Susan Sontag em carne e osso | Jardel Dias Cavalcanti | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 20/2/2024
Susan Sontag em carne e osso
Jardel Dias Cavalcanti
+ de 15600 Acessos


Em que alteraria nossa visão sobre a obra de um autor quando sua vida pessoal, com suas neuroses, suas obsessões, seus ressentimentos, suas dores e fraquezas são expostas aos seus leitores?

O livro Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag, da escritora Sigrid Nunez, publicado pela Editora Instante, se propõe justamente a isso: entrar na intimidade da escritora e ensaísta mais importante dos Estados Unidos, revelando o prosaísmo de seu dia a dia, suas confissões, desgostos, o sentido de suas relações pessoais e profissionais e aquilo que os amigos chamavam de seu lado “monstro”.

Não é um livro fácil para quem é admirador tanto da romancista como da ensaísta brilhante que Sontag era. No entanto, na balança das revelações feitas por Sigrid sobre a escritora pesam, lado a lado: a grande criatividade e o intenso trabalho a que a escritora se submetia ― e o seu lado mesquinho.

No final da leitura não deixamos de perceber que, apesar da profunda admiração que a autora tem por Sontag, o livro soa como o olhar de alguém que se ressentiu da relação que teve com a ensaísta enquanto conviveu com ela.

Sigrid havia trabalhado como assistente editorial na The New York Review of Books e foi indicada para ajudar Sontag, então com quarenta e três anos, com sua correspondência acumulada devido ao tratamento de câncer.

Acabou indo morar na casa da escritora, depois de se relacionar com seu filho David (nome que Sontag lhe deu inspirado na escultura de Michelângelo).

O livro de Sigrid, portanto, é a revelação de um olhar privilegiado da intimidade da escritora a partir de sua convivência profissional, intelectual e afetiva. A memória dessa relação é instigante em vários momentos, principalmente quando revela as ideias de Sontag sobre a escrita e sua forma de trabalhar, suas predileções artísticas, quando comenta o mundo da literatura, do cinema ou das artes visuais.

Não deixa também de revelar seu lado sombrio, melancólico (que Sontag via como semelhante ao de Walter Benjamin, um de seus teóricos favoritos) e ranzinza, sua tensão com o mundo cotidiano e com as pessoas que a rodeavam.

Sigrid não havia lido a obra de Sontag quando começou sua convivência com a escritora, mas imediatamente se pôs a devorar seus quatro livros publicados até então. Influenciada pela obra de Virginia Woolf, Sigrid achou os ensaios dela fascinantes e os romances custosos de ler.

“A escrita ficcional de Susan era cativante, dramática, era densa naquilo que chamamos ideias arrojadas, declaradas com ousadia. Mas seu estilo... ela não tinha um estilo bonito. Não escrevia belas frases ― e, se havia algo a admirar em seus romances, eu não o havia captado.”

Quando estava escrevendo sobre a visita que fizera a Thomas Mann, e o fato de que não se lembrava dos detalhes da casa do escritor, Sontag revelou a Sigrid que havia tido uma revelação sobre sua própria escrita, sobre o que lhe faltava.

“Tinha a ver com os detalhes, ainda que fosse admiradora de Nabokov, ela não seguia a famosa regra dele: ‘afagar os detalhes divinos’[...] Se esse era o ponto fraco de sua obra, foi o que se determinou a corrigir com uma vingança, quando se sentou para escrever seu romance seguinte. O amante do vulcão é simplesmente saturado de detalhe sensorial e específico, que não é encontrado em sua escrita pregressa.”

As confissões de Sontag sobre sua relação com a mãe (“Péssima mãe. Mulher dragão. Era avarenta também”), Sigrid revela como a ferida nunca cicatrizada no coração da ensaísta e as consequências desse sentimento na criação do filho David. Toda vez que agia de maneira oposta à própria mãe atribuía pontos a si mesma. Mesmo tentando não ser negligente como a mãe havia sido com ela, sempre exigiu que David não a tratasse como mãe, no máximo como “uma irmã mais velha”, tornando-o mais um companheiro do que um filho.

Também o livro de Sigrid relata o encontro amoroso de Susan com o poeta Joseph Brodsky, que fora expulso da União Soviética anos antes, e que fora condenado a trabalho agrícola forçado por “parasitismo social”. O poeta russo, segundo Sigrid, apesar de jovem estava envelhecido por causa do tabagismo intenso e doenças cardíacas, era praticamente careca, faltava-lhe dentes, tinha uma barriga enorme, usava as mesmas roupas largas e sujas todos os dias ― no entanto, Sontag estava encantada com ele, com seu romantismo e algo determinante em sua admiração era o fato de que ela “fazia parte daquele grupo de literatos estadunidenses para quem escritores europeus eram sempre superiores aos locais e para quem sempre havia algo particularmente exaltado e sedutor em um escritor russo, sobretudo em um poeta russo. Susan estava a seus pés.”

E, depois do câncer, Sontag queria não só trabalhar, mas se divertir e encontrou em Brodsky essa diversão, por um tempo. Começou a colaborar, como Sontag, escrevendo ensaios para a New York Review e ficava ansioso para ouvir a opinião dela, mas Susan entrou em crise não tendo coragem de ser honesta com as deficiências que via nos textos dele. Brodsky, apesar de não ser esnobe nem envaidecido, “era ruidoso quanto à sua opinião de que os poetas eram uma raça superior de seres humanos e que ele próprio estava posicionado entre os melhores do mundo.” Apesar do afastamento amoroso, mantiveram grande amizade até a morte do poeta.

Sontag dizia-se apaixonada pela beleza. No entanto, tinha horror ao mundo natural, ao campo, que via como um lugar entediante. “Porque alguém desejaria sair de Manhattan ― a capital do século XX ― para passar um mês no meio do mato?” Beleza mesmo ela via nas pessoas, “em todos os tipos e em muitos homens e mulheres em que outras pessoas não encontravam nada de excepcional. Se alguém tivesse ao menos um traço marcante era ‘lindo de morrer’.”

Em geral, as anotações sobre o comportamento de Sontag são resultado muitas vezes da oposição aos gostos e interesses de Sigrid. Como, por exemplo, o interesse por Virginia Woolf, que a ensaísta considerava um gênio, mas o fato de Sigrid mantê-la acima de outros líderes literários lhe parecia algo mirim. Sontag odiava linguagem infantil de qualquer tipo e via nas cartas de Woolf a Violet Dickinson palavras tolas de ternura e “conversinhas de meninas” e achava ridículo a escritora se apresentar como um pequeno animal fofo.

Sobre a fraqueza feminina desconfiava de mulheres que reclamavam da menstruação, achando que elas exageravam as suas inconveniências e desconfortos, que acabava por refletir o mito da fragilidade e vulnerabilidade das mulheres. Ao ver Sigrid deitada no colo de David, viu ali a fraqueza feminina, que se traduziu num olhar que dizia “você não me engana” e balbuciou, ironicamente: “A pequena menina e seu grande homem”.

Quanto ao feminismo, Sontag “era feminista, mas frequentemente criticava suas irmãs feministas e boa parte da retórica do feminismo por serem ingênuas, sentimentais e anti-intelectuais. E podia ser hostil com aquelas que se queixavam de ser sub-representadas nas artes ou banidas do cânone, lembrando-as urgentemente de que o cânone (ou a arte, ou o gênio, ou o talento, ou a literatura) não era um empregador que oferece oportunidades iguais.”

Segundo Sigrid, ela “exasperava-se ao perceber que a companhia de mulheres até mesmo muito inteligentes não era, em geral, tão interessante quanto a de homens inteligentes”. Não tinha apreço pela ideia de uma “literatura feminina”. Disse a Sigrid: “Cuidado com a guetização. Resista à pressão de pensar em si mesma como mulher escritora [...] Resista à tentação de pensar em si mesma como vítima (ela não tinha paciência com fracas que não podiam cuidar de si mesmas).” Susan odiava a falta de humor e achava que mulheres sem humor são desagradáveis e que este era um elemento das feministas.

Um momento de crise entre Sigrid e Sontag foi quando Nicole Stéphane, atriz e ex-amante da escritora, foi passar um tempo com eles. Sigrid iniciamente queria conhecer a atriz que fez As crianças terríveis, filme de Jean-Pierre Melville de 1950. Nicole era dez anos mais velha que Sontag e se sentia na obrigação de cuidar dela, inclusive cuidando de sua alimentação.

Tomada por acessos de raiva, choro, irritações, geralmente ouvidas nos resmungos na cozinha, Nicole começou a se incomodar com Sigrid a ponto de, ao vê-la abraçando David, insinuar que agia como uma prostituta. Defendia Susan contra David e se surpreendia com o fato de que ele “tivesse arrumado uma namorada que nem sabia fazer um ovo cozido”.

A sucessão de acusações contra Sigrid, inclusive publicamente, e depois a tensão com a própria Sontag fez com que se afastassem novamente.

Sigrid narra também a influência de Sontag na sua formação intelectual, a descoberta de autores como John Berger, Walter Benjamin, Cioram e Simone Weil se deve a ela. Informava também sobre seu gosto por alguns escritores americanos e seu desprezo por alguns deles. Respeitava, mas não amava Faulkner, embora dissesse que o último romance de primeira linha estadunidense era Luz em Agosto, do escritor. Não se entusiasmava por Roth e Updike e achava perniciosa a influência de Raymond Carver na ficção norte-americana. “Ela não conseguia se emocionar com um escritor que escreve da mesma maneira como fala”. Indicava leituras para Sigrid que ela sempre adorou, como Os emigrantes, de W. G. Sebald, que ela elogiava sem parar.

Sontag nunca acatou a escrita de Sigrid como importante, não deixava de criticar seus textos. E nesse livro sobre Sontag, é nesse momento que ela começa a mostrar a face negra da ensaísta. Deu conselhos à jovem escritora, “deveria tentar escrever de maneira mais elíptica e agilizar a prosa para fazê-la se mover em um ritmo mais rápido (se há uma coisa que o modernismo nos ensinou é que a velocidade é tudo)”. Único conselho que Sigrid achou importante. “Eu era como muitos dos alunos que viria a ter. Não é crítica que muitos escritores jovens querem, apenas elogios, muito obrigado.” Das muitas sugestões de Sontag sobre seus textos Sigrid não adotou quase nada, e isso a magoou.

“Nunca tive um mentor”, dizia Sontag, apesar de elogiar seus mestres docentes Leo Strauss e Kenneth Burke. “Assim como vários escritores, comparava o ato de lecionar com o fracasso[...] A pior parte de lecionar era que consistia, inescapavelmente, em um emprego, e aceitar qualquer emprego era humilhante para ela. Também achava humilhante pegar um livro emprestado da biblioteca em vez de comprar seu próprio exemplar.”

Segundo Sigrid, sua resistência a lecionar se deve ao fato de ela ter uma paixão por ser aluna. Sempre viveu como estudante, até na forma de organizar a sua casa. Seus amigos a comparavam a uma criança (incapacidade de ficar sozinha, habilidade em se maravilhar, lado adorador de heróis e necessidade de idolatrar em quem se inspirava).

“A imagem permanente que tenho dela se encaixa perfeitamente na de uma estudante, daquelas fanáticas: ficar acordada a noite toda cercada por pilhas de livros e papéis, acelerada, fumando um cigarro atrás do outro, lendo, fazendo anotações, martelando a máquina de escrever, motivada e competitiva[...] Até mesmo seu apartamento evocava a vida estudantil.”

Recusou vários convites para ser professora, mesmo quando não tinha dinheiro, e se parabenizava por isso, irritando-se com escritores que ganhavam bem e se submetiam à profissão. “Segurança em vez de liberdade era uma escolha deplorável. Era servil.”

O que mais incomodava Sontag era que não se sentia levada à sério. A crítica dos amigos aos seus filmes (“porque fez um filme tão chato?”), as perguntas durante palestras (os estudantes europeus são mais inteligentes que os americanos). Também o fato de ser considerada melhor ensaísta que romancista a atordoava, afinal, era como escritora que queria ser lembrada.

Sentia-se insegura quando cedia em relação ao que acreditava ― “Beckett não faria isso”, dizia quando cedia uma entrevista à TV, que ela repudiava. Kafka e Simone Weil foram suas pedras de toque, queria ser “pura” como todos eles. Mas precisava vender livros, já que lecionar não entrava no seu vocabulário.

Ser escritora visitante ou professora, e até dar palestras, a incomodava. Suas improvisações depunham contra ela. Mas ela afirmava-se: “Não tenho palestra enlatada.” Hostil com as plateias em suas aparições públicas, deixava aparecer a má vontade de estar ali se vendendo por dinheiro. Sua má reputação só aumentava assim.

Para Sontag, ser escritor é uma vocação, não uma carreira. E quando soube que Javier Marías disse que a pior coisa que um escritor pode fazer é leva a si mesmo ou sua obra a sério, ela sentiu que assim talvez poderia ter sido uma escritora melhor. Mas que seu modelo inicial era outro. Literatura como religião, como no caso de Woolf, era sua meta. Embora se opusesse à ideia de Woolf da literatura como “sentença de uma mulher”, gostava da sua ideia da adoração pelos livros, a ideia do paraíso como leitura eterna. “Afinal, o que lhe importava era a vida da mente e, para que essa vida fosse plena, a leitura era a necessidade.”

Para Sontag pagar o preço da infelicidade por ser escritor não era problema. A professora de Sigrid, Hardwick, dizia a seus alunos: “Era preciso estar realmente entediado com a vida para se tornar escritor.” No entanto, ela não via isso como uma sentença para escritores homens. O conselho de Sontag era: “Nunca se preocupe em ser obsessiva. Eu gosto de pessoas obsessivas. Pessoas obsessivas fazem grande arte.” Ela também gostava de excluídos, segundo Sigrid. Gostava de se ver como excluída. “Ser desprezado em certas circunstâncias, ou por certas pessoas, podia constituir um excelente elogio.”

Os hábitos de trabalho de Sontag eram considerados terríveis, segundo Sigrid. Ela não era disciplinada, não conseguindo se organizar para escrever diariamente. Seu desejo de ver filmes, peças, óperas, dança ou viajar a desconcentravam. Para se concentrar, tomava Dexedrine e trabalhava o tempo todo sob efeito do remédio, saindo raramente, ficando acordada até a finalização de um trabalho. “Ela dormia o mínimo possível, não se podia convencê-la de que havia algum valor na atividade da mente inconsciente. Dormir era perda de tempo.” Evitou drogas que alterassem a percepção.

Era dependente da presença do filho, como dos amigos, sua casa vivia cheia e sempre recebia escritores e intelectuais (entre eles, Jean Genet). Não suportava ficar sozinha. Sua dependência com o filho ― que nunca quis que pensasse nela como mãe ― fez com que se tornassem muito parecidos, “compartilhando a maioria dos gostos, interesses e paixões.” Sontag gostava da foto de seu maior herói literário Roland Barthes sendo carregado pela mãe, mesmo tendo já um tamanho razoável.

Não suportava “casais”, “não importa quão interessantes uma ou ambas as pessoas pudessem ser quando vistas separadamente, quando juntas eram invariavelmente chatas.” Seu lado “monstro”, como diziam, aparecia de várias formas. Era por vezes atacada duramente, como quando denunciou o comunismo como uma forma de fascismo, num encontro em apoio ao movimento Solidariedade da Polônia. Controlava David para que não tivesse filho, o que arruinaria sua vida, segundo ela. Numa mesa, chegou a dizer a Sigrid e David que fizessem apenas meia-nove na cama para que não se preocupassem com controle de natalidade. Queria proibir seu filho também de trabalhar como editor quando Roger Strauss lhe ofereceu emprego. Sontag queria sustentá-lo para permitir que apenas escrevesse.

Embora aconselhasse as pessoas a não fazer terapia ― considerava que o estoicismo era a resposta exemplar à depressão ― acabou fazendo análise. Sua irritabilidade aumentou com a velhice e a tornou mais sombria. Inclusive enfrentando o terapeuta, que dizia que ela teria tentado fazer do filho um pai dela.

Se autodenominava melancólica, mas segundo Sigrid era uma raiva sombria que a dominava, o que a fazia reagir ao mundo chutando e gritando. Amedrontava seus amigos com críticas duras, corrigindo-os, dizendo que precisavam ser informados, fazendo isso com grosseria, muitas vezes com outras pessoas estando presentes. Descarregava seu gênio ruim em funcionários de hotéis, restaurantes, cafés.

“Mas a raiva despertada nela por prestadores de serviços era irracional. Havia muito ódio naquilo.” Achava-se no direito de repreender as pessoas. Sua mágoa, fruto da sensação de descontentamento com a vida, a despeito das conquistas, era fruto também da sensação de fracasso. Seu sucesso como ensaísta não era a resposta para seus sonhos, que era ser uma romancista das grandes. “Insistia que ela era uma escritora de ficção que por acaso escrevia ensaios, e não o contrário. O fato de ninguém ter comprado essa ideia foi uma das maiores frustrações de sua vida.”

Essa percepção mudou um pouco depois que O amante do vulcão se tornou um best-seller, com sucesso de crítica. Chegou a ganhar o National Book Award de Ficção. “As pessoas tiveram que engolir isso”, registra Sigrid. “Quanto mais velha ficava, mais se arrependia de não ter dedicado uma parte muito maior de si mesma à arte do que à crítica ― assim como se arrependia do forte senso de obrigação moral que a levou a destinar tanto tempo às boas causas. Mais artista e menos crítica, mais autora e menos ativista: assim devia ter vivido.”

Um de seus ressentimentos era ligado a segurança financeira, que só depois dos cinquenta anos conseguiu. Às vezes, segundo Sigrid, se sentia cercada por pessoas que tinham mais do que ela economicamente, e irritava-se com o fato de que essas pessoas não tinham dado a contribuição valiosa para a cultura como ela fazia.

Quando Sontag morreu, David a enterrou em Paris, no mesmo cemitério de Beckett, um dos seus escritores preferidos.

Graças ao livro de Sigrid podemos adentrar um pouco na casa de Sontag, como no seu cotidiano, um pouco além de seus Diários (já publicados no Brasil), imprescindível para acompanhar o universo mental da grande escritora e ensaísta.



Jardel Dias Cavalcanti
Londrina, 20/2/2024

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