ENSAIOS
Segunda-feira,
7/2/2005
Um trailer do apocalipse
Sérgio Augusto
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Minutos antes de embarcar de férias para as ilhas Maldivas, na semana passada, o americano Jack Hall comprou um romance para ler durante a viagem. Era a última e mais promovida novidade na livraria do aeroporto de Los Angeles: um techno-thriller sobre terrorismo ecológico, com tiragem inicial de 2 milhões de exemplares. No avião, Hall devorou poucas páginas do inevitável best-seller; o bastante, contudo, para inteirar-se da “mensagem do autor”: a Terra vai bem, a natureza é generosa, e seus piores inimigos são justamente aqueles que mais se mobilizam para defendê-la.
No radioso dia seguinte, refestelado sobre a areia de uma das praias mais belas e serenas do oceano Índico, com um planters punch numa das mãos e o romance na outra, Hall deu continuidade à sua leitura. Já passara pelos capítulos em que terremotos, tsunamis e deslizamentos de terra castigavam vários pontos do planeta —sempre provocados por um grupo de ecoterroristas— quando uma súbita e descomunal onda empinou à sua frente e o levou de roldão, com tudo mais que na praia havia.
Hall foi uma das milhares de vítimas do cataclismo que devastou o sul e o sudeste da Ásia no ano passado. Seu nome não apareceu em nenhum jornal, nem consta das listas de turistas perdidos ou mortos nas Maldivas, porque ele simplesmente não existe. Inventei-o para dar ares de veracidade a uma fantasiosa mas plausível —e sobretudo irônica— tragédia.
Ponha-se no lugar de Jack Hall (tirei o nome do climatologista encarnado por Dennis Quaid em O Dia Depois de Amanhã, aquele filme em que um tsunami provocado pelo efeito estufa quase transforma Nova York numa nova Atlântida). Imagine-se lendo um romance cuja idéia fixa é inesperadamente desmoralizada diante de seus olhos, e da forma mais brutal possível.
O romance, este, sim, existe e foi mesmo lançado no ano passado, com a fanfarra a que todos os livros de Michael Crichton fazem jus —não porque sejam bons, mas porque vendem a mancheias. Crichton é um subliterato, um oportunista pseudocientífico, um manipulador de fórmulas, um tsunami de clichês, um Ian Fleming vira-lata, e seu novo best-seller, State of Fear (Estado de medo), pelos trechos que pude ler na internet, não irá decepcionar sua medíocre clientela.
Quando há dois anos lançou Presa, Crichton chiou à beça dos que não se cansam de incutir e disseminar o medo mundo à fora. Não se referia ao governo Bush e a Osama bin Laden, como seria justo e lógico, nem a si próprio, que encheu a burra nos aterrorizando, em seus techno-thrillers, com a hipótese de que os dinossauros podem voltar, a nanotecnologia pode nos destruir e o perigo amarelo não morreu, apenas passou a vestir Armani. Crichton tampouco levou em consideração o pânico semeado pelo Épico de Gilgamesh (circa 2000 a.C.), pelo mito da Atlântida, pelo dilúvio que fez de Noé o primeiro preservacionista da Terra, pelo juízo final descrito por São João, pela destruição de Creta, Alexandria, Pompéia e Krakatoa, por Godzilla, Rodan, Mothra e outros monstros escatológicos do imaginário cinematográfico, provas acumuladas de um pavor há muito entranhado no inconsciente coletivo.
O alvo do escritor eram os jornalistas e os cientistas que, a seu ver, vivem a espalhar a balela (sic) de que gigantescos e cada vez mais destrutivos desastres ambientais, estimulados ou facilitados pelo homem (“o câncer da natureza”, na abalizada opinião de Millôr Fernandes), deverão assolar o planeta num futuro não muito longínquo, até destrui-lo por completo. Tivemos um pequeno trailer do apocalipse no ano passado. E tão cedo não saberemos se aquela oscilação sísmica foi apenas um faniquito da natureza.
Injuriado com o “catastrofismo da mídia e da maior parte da comunidade científica”, o autor de O Parque dos Dinossauros e Sol Nascente resolveu escrever um romance de ação cujos vilões ou vestiriam jaleco branco e fariam histéricas ameaças que, segundo ele, jamais irão se cumprir porque embasadas em dados incorretos, quando não falsificados, ou seriam ecologistas fanáticos, cooptados pela práxis terrorista, bem mais para Greenwar do que para Greenpeace. Desse estado de ânimo nasceu State of Fear, com mais jeito de exorcismo que de desabafo.
Para dar credibilidade ao seu hiperbólico e, no dizer de uma crítica do New York Times, lúdrico entrecho —centrado em cima de uma al Qaeda ambientalista que provoca terremotos, maremotos, degelos e correlatos flagelos tectônicos para provar suas previsões “alarmistas” e extorquir indenizações milionárias das indústrias que mais despejam dióxido de carbono, mercúrio e outros venenos na atmosfera terrestre —Crichton acrescentou uma bibliografia de 14 páginas e uma longa nota explicativa destinadas a corroborar a tese de que o aquecimento global e demais ameaças à vida no planeta, como a fome, a explosão demográfica, a contaminação dos alimentos por herbicidas etc., são meras paranóias, sem respaldo científico.
Entre os cientistas ditos “céticos” apensos ao último capítulo de State of Fear, aparece o badalado dinamarquês Bjorn Lomborg, jovem professor de estatística e ciências políticas da Universidade de Aarthus e apóstata do Greenpeace, que há tempos tentou baixar a bola das conseqüências do efeito estufa sobre as marés e desdenhou a utilidade do Protocolo de Kioto, num polêmico estudo que deve ter provocado um tsunami de tin-tins na Casa Branca. Lomborg, porém, achou State of Fear uma bobajada.
Seria formidável se os “céticos”, como Lomborg, o economista Julian Simon, o vice-presidente de O Dia Depois de Amanhã (não por acaso a cara de Dick Cheney, notório lobista da indústria energética) e os Papanatas que alugam sua esperta expertise a algumas das corporações que mais contaminam o meio ambiente, estivessem certos e James Gustave Speth, Paul Ehrlich, Jorgen Randers, Horace Freeland Hudson, Donella e Dannie Meadows, para citar os “catastrofistas” mais em evidência, estivessem errados. Tudo indica que os catastrofistas, infelizmente, estão certos. E mesmo que não o estejam, seu alarmismo será sempre menos daninho ao planeta e à humanidade que a imprevidente inação dos céticos.
Mais por caturrice ideológica do que por excesso de imaginação, Crichton perdeu a chance de escrever um techno-thriller mais excitante e assustador, porque inspirado em perigos reais. Nem precisaria mudar o título para transformar em ficção o estado de medo que a manipulação da ciência pelo governo Bush impôs a todo o planeta.
Em fevereiro de 2004, a Union of Concerned Scientists, entidade de cientistas preocupados com os destinos do planeta e seus habitantes, integrada por 20 detentores do Prêmio Nobel e 19 condecorados com a Medalha Nacional da Ciência pelo governo americano, divulgou um documento sobre “a integridade científica e a política”, acusando a administração Bush de boicotar e suprimir descobertas científicas por interesses ideológicos e para fins políticos, e de preencher os quadros das agências que regulam e controlam as atividades das indústrias poluentes com gente incapaz, que leva mais em conta os lucros das empresas do que a segurança e a saúde públicas. Está tudo contado em The Great Betrayal: Fraud in Science, de Horace Freeland Hudson, editado pela Harcourt.
O cenário pintado pelo Pentágono não é menos aterrador. Mas nem alertado por um órgão federal e insuspeito de fazer o jogo do catastrofismo, o governo Bush reorientou sua política ambientalista. Continuou mandando às favas o Protocolo de Kioto, ouvindo apenas os cientistas chapa-branca, e ainda ordenou um corte de 2% nos gastos com pesquisas sobre mudança climática. Os tsunamis do ano passado mudaram o eixo da Terra, mas não há quem aposte numa mudança no eixo da política ambiental do atual governo americano. Se afetarem as vendas do romance de Michael Crichton, já estaremos de algum modo compensados.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no caderno "Aliás", do jornal O Estado de S. Paulo, a 2 de janeiro de 2005.
Sérgio Augusto
Rio de Janeiro,
7/2/2005
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