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Domingo,
14/6/2015
O mestre
Raul Almeida
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Meia hora antes fosse almoço ou jantar, o mestre revisava tudo. Observava em detalhe a posição de cada peça do mobiliário ou decoração, as flores, a mesinha com o livro de reservas, a franja do tapete. Depois, andava por entre os corredores formados pelas mesas e cadeiras alinhadas com precisão.
A altura das bainhas das toalhas, a distancia entre a borda dos pratos e a da mesa, o rigor com os talheres, até a colocação das cadeiras era, milimétricamente, cuidada. Aí, as velhas práticas predominavam: Não dispensava a guia do comprido fio de barbante. Era um perfeccionista, ainda que os clientes desarrumassem tudo logo depois. .
Era assim mesmo. Arrumar, desarrumar, arrumar de novo. Abolira a revista diária dos uniformes por conta da regularidade de sua brigada. Havia anos que não saia nem entrava ninguém. Vez por outra aceitava um estagiário. Quem conseguia o privilégio, saía empregado nos melhores concorrentes.
A cabeleira grisalha indicava a inclemência do tempo com as coisas do corpo. A jovialidade do seu sorriso emoldurado pela séria fisionomia marcada pelas sobrancelhas fartas e raramente aparadas, a postura elegante e reverente, os olhos amáveis, firmes e decididos eram acondicionadas no traje elegante, sem enfeites ou penduricalhos.
Discreto, gostava de artigos finos, mas não se exibia com ternos de griffe ou camisas de seda, preferidas pelos donos de negócios longinquamente similares, mas absolutamente diferentes.
Finalizava sua rigorosa inspeção, revisando os cardápios, a colocação das pequenas folhas com as sugestões do dia, a limpeza das capas e o estado dos cordonês.
Parecia um nativo quando dizia o tradicional:
-Vamos lá! Tudo pronto? Vamos abrir.
Nunca perdia a atenção ao trabalho, que executava com prazer, disciplina e conhecimento. Sempre disposto e sorridente, recebia aos clientes junto à porta. Lá na entrada. Quando estava conduzindo alguém, era ajudado por um auxiliar, Mâitre, como dizem os franceses.
Aquela hierarquia rígida, mas fluida, necessária e eficiente, era observada e praticada com a suavidade dos acordes de um moderatto sinfônico. Hoje, um aniversário de casamento daria ensejo a mais um dos seus solos espetaculares.
A reserva feita com antecedência de alguns dias sinalizava uma data a ser comemorada em grande estilo. Os clientes não queriam correr o risco de ter que esperar pelas cadeiras quentes de clientes mais prevenidos. O telefonema indicava a necessidade de, pelo menos, seis e no máximo oito lugares. Preferiam a vista para o jardim e gostariam muito de uma atenção do dono.
-Dono? Falaram dono? Não é mâitre nem chefe? Hahahaha.
-Acho que é a primeira vez, citaram um amigo seu e mandaram chamá-lo para fazer a reserva, mas o sr. não estava.
-Que pena... Bem, vamos fazer como de costume.
Não demorou muito para que os primeiros fregueses começassem a chegar.
-Boa noite! Esperam mais alguém? Serão quatro? Então... Vamos
-Boa noite!
Ah, um momentinho, disse o mâitre ajudante. Vou chamar o Chefe. Ele faz questão em recebe-los.
O casal se antecipara aos convidados e olhava deslumbrado para a coleção de pratos, quadros e adornos do pequeno vestíbulo. Dava para notar uma primeira vez naquele tipo de ambiente. Eram pessoas simpáticas, risonhas, com um filete de constrangimento tal como turistas de um primeiro roteiro. Coisa pouca, quase imperceptível, mas não aos olhos do experimentado chefe.
-Boa noite!
Que bom recebe-los!
Preparamos uma mesa especial, de frente para o jardim. Antecipamos um menu para sugerir, mas queremos que conheçam todo o nosso cardápio. Se quiserem escolher, teremos o mesmo prazer em atende-los.
Caminhava à frente dos dois enquanto falava, com seu sotaque europeu característico.
-Aqui estamos. Puxou a cadeira para a senhora ao mesmo tempo em que um ajudante apressava-se em fazer o mesmo para o cavalheiro. Enquanto entregava um dos cardápios a mulher e outro ao homem, confirmava o numero de comensais:
-Deixamos os oito lugares, aumentamos ou tiramos? Falava com determinação e suavidade, demonstrando a necessidade de começar a tomar providencias, sem forçar qualquer resposta.
- Acho que virão todos, respondeu a mulher.
- Bem, então está tudo prontinho!
- Vamos esperar um pouco para que cheguem.
- Claro!
A afirmativa tinha uma nota de cumplicidade, dando a impressão ao casal de que eles é que tinham inventado aquilo tudo.
-A seleção que imaginamos para uma data tão especial começa com uma pequena entrada, e depois um prato exclusivo, que será terminado aqui na frente.Colocaremos dois aparadores, e completaremos com um grande flambê.Vamos impressionar os convidados! .
Os olhos da senhora brilharam. Só tinha visto aquilo no cinema e tinha muita curiosidade de ver e experimentar como seria a liturgia gastronômica raramente praticada nos atuais restaurantes.
Sem mesmo perguntar o nome do tal flambê e, tirando as palavras pensadas e não pronunciadas da boca do marido, concordou sem pestanejar.
-Que lindo! Está ótimo, o sr, é mesmo formidável como o nosso amigo comentou.
Um sorriso de aurora boreal iluminou o semblante do experimentado mestre.
-Então, cooptando a simpatia da senhora, falou: Teremos uma noite inesquecível.
O Restaurante continuava a receber mais gente. Com as mesas ocupadas, perdia a formalidade imposta pela severa arrumação e fervilhava em vida com as conversas e movimentos das pessoas. Nada ruidoso demais. Lugar fino, de gente educada. Coisa para momentos especiais como aquele aniversário de casamento, ou para os que faziam das boas práticas, o melhor do seu quotidiano.
-Chefe! O patrono do jantar chamou o mâitre auxiliar e disse o nome por quem seus convidados iriam procurar.
-Não se preocupe, senhor. Os traremos para cá.
Alguns minutos depois a grande festa tomaria impulso, com os primeiros canapés e acepipes.
Todos provaram, comeram e gostaram, mas a historia que a senhora contara, quanto ao prato principal, criara uma expectativa de fim de copa do mundo.
As primeiras garrafas de vinho precedidas dos costumeiros rituais foram servidas. Agora era a hora do chefe mostrar porque o amigo tinha recomendado aquele lugar para comemorar uma boda de tantos anos.
O espetáculo começou com a substituição dos talheres, pratos e mais algum guardanapo caído no chão. Em seguida um cortejo formado por vários atores, foi se aproximando. À frente de tudo o Mestre. Depois o seu imediato, em seguida os ajudantes empurrando mesinhas sobre rodas, estreitas, forradas com toalhas de linho, encimadas por uns objetos cerimoniais. Nada mais do que fogareiros e frigideiras apropriadas para os serviços de flambagem. Pareciam muito mais imponentes de perto do que de longe.
O mestre começou por descrever o que aconteceria nos próximos momentos.
Os ajudantes continuavam trazendo pequenos recipientes de prata e cristal com especiarias, coisinhas cortadas, frascos com óleos misteriosos e um moinho de pimenta do reino, enorme, semelhante a um cetro.
-Vamos dar um acabamento e um toque especial nos sabores e aromas, finalizando com o conhaque flamejante...
Sua maneira de falar, a teatralidade exata para o evento, a gesticulação elegante e precisa hipnotizava a todos. Até alguns clientes mais acostumados, sentados nas proximidades olhavam com renovada admiração. Nunca se repetia! Sempre um novo número a cada vez que apresentava sua técnica refinada. Sempre uma nova e sensacional performance.
De toda a entourrage inicial, somente dois ajudantes continuaram ali, para acelerar o processo e servir cada prato, à medida que fossem guarnecidos.
A rapidez trazida pela prática, a precisão dos movimentos, a marcação perfeita para cada gesto, não diminuíam a sensação do cuidado prolongado com a preparação.
Ninguém dizia nada. Os olhos percorriam o espaço limitado pelo altar ali montado, detendo-se no sacerdote, seus ajudantes e na magia de um flambê tradicional.
Cada prato foi servido, obedecendo ao rígido protocolo: Primeiro a senhora e até ao patrão do rega-bofe ninguém se mexia. Parecia que o projetor do filme tinha emperrado. Estavam todos petrificados, dominados pelo Mestre que, sorrindo, agradeceu a atenção e convidou-os a provarem, a começarem a comer.
Que espetáculo! Que maravilha... Havia um certo estupor em todos.
-Bem, estarei a sua disposição para uma surpresa final.
Uma tênue conversa, quase murmúrio, começou a ser ouvida entre os convidados. Eram palavras de delicia e deleite. Bem para o fim alguém lembrou:
-Ele disse que ia ter uma surpresa.
A senhora não conseguia controlar a emoção. Estava espantada, sorridente e com os olhos incontrolavelmente arregalados.
Então? Como estamos?
Seguindo a regra que nunca se pergunta se o cliente gostou ou não, assim como não se deseja bom apetite a quem vem comer, o Mestre deixava que eles o aplaudissem com as palavras e com as fisionomias de felicidade. Alguém não se conteve e irrompeu em palmas. Todos acompanharam e até aqueles que não estavam na mesma turma, aproveitaram a oportunidade para aplaudir o professor.
- E a surpresa? Perguntou a senhora, vencida pelo charme do Mestre.
-Um momento. Apaguem as luzes.
O restaurante ficou na penumbra e uma chama tremeluzente foi chegando perto da mesa, derramando-se por todos os lados de uma montanha de merengue, montado numa bandeja de prata. Parecia um vulcão incendiado.Não demorou quase nada, menos que o minuto que pareceu um quarto de hora.
As luzes se acenderam, novas palmas, mais um largo sorriso e o discreto agradecimento.
Depois o café, os petit fours, a conta paga discretamente lá no caixa e o marido emocionado falou:
-Senhor, não vou esperar mais 35 anos para outro jantar igual a esse.
Despediram-se e o mestre entrou caminhando firme e tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. Fora, apenas, mais um flambê num aniversario de casamento.
Postado por Raul Almeida
Em
14/6/2015 às 16h27
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