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Sábado,
5/12/2015
A viagem
Raul Almeida
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A nesga de luz atravessou a persiana mal cerrada e, resvalando na parede caiada de branco, alumbrou o quarto, até ali em confortável penumbra.
- O que é que estou fazendo todo vestido? Perguntou-se, no momento do despertar modorrento.
Vestido assim, até sapatos... Que coisa maluca. Está quase na hora de ir ao médico...
Essa falta de memória...
Seguiu tentando articular os pensamentos. Talvez tivesse deitado e adormecido num surto de pressão baixa ou um ataque de amnésia recente.
Saiu do quarto, chegou na copa para tomar o café e percebeu que todos já tinham ido embora. Nem a empregada estava por ali.
- Que coisa. Devo estar muito atrasado, murmurou entre os dentes.
Não era preguiçoso, mas depois da aposentadoria, podia dormir até quando bem quisesse. Nem mesmo a mulher que sempre indicava o seu paradeiro fora de casa, através de bilhetes carinhosos, deixara qualquer recado. Em outros tempos duas ou três linhas no bloco de anotações mencionavam a academia, a caminhada com o cachorro, ou mesmo uma saída para as compras lá do outro lado da cidade.
Desistiu do café.
Coisa estranha em se tratando de alguém que não dispensava o queijo, o mamão as torradas de pão Petrópolis, difíceis de encontrar, o café sem leite e o cigarrinho único do dia.
O relógio pendurado na parede indicava um horário absolutamente improvável. Chegando mais perto, notou que estava parado.
Olhou o pulso esquerdo e o Omega de ouro, herança de duas gerações, ornava sem qualquer finalidade.
Entrou no elevador, marcou a portaria na botoeira polida, olhou o espelho do fundo, corrigindo o nó da gravata para o lado certo e passando as mãos pelas têmporas grisalhas.
- Ninguém na portaria... Bem, o porteiro deve ter dado uma saidinha para ligar a bomba d'água ou, sei lá. É assim que acontecem as coisas.
Já na calçada vazia, seguia pensando e observando:
- Que dia é hoje? Será algum feriado, não vejo qualquer pessoa, que coisa esquisita.
Chegou no ponto juntamente com o ônibus.
Embarcou sem mostrar o passe de idoso, acomodou-se junto a uma janela e ficou tentando lembrar como é que tinha se vestido, calçado, arrumado etc.
Sonhara com vários amigos, pessoas que não via há muito tempo, parentes, colegas de trabalho, uma loucura surrealista apagada ao despertar-se.
Ainda com o veículo parado no ponto final ruminava as últimas lembranças oníricas, quando o motorista o alertou gentilmente, esperando que descesse. Só agora dava conta que o ônibus era diferente.
Estava tão distraído que nem notou o fim do trajeto. Era atravessar a rua, passar na catraca e embarcar mais uma vez.
Estranhou o movimento da estação, muito abaixo do normal, calmo demais para o horário. Mas que horário? Os relógios estavam parados e, talvez fosse bem mais tarde do que imaginava.
O alto-falante anunciou a partida.
Olhando a barca atracada de lado percebia ser toda cheia de detalhes, e a tripulação vestida com uniformes especiais: Quepes e gorros alinhadissimos, sapatos brilhantes, platinas e polainas como num dia de grande gala.
-Que beleza. Deve ser visita de algum figurão, quem sabe até o presidente. Hoje o negocio está demais murmurou, ocultando com as mãos o movimento dos lábios.
Seguiu caminhando atrás do pequeno grupo de passageiros em direção ao cais flutuante.
Ao sentar-se junto à janela e apreciar o panorama, notou algo diferente. Não conseguia ver o horizonte.
O tempo estava claro, sem bruma ou nevoeiro, mas onde estavam as montanhas? Os contornos dos prédios? Não dava para distinguir nada em meio aos fortíssimos reflexos luminosos sobre a água.
- Que sol esplendido!
Que maravilha, pensou consigo mesmo, enquanto o Sr. sentado na cadeira ao lado cumprimentava e sorria, com um gesto de cabeça.
-Boa viagem!
-Boa viagem. Obrigado.
-O Sr. sabe que horas são? Perguntou. Meu relógio parou, esqueci de dar corda.
-Oh, desculpe não posso ajudar. Não sei que horas são, mas, com essa luz toda, devemos estar no melhor ponto do dia.
-Tem razão. Isto aqui está tão diferente, novo, reluzente. Este barco parece em sua primeira viagem e a tripulação, que elegância!
O estranho apenas sorriu e voltou a acenar com a cabeça, concordando delicadamente.
Após os três apitos de praxe a viagem começou sem balanço e sem ruído.
- É uma beleza esta nova barca, não acha? Perguntou ao vizinho de poltrona que, novamente, acenando com a cabeça, sorriu delicada e simpaticamente num gesto positivo.
- Parece que estamos indo para o céu, insistiu em tom de blague.
-Pois é meu amigo, é isso mesmo, respondeu o companheiro de viagem, complementando:
Não sei se é o céu que você imagina, mas à hora que você não consegue enxergar no relógio, o teu pessoal já deve estar chegando em casa. Foram ao teu enterro. Aproveite a viagem.
Não escutou a resposta. Caiu em sono profundo, acordando quando metade dos passageiros já havia desembarcado.
- Então, chegamos? Perguntou em voz ainda turva pelo sono recém desperto.
- É. Aqui estamos. Não se esqueça de entregar as duas moedas lá na saída.
- Moedas?
- Sim,
moedas. Aquelas que você recebeu quando embarcou, não lembra? Estão aí do lado esquerdo do seu paletó.
Enfiou a mão no bolso e lá estavam as duas patacas.
- Agora dou conta do que o rapaz da catraca recomendou:Devolvê-las na saída. Só não disse a quem, respondeu de forma alegre e jovial.
- Aqui nos separamos, retrucou o companheiro de viagem, despedindo-se com um gesto e sumindo em meio à multidão.
II
Um tanto atarantado misturou-se ao povo que se distribuía entre as diversas saídas. Não havia indicação de quem deveria ir para onde. Caminhavam encontrando as suas passagens automaticamente.
Chegou a vez de entregar as moedas e receber um novo ingresso:
- Bom dia, o homem uniformizado saudou enquanto devolvia um tíquete cartonado.
- Bom dia, obrigado.
Pegou o bilhete e colocou no bolso sem olhar para o funcionário, caminhando em passo acelerado para alcançar a parte externa da estação.
- Onde estou? Não parece a Praça XV, nem Paquetá, nem...
Um leve toque em seu ombro e um amigo que não via a muito tempo, o saudou com alegria:
- Então, como foi a viagem? Encontrou alguém?
- Estou muito confuso. Não posso dizer nada. Dormi todo o percurso e quanto a conhecidos, também não me lembro de tê-los visto, pelo menos no mesmo convés em que eu estava.
- Eu também não achei nenhum conhecido, mas foi só chegar aqui e a situação mudou bastante. A gente não os vê, mas eles nos encontram.
- Nem sei por onde começar. Minha intenção não era vir parar aqui. Pretendia desembarcar na Praça XV, enfim, e você? Pensei que, bem não sei como dizer, mas...
- Ah, pois é. Eu também não esperava tomar o ônibus naquele momento.
- Eu vim de barca!
- É eu sei, mas é uma questão irrelevante, se ônibus, barca, automóvel, avião ou a pé. Chega uma hora em que a gente... Você ainda não entendeu, não é?
O sorriso amarelo despencou pelo canto da boca, o aceno discreto com a cabeça e a fisionomia escanhoada e amaciada com o balsamo pós-barba confirmaram o que o amigo estava perguntando.
-Vamos tomar um café, caminhar por aí, dar uma reconhecida nas redondezas? Perguntou o novo anfitrião tomando-o pelo braço em gesto fraterno e iniciando o trajeto em direção a um bar.
- Agora me lembro: O "colega" de viagem disse algo que não cheguei a entender, pois adormeci de súbito. Falava do meu pessoal, do céu, uma coisa meio bizarra.
- Ainda bem que você não está assustado. O novo acompanhante falava enquanto se aboletavam em uma mesa de canto.
- Agora vamos aos fatos: Lembra quando acordou todo vestido?
- Sim, me lembro! Que coisa louca. Pensei até que estava começando a ter falhas de memória, sabe como é, aquela coisa da idade.
- O que vai querer primeiro?
- Água...
Bebeu de um só fôlego, deixando escorrer algumas gotas pelos lados da boca, enxugadas com as costas da mão.
A atmosfera começava a ficar mais leve e os pensamentos iam se alinhando dentro da cabeça de poucos cabelos.
O amigo ali sentado já tinha morrido! Não havia a menor dúvida quanto a isso. Recordava o momento em que os colegas da Repartição receberam a noticia e logo começaram a organizar a lista para a coroa funerária. Morrera muito moço, todos eram muito moços naquele tempo.
Só podia ser uma alucinação.Talvez os novos remédios para afinar o sangue e diminuir o colesterol estivessem misturando seus pensamentos e recordações.
Procurou um espelho para olhar-se. Nada. Nem espelho. Nem relógio.
Ainda estavam se ajeitando quando um outro conhecido entrou e, discretamente, os saudou com um gesto de cabeça. Em poucos instantes o bar estava repleto. A falta de sombras e reflexos, apesar da boa iluminação, dava a sensação de tempo suspenso.
O companheiro de mesa começou a falar de escolhas, decisões, oportunidades e realizações. O discurso calmo e objetivo funcionava como documentário de uma vida, apesar de não haver nenhuma menção especifica, cobrança ou julgamento.
Abordando diversos exemplos de escolhas, além de juízos e avaliações igualmente válidas ou equivocadas, o assunto tomava forma, provocando emoções e percepções de intensidades e matizes variados.
Depois, o silêncio sublinhou a reflexão e a expectativa pelo rumo a ser tomado. Afinal, onde estava? Como é que esse camarada soubera daquela historia do "acordar vestido". Ainda não sabia se era um pesadelo, uma alucinação, uma confusão mental, ou o que.
Sentado ali no bar diante de uma pessoa falecida muito jovem, tentava racionalizar os últimos acontecimentos.
O amigo levantou encaminhando-se para uma porta Art Nouveau aberta para a varanda convidando-o a fazer o mesmo. A brisa refrescante e o cenário de horizonte infinito davam o tom de paz e tranqüilidade que ele precisava, exatamente agora.
- Quanta luz e que cores... Que beleza. Se você continuar teimando em não querer entender, seu tíquete vai acabar perdendo a validade, sussurrou o anfitrião em seu ouvido.
- Validade?
- É. Com ele você vai ter mais uma oportunidade de acertar nas escolhas, e assim melhor desfrutar da maravilha.
Está vendo aquelas duas arcadas? Apontou para um dos lados da varanda e depois para o outro. A primeira escolha é agora. Em uma delas o resultado é rápido. Entretanto, se você escolher entrar na que tem fila, a coisa demora um pouco.
Se achar que cansa, que dá trabalho, demora, pegue a via expressa. Ali é tudo mais fácil. É só ladeira e não irás caminhar muito. Vá escorregando. Nesse caso, tenha cuidado, pois o tíquete queima com muita facilidade e dá um trabalho danado para conseguir outro.
- Ah... Sei. Acho que vou entrar na fila. Muito obrigado.
- E você? Fica sempre por aqui?
- É. Já usei todos os meus tíquetes e agora estou trabalhando na administração.
- Até a próxima.
Lá no bairro, a família tomava café requentado, com as torradas de pão Petrópolis já ressecadas, e o queijo fresco deixado sobre a mesa, enquanto combinavam a missa de sétimo dia.
Postado por Raul Almeida
Em
5/12/2015 às 20h55
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