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Domingo,
13/12/2015
O Adultério
Raul Almeida
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A minha intenção era espairecer, divagar um pouco, aproveitar o dia sem aquele calorão típico do Rio de Janeiro. Assim, peguei a barca logo depois do movimento da manhã, ali pelas 10 horas, quando um assento perto da janela é quase garantido.
Atravessei a Praça Quinze caminhando pela lateral do prédio dos Correios, outrora Paço Imperial e segui pela rua São José, com o objetivo escancarado de encontrar o meu amigo, frequentador assíduo daqueles bares com cadeiras na calçada. Então dei conta de que era muito cedo.
Antes de meio-dia ninguém fica ali olhando para nada, tomando chope, fumando e deixando a vida passar.
As mesas e cadeiras continuavam empilhadas, os empregados dos restaurantes e assemelhados, começando as rotinas pré-funcionamento, os fornecedores mais atrasados descarregando seus triciclos. Aquela bagunça organizada, com gente passando para lá e para cá.
Segui em frente e fui até o largo da Carioca, hoje um acampamento de marreteiros e camelôs, melhor dizendo, "comerciantes independentes".
Apertei o passo ao notar as mudanças do lugar que conheci na minha juventude.
Tive a impressão de um cenário medieval com o majestoso convento acima da vila, formada pelas tendas dos mercadores de qualquer coisa.
Fui para os lados da rua Uruguaiana. Procurei o largo do Rosário, depois o Mercado das Flores e segui perambulando, tentando buscar referências do meu tempo de rapaz. Atingi a avenida Rio Branco e segui em direção a Cinelândia.
Fiquei quase quarenta anos fora e agora estava tudo mudado.
Lojas, prédios, bancos, quase nada sobrou. Novas
marcas, letreiros, edifícios e muito buraco nas calçadas. O Museu de Belas Artes assim como o Teatro Municipal, passando por reformas. A Biblioteca, com sua fachada de quartel francês, impávida e cheia de dignidade, o Tribunal e suas portas de madeira de lei magnificamente entalhadas.
Senti alguma coisa faltando: O palácio Monroe, o antigo Senado. O prédio quase um monumento, foi transformado em jardim com um chafariz e um estacionamento embaixo.
Constatei o fim dos cinemas, travestidos em templos de igrejas milagreiras.
O Cordão da Bola Preta, um dos clubes carnavalescos de maior tradição, despejado, leiloado, sei lá. O Amarelinho de cara nova, parecendo bar de boulevard francês. Novidades, novidades. Novamente a paisagem mutilada para a realidade que eu tinha na memória.
Voltei e fui almoçar no Restaurante Ulrich, na rua São Jose. Estiquei o almoço para que meu amigo chegasse no seu escritório vespertino. Paguei a conta e sai, lembrando dos companheiros do passado.
Deu certo. Caminhei uns passos para a esquerda, olhei para o outro lado do calçadão e lá estava ele, de costas, olhando em direção a estação das barcas.
Cheguei e, como de costume, puxei a cadeira, na certeza da recepção favorável. Meu amigo ameaçou levantar-se para o abraço, esticou a mão, sorriu e disse:
-Parece mentira, mas desde cedo que estou pensando em você e, eis que apareces!
-Transmissão de pensamento, respondi. Vim, para te encontrar, bater um papo, trocar idéias. Já estava com saudades das tuas tiradas e historias!
Ele sorriu, chamou o atendente, pediu o tradicional chope, perguntou se eu queria comer algo, e começou:
-Você nem imagina o que aconteceu.
-Um amigo meu matou a mulher, depois de uma união de décadas! Uma coisa horrível, impressionante. Um drama terrível, uma desgraça total.
Fiquei surpreso com tanta dor, assim, logo de cara, sem qualquer preparação, fora do seu estilo.
-Rapaz! Que tristeza, como foi, perguntei.
-Imagine só, a mulher era uma pessoa tranquila, recatada, suave, dedicada a família e aos afazeres domésticos, uma pessoa simples, muito séria. Bem, até que ele escutou dela, dela mesma, que tinha um namorado.
-Mas deixa eu te falar dele: O cara era boa gente, trabalhador, esforçado, lutador. Entretanto, boêmio, bregueiro, aquela coisa que não é novidade para ninguém. Trabalhava, depois dava uma esticada, tomava umas e outras, vez por outra chegava em casa de manhã.
- Então, matou a mulher assim sem mais nem menos. Por certo era uma pessoa violenta.
-Não! Nada disso. O cara era uma moça, nunca vi dizer um palavrão, nunca vi metido em confusão, escaramuça, gritaria, empurra-empurra, nada. Manso, calmo, conciliador.
-Tinha amante! Exclamei e continuei: Sabe como é, mulher tem aquela coisa de dar o troco. Sofre calada, mas morde na canela, que nem cobra.
- Não, não tinha amantes, só que era mulherengo. Se fosse fazer um cadastro, quebrava os três dígitos. Boa aparência, boa charla, dançava bem, voz de locutor de rádio, vestia-se com elegância, e... Casado.
-Foi preso. Pegou um flagrante, perguntei.
-Pior, se matou.
Pendurou-se no cano do chuveiro, chutou o tamborete, e ficou de língua de fora.
-Que coisa horrível! Você não perde uma... Murmurei com cara de nojo.
Ele sorriu, pegou mais um cigarro, deu um gole, mantendo aquela gesticulação medida e ensaiada por anos a fio.
-A coisa foi muito triste mesmo.
Viajaram para uma pousada de praia no nordeste, aproveitando o feriadão. No segundo dia, foram para uma festa popular, e conheceram outras pessoas. Até aí, nada de errado, mas o capeta estava espreitando.
Tomaram bebidinhas, deram muita risada, etc., a mulher foi ao banheiro uma vez, duas, aquelas coisas e depois se recolheram. No meio da noite ele acordou, a procurou e nada.
Ainda havia barulho no local da festa e ele foi ate la dar uma olhada. Então a viu conversando, bem chegadinha, com um outro sujeito.
Não entendeu nada. Achou que estava bêbada Chamou-a, insistiu e terminou por leva-la de volta na marra. Ai a coisa desandou.
Ela debochou, disse que sabia das patifarias, da mulherada, da falta de respeito com ela e que ele pensava que era o bom, mas... Tome risadas.
Ele implorou, pediu que parasse, disse que era mentira o que ela estava dizendo, que a amava desesperadamente, que ela era a vida dele, mas nada adiantou.
Então, agarrou-a pelo pescoço e a esganou.
Ela rindo e ele chorando.
- Mas pera aí! Como é que você sabe de tantos detalhes, parece até que estavas espiando.
Meu amigo pigarreou, cuspiu no chão, deu uma olhada para mim, outra para o maço de cigarros, pegou o copo deu mais um gole e respondeu:
- Foi nada.
Tive um pesadelo esta noite, e estou sem dormir até agora.
- Mas você nem é casado, respondi com espanto.
E, tomando o resto de chope quente do meu copo, dei um sorriso e me despedi, atordoado com humor tão sinistro.
Postado por Raul Almeida
Em
13/12/2015 às 10h17
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