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Segunda-feira, 19/6/2006
O grito eletrônico do Overmundo
Thereza Dantas
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A internet é produto da Guerra Fria. Pensada por militares americanos na década de 1960 para esconder informações estratégicas em computadores ligados em rede, e assim evitar a “dominação comunista”, esses mesmos militares não previam um quadro que beira a anarquia: o ciberespaço. Sites colaborativos, portais de jornalismo independente, coletivos de artistas, imagens e músicas com livre acesso, além de informação em quantidades jamais imaginadas são alguns dos resultados colaterais das pesquisas militares. E se a idéia original era belicosa, hoje o ciberespaço transpira liberdade, desafia regras, questiona versões oficiais.

No Brasil, com mais de 22 milhões de internautas, número que o põe entre os dez países de maior inclusão digital, quatro profissionais se uniram para criar um movimento na internet. Ou, como preferem, um Movimento. É assim, com maiúscula, que o antropólogo Hermano Vianna, o produtor cultural Alexandre Youssef e os advogados José Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos batizaram o próprio grupo. E o Movimento criou o Overmundo.

Que é Overmundo? É o nome de um poema de Murilo Mendes, que fala de um cavaleiro que “está em toda parte” e que possui um “grito eletrônico”. É também um site colaborativo sobre cultura do Brasil. Que fique claro: não é sobre cultura brasileira. “A identidade e a cultura de uma nação é movimento em aberto e está sempre em mutação”, diz Hermano Vianna. Dos “quatro cavaleiros” do Overmundo, Vianna é o homem da academia, experiente em pensar e conceituar as expressões mais espontâneas da cultura popular, como o funk, o samba – ou, a partir de agora, a participação voluntária de internautas na construção do site.

O Overmundo foi “ao ar”, oficialmente, no dia 7 de março, no seguinte endereço: overmundo.com.br. Qualquer pessoa pode se cadastrar e, assim, publicar textos sobre eventos, entrevistas com artistas, músicas para download gratuito, qualquer conteúdo relacionado à área da cultura. “O canal está aberto. Cabe aos internautas ocupá-lo: quando mais gente falando sobre coisas legais acontecendo nas suas cidades e estados, melhor”, diz Ronaldo Lemos.

Lemos é o representante da Creative Commons no Brasil. A Creative Commons é uma entidade americana que promove a transmissão e a difusão de conhecimento gratuito pela internet, como, por exemplo, os chamados softwares livres. O próprio site Overmundo foi criado por meio de softwares livres, que estão à disposição de quem quiser fazer download. Lemos explica como a idéia da colaboração entre internautas, inerente à rede mundial de computadores, foi ganhando proeminência no ciberespaço até tomar o centro do palco: “O exemplo principal é o [sistema de buscas] Google: eles inventaram um jeito de organizar a informação com base na conduta dos próprios usuários da internet, que vão criando links para os sites mais legais”, diz o advogado. [N.R.: Essencialmente, quanto mais um site for referenciado por outros sites, maior a sua importância na ordenação do Google – dentre outros critérios, e com os devidos pesos considerados.]

Mas o Google não é o melhor exemplo de site colaborativo, já que a participação dos internautas é apenas passiva. Muito mais significativa, nos tempos atuais, é a Wikipédia, a enciclopédia livre da internet. Qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, pode criar, alterar ou mesmo apagar qualquer verbete da enciclopédia – que, para surpresa de muitos, é um sucesso.

O Overmundo fica no meio-termo. “A intermediação é feita pela própria comunidade de usuários, que decide coletivamente o que merece destaque e o que é publicado”, diz Lemos. Existe uma hierarquia. Uma forma de avaliação dos melhores conteúdos. Antes de publicar qualquer coisa, os cadastrados lêem os textos, vêem vídeos e imagens, ouvem as músicas enviadas, e então sugerem correções ou informações a adicionar. O autor do conteúdo, tendo acatado ou não as sugestões, submete então à votação final, baseada num sistema de pontos. Ou overpontos, no jargão de seus criadores, que também resolveram batizar os internautas de overmanos e overminas, numa referência ao universo do hip-hop brasileiro. Assim, cada voto confere overpontos ao overmano, que precisa atingir um número mínimo para ter seu material publicado; a longo prazo, uma grande quantidade de overpontos confere maior peso ao seu próprio voto. Parece burocrático, mas isso não invalida a maior qualidade do site, que é absolutamente democrático. “Não somos editores, somos animadores”, diz Hermano Vianna, ressaltando que a proposta do grupo é que o site caminhe pelas próprias pernas. “Queremos que os usuários decidam o que realmente é importante para o Overmundo.”

A idéia central é expor a cultura do Brasil. “Não queremos discutir o que é cultura popular, nem seremos um site que recebe releases sobre eventos no país. Queremos o discurso direto. Se chegar um texto sobre o comportamento do público de Manaus no show do White Stripes, será bem-vindo. Mas um release sobre o show da banda, nem pensar!”, diz Vianna. ”Não haverá julgamento de boa qualidade, até porque não concordo com o que se considera boa qualidade no país!” Para os criadores, o importante é que aconteça de fato a divulgação e a circulação de projetos de arte no país. Projetos que, de outra forma, talvez não encontrassem o devido espaço nos canais tradicionais de comunicação. Os exemplos são muitos.

Hermano Vianna aponta dois que estão na sua mira antropológica: o funk carioca e o brega do Pará. A experiência do brega paraense é curiosa. O músico grava suas composições em um estúdio e depois vai discotecar numa “festa de aparelhagem”, como são chamados os bailes da periferia paraense. Se a música for um sucesso, é vendida, em formato digital (.mp3), nos camelôs das ruas de Belém, com o incentivo dos próprios artistas, que não vêem nessa “pirataria consentida” um obstáculo, e sim uma divulgação supereficiente para shows. Ganham o dono do estúdio, o músico e os camelôs. “É a festa da periferia de Belém”, diz o antropólogo. “Quando a Banda Calypso se apresentou no Faustão, ela já fazia sucesso. A música brasileira não precisa mais da indústria fonográfica tradicional!” Alexandre Youssef, dos quatro cavaleiros do Overmundo o mais experiente em produção cultural, atua junto ao movimento hip-hop e ao rock alternativo, e reforça a idéia de que a cultura brasileira na periferia é forte. “O Overmundo passa pela cultura do lado B. O principal desafio é dar espaço para toda essa diversidade”, diz. Por isso o Overmundo é mais que um site informativo, com notícias, resenhas e agenda de eventos; na seção Banco de Cultura, qualquer artista, anônimo, estreante ou consagrado, pode disponibilizar músicas, textos e vídeos artísticos, que terão, assim, a divulgação necessária pelo país. “A idéia é a da generosidade intelectual, tanto do lado de quem envia e disponibiliza criações,como de quem utiliza e dá o crédito”, diz o advogado Ronaldo Lemos, ressaltando também que, em caso de uso para fins comerciais, o conteúdo deva ser comprado diretamente do artista.

E qual o fim comercial do próprio Overmundo? Atualmente patrocinado pela Petrobras, num projeto de 18 meses de duração, com custo final de 2 milhões de reais, o Overmundo tem o desafio de se transformar num site colaborativo economicamente viável. A idéia original resumia-se a um braço do portal da Petrobras, mas com o tempo foi arquivada, em função da segurança que as demais informações do portal exigiam, impossibilitando a liberdade de acesso ao conteúdo, que é a razão de ser do projeto. “Existe a idéia de buscar anunciantes, mas agora é dever do Estado arcar com essa estrutura. No final de 2006 termina o contrato com a Petrobras, que é renovável, e aí veremos qual será o futuro”, diz Youssef. “Não temos nada definido sobre como e onde venderemos anúncios. Vai depender dos acessos [no dia do lançamento oficial, a média era de 3.500 acessos diários], mas temos alguns exemplos felizes para nos nortear, como a Wikipédia, o Google e o Orkut”.

O antropólogo Hermano Vianna vai mais longe: “Podemos pensar em disponibilizar essas informações no celular. Hoje, o acesso ao celular é muito maior do que o acesso à internet. Estatisticamente, para cada dois brasileiros, um tem aparelho celular. E a velocidade para baixar conteúdo também é maior que por um computador, além de existir um grande interesse das empresas de telefonia em oferecer mais serviços ao dono do aparelho.”

O quarto cavaleiro é José Marcelo Zacchi. Fundador e ex-diretor da ONG Sou da Paz, ele pretende ser a interface entre o site, o terceiro setor, as empresas privadas e o poder público. Para ele, a atividade cultural – e iniciativas como a do Overmundo – traz benefícios para outros setores da sociedade brasileira. “Vamos desenvolver um trabalho que amplie o diálogo entre a cultura e a cidadania, a inclusão artístico-digital, a intervenção urbana, a qualificação urbana e a propriedade intelectual”, diz o advogado.

Mas é no campo da cultura que o quarteto vai se fazer notar com mais força. Para Hermano Vianna, o Overmundo é o passo brasileiro para a democratização e a independência no ciberespaço, uma contribuição para enriquecer o caldo da cultura do Brasil. “É a circulação dos 35 CDs que ganhei no Porto Digital, no Recife, Pernambuco. É a possibilidade real dos moradores de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, reclamarem seus direitos desrespeitados no New York Times. [N.R.: Matéria do jornalista norte-americano Larry Rother se refere a índios Yanomami como uma comunidade que “tem se mantido imutável desde a Idade da Pedra”.] É o funk carioca, o brega paraense, o rap brasileiro mostrando sua cara. O computador, hoje, é a nossa caneta Bic”.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Publicado originalmente na revista Raiz nº 4, em abril de 2006.


Thereza Dantas
São Paulo, 19/6/2006
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