e Terceira e mais duas outras de cujos nomes não me recordo, levavam cerca de uma hora para atravessar a baía. O mundo de então era regido por outro compasso.
Levado por meu pai para comprar roupas no Pavilhão, sempre de um tamanho maior para serem aproveitadas por mais tempo, eu procurava me esquecer das calças de “fundilhos de coar café” que me aguardavam, olhando pela janela a coreografia alegre dos botos que saltitavam ao lado da embarcação, exibindo-se aos passageiros. Penso que foram eles, esses patuscos dançarinos do mar, os precursores do nado sincronizado dos jogos olímpicos de hoje.
A Praia de Icaraí, de águas límpidas como, de resto, todas as outras, ostentava o trampolim, cartão-postal e orgulho da cidade, de cuja plataforma mais alta só os ousados se aventuravam a saltar, pois, dizia-se, um desses mergulhadores morrera ao bater de cabeça na areia, já que ali o mar não era profundo. O trampolim era uma lenda urbana agora reduzida ao preto e branco das fotografias antigas.
Foi uma era de amabilidade e gentileza, substantivos que caíram em desuso. Na Praia das Flexas (grafada assim mesmo na placa oficial), as pessoas cumprimentavam-se pelos nomes. Em suas águas cristalinas, viam-se cardumes variados, desde os pequenos peixes-agulha aos baiacus, sardinhas, peixes-voadores, arraias-manteiga que descansavam preguiçosamente no fundo, ao alcance de nossos pés, e também algas, estrelas-do-mar e até, de raro em raro, uma tartaruga marinha. Depois das ressacas, com o refluxo da maré pela manhã, eu, meu irmão João José e nossa sobrinha Leda acorríamos à praia para catar conchas e caramujos vazios, que viriam a se tornar os reis, rainhas, damas da corte e cavaleiros de armadura nos nossos enredos infantis.
Recordo-me dos tempos do Colégio Bittencourt Silva, de saudosa evocação, onde cursei a admissão, o ginasial e o científico, segundo a nomenclatura de então. Morando na Rua Pereira Nunes, eu ia caminhando até o colégio, na Rua José Bonifácio, ouvindo pelas janelas abertas das casas o prefixo musical, se não me engano um trecho do concerto de Grieg, que anunciava a radionovela imperdível pelas donas de casa, naqueles idos anteriores à era da televisão.
Alguns professores deixaram lembranças marcantes, como o Serapião “larga o lápis”, o professor Gualberto e sua indefectível “platina da bomba pneumática”, que jamais vimos, o mestre de Inglês, apelidado de “Deixa que eu Chuto”, pelo seu andar arrastando uma perna como se fosse chutar uma bola e finalmente o Diretor e dono do educandário, apelidado de Sinistro, por usar ternos escuros e andar pelos corredores das salas de aula como se pisasse sobre algodão.
Naqueles tempos de vacas magras, era uma aventura o dia em que, depois das aulas, contando os níqueis, podíamos dar uma chegada até a extinta Pastelaria Imbuhy, que exibia, ao fundo, uma réplica da barca homônima, que girava em torno de si mesma, para saborear um delicioso pastel com um copo de caldo de cana moída na hora.
O tempo, irreversível e inclemente, transformou em matéria de memória os dias de nossa adolescência, que este velho de cabelos brancos armazenou no empoeirado sótão da imaginação, entre sonhos, sombras e assombros
Uma das lembranças mais remotas — que me foi repassada em segunda mão — data dos primeiros tempos de nossa chegada a Nictheroy, quando meu pai, ainda atlético, costumava remar numa baleeira do Clube de Regatas Icaraí, indo desde a Itapuca até o Canto do Rio, e retornando, são e salvo, com restante da tripulação, de que também faziam parte o já famoso jurista e tratadista Nelson Hungria, autor do Código Penal de 1940, até hoje em vigor, além do tabelião Gaspar e do futuro desembargador Vieira Ferreira Neto.
Naquela época, nossa cidade era cortada de norte a sul pelos bondes da Cantareira, que transportavam para todos os recantos os ilustres passageiros, assim tratados pelo reclame de um fortificante, à vista de todos, que apregoava em versos: “Veja ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor tem a seu lado,/ e, no entanto, acredite,/ quase morreu de bronquite:/ salvou-o o Rhum Creosotado”. Eram assim, muitos rimados, os comerciais daqueles tempos românticos, quando nosso idioma, a bela Flor do Lácio, era falado corretamente. É curiosa a etimologia da palavra bonde, aliás, intraduzível, inspirada na denominação social dos detentores originários da exploração desse transporte urbano sobre trilhos, a Bond & Share Co. Havia inúmeras linhas para servir os diversos bairros: São Francisco, Canto do Rio, Av. Sete de Setembro, Largo do Moura, Circular, Santa Rosa, Viradouro...
Lembro que, nas manhãs de inverno, quando tomava, pontualmente, às sete e trinta, o bonde que me levava até Icaraí, rumo à escola de D. Carmen Cavalière D’Oro, eu tiritava de frio, pois as cortinas de lona eram insuficientes para barrar a friagem que varria o interior da condução em todas as direções. Às vezes, eu tremia tanto que chegava a bater queixo, apesar da capa Pelerine de casimira que herdara de um irmão mais velho...
Quando me debruço na abstrata janela da memória e aguço o olhar para esses tempos longínquos, revejo as tardes mortiças de domingo, onde a melopeia dolente de um realejo bordava de tristeza ainda maior a paisagem deserta de minha rua.
Tive a ventura de muitas décadas depois, em nossa querida e inditosa Friburgo, mostrar, na companhia de minha esposa Eny, aos nossos filhos Sandra, Júnior e João Paulo, um inesperado e anacrônico realejo, que já supunha de há muito varrido pela vertigem dos anos, manejado por um homem de avançada idade, ostentando um chapéu verde de duende, enquanto um periquito amestrado pinçava com o bico cartõezinhos da sorte para quem não temesse saber o que o futuro lhes reservava.
Ainda mais recentemente, desta feita em Santiago do Chile, na rua onde morava nosso caçula, João Paulo, no elegante bairro de Vitacura, numa tarde de sol domingueiro, surgiu de repente um realejo, para deslumbramento dos filhos de nosso filho e nossos netos Rafael e Emily — em contraponto com minha indiferença, pois já não tinha mais os olhos de criança.
Pode ser que nas incontáveis voltas e reviravoltas das rotações e translações que nosso planeta dá, talvez, quem sabe, venha a ocorrer, por obra e graça de alguma misteriosa conjunção astral, o retorno de um tempo que virou pó. Mas eu duvido.
Ayrton Pereira da Silva