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Domingo,
16/8/2015
O contador
Raul Almeida
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Naquele fim da tarde mal começando a noite, sentia cansaço e tédio ao refletir sobre a mesmice de sua vida.
Diante do espelho do banheiro do escritório examinava a fisionomia e notava os estragos que o tempo havia feito.
Reparava na dentadura, ou melhor, na prótese parcial disfarçando os dentes tortos pela mastigação, nas bolsas embaixo dos olhos, na tênue linha clara em volta das pupilas indicando e sinalizando o começo da catarata e o caminho da senilidade, os vincos na face, a pelanca pendurada entre os baixos do mento e o fim do pescoço formando um papo flácido e deselegante.
Lembrava dos colarinhos absolutamente brancos engomados e firmes que encimavam os laços Windsor, de suas gravatas importadas. Vez por outra, não mais como antigamente, comprava uma nova, invariavelmente italiana ou francesa. Agora, usava camisas menos elegantes e talvez mais confortáveis, com seus colarinhos moles e menos cuidados. Lavou as mãos e voltou para a sala.
Quantas vezes ficara até altas horas da noite, preparando balancetes, fazendo lançamentos nos livros-Razão, conferindo notas, números, valores, estatísticas ou calculando percentuais, descontos e folhas de pagamento.
O contador recordava os bons e maus momentos passados, enquanto se preparava para encerrar mais um dia no escritório.
O trabalho mais que dobrava na época do imposto de renda e os maiores interessados pouco ou nada faziam para facilitar as coisas. Bastava que mandassem os documentos a tempo e não haveria necessidade de grandes esforços. Mas todo ano era a mesma coisa: A declaração estava fechada e pronta para ser entregue e alguém esquecera a venda ou compra de um automóvel, casa ou investimentos financeiros.
De novo sentado à mesa, colocou os óculos e olhou tudo em volta. Lembrou-se quando trocou o velho "birô de sete gavetas" pela escrivaninha com a tampa de subir e descer e de quando comprou o conjunto de jacarandá, igual ao que tinha visto no escritório de um grande advogado. A mesa, as cadeiras de assentos e espaldares de couro, as mesinhas auxiliares, das quais uma servia de base para a maquina Underwood, conservadíssima e ainda ali, com a fita bicolor perfeita.
A poltrona parecia um trono, duro e desconfortável. Observou as duas estantes, e lembrou daquele móvel estranho, parecendo uma cristaleira. O trono demorou pouco. Era cansativo apesar das almofadas de veludo, ou do assento anatômico, além das outras tentativas para mantê-lo em serviço.
Deteve os olhos nas maravilhas modernas: O telefone sem fio, o fax um tanto obsoleto e o computador a ponto de ser modernizado. No principio relutou um pouco em compra-lo, mas percebeu que aquela mistura de maquina de escrever com calculadora e televisão, representava menos cinco empregados, além da melhor qualidade e acabamento em todos documentos produzidos.
Dos registros manuais sobrou muito pouco, apesar da caligrafia ser a melhor forma de exercitar e manter a tradição profissional, tal como herdara desde o bisavô guarda-livros até ao pai, um contador que alcançou a regulamentação da profissão.
Sentia falta do pessoal, principalmente, daqueles dois que se aposentaram por último. Não tinha mais empregados. Precisava de alguém apenas para atender telefones, aliás, um grande problema. As mocinhas começavam bem, mas acabavam dando aborrecimento com os atrasos freqüentes, desatenção, e o tal telefone celular com aquele som espalhafatoso sempre chamando ou os namorados esperando e apressando a saída. Não duravam mais do que seis meses.
Não tinha jeito. Ele precisava ter, pelo menos, uma empregada até o dia que resolvesse fechar o escritório, largar tudo e aproveitar o patrimônio construído com muito trabalho e algum sacrifício, o que não estava muito longe.
Levantou-se, pegou o paletó, apagou as luzes e saiu.
Já na rua lembrou-se do bar onde costumava tomar uma cerveja com os amigos agora aposentados. Fazia tempo que não percorria aquele trajeto. Foi observando as novas lojas e vitrines, o quiosque substituindo a banca de jornal, os novos prédios e as pessoas sisudas e mal encaradas, andando em quase disparada.
Continuou sua caminhada pensando em não mais encontrar o refúgio das antigas conversas.Dobrou a esquina, atravessou a rua, mais uma travessia e lá estava o antigo ponto. Pelo menos isso não tinha mudado. A fachada renovada derramava intensa claridade por um letreiro muito mais vistoso e com a enorme propaganda de quem tinha pagado a reforma.
Entrou, sentou num dos banquinhos e ficou olhando em volta. Tentou reconhecer algum freqüentador e nada. Virou-se para um lado depois para o outro, nada.
Lá no fundo, sentado numa das mesas, tinha alguém sozinho que lhe parecia familiar. Olhou mais uma vez apalpando o paletó e procurando os óculos esquecidos no escritório. Resolveu ir até o banheiro e passar perto para ver quem era. Foi chegando, chegando e ainda sem reconhecer a pessoa, recebeu um cumprimento inesperado:
-Boa noite! O Sr por aqui... Está sozinho? Quer sentar? Tudo de uma só vez. Ficou surpreso, paralisado momentaneamente, sem palavras.
Senta aí! Já pediu? O rapaz do bar traz para cá...
Acomodou-se meio sem graça, buscando o fôlego e olhando aquela figura risonha, simpática, amiga e cordial. Ficou sem saber o que fazer primeiro: Dizer boa noite e pular fora rapidamente, ou agradecer e... Não foi preciso. A criatura começou falando que achava ótimo vê-lo por ali, que sempre pensou em convidá-lo para tomar uma cerveja, mas tinha medo de ser mal interpretada e que ele estava precisando mesmo divertir-se um pouco.
Veio um chope depois mais um e, como num passe de mágica, a conversa ficava cada vez mais interessante e agradável. Eram criaturas de mundos diferentes, com experiências absolutamente distintas e idades muito distantes
Enquanto procurava mais algum motivo para continuar conversando percebeu que ela poderia ser sua filha.
Perguntou pelos seus planos de vida, se tinha tentado a faculdade ou mesmo se já era formada em alguma coisa. Perguntou sobre seus pais, irmãos, algum marido, filhos, o trivial entre desconhecidos
Ela respondeu a tudo e deixou claro ser uma pessoa independente, vinda do interior, com planos muito grandes para o lugar de onde saíra. Não tinha filhos nem arrimos, muito menos ex-maridos.
Ele contou quem era, como tinha feito a sua vida, o que o trabalho representava, da falta de novos desafios, ambições e amigos. Do vazio imposto pela rotina, da solidão em família, todos felizes e vencedores.
Assim foram comentando alguma coisa, quase nada de tudo. Ela falou de arte, de cinema, de viagens com pouco dinheiro, de gente alegre, de musica e de teatro. Ele comentou que fora poucas vezes ao teatro e que gostara muito, mas não tinha tempo para tais coisas.
Estava na hora de parar e ir embora. Pediu a conta e ela insistiu muito para pagar o que tinha consumido. Ele, entre surpreso e admirado pediu que permitisse pagar. Nunca tinha visto aquilo. Uma moça pagando contas. Ela ainda argumentou um pouco, mas viu que a intenção era boa, educada e tradicional.Agradeceu sorrindo e, novamente, surpreendeu com o convite:
- Vamos dar uma esticadinha? Quero que você conheça o meu escritório.
Ele já estava ficando cansado de tanta novidade. Entendeu diferente e disse que não era bem isso e que, talvez numa outra oportunidade. Ela insistiu tanto que ele se apressou em chamar um táxi. Ela entrou no banco de trás e ele no da frente com visíveis sinais de embaraço e desconforto. O motorista seguiu para o endereço dado e quase não disseram nada dentro do carro.
-Chegamos!
Ele apressou-se em pagar a corrida, saindo rapidamente para abrir a porta do carro, de onde ela já tinha tirado meio corpo.<
-É aqui!
Ele olhou para a fachada iluminada do pequeno teatro e antes que dissesse alguma coisa ela o pegou pelo braço e disse:
-Vamos.
Eu também sou contadora. Conto histórias.
Ele, assistindo ao espetáculo da coxia emocionou-se e aplaudiu com força.
No dia seguinte ela chegou e, como de costume, cumprimentou-o respeitosamente, perguntou se tinha algo especial para fazer e foi representar o papel de recepcionista, com a mesma cara, o mesmo jeito e precisão com que contara historias na noite passada.
Ele estava leve, feliz, contente, sonhador e renovado como nunca. Seu mundo havia mudado totalmente, apenas com uma noite de descobertas e de encantamento.
O dia acabou e ele tinha uma nova vida, um motivo para espairecer, para tomar um chope, para reviver tudo o que pensara ter acabado.
Saíram juntos, deram os braços, olharam vitrines, as pessoas sisudas e mal encaradas, os carros, as luzes, e foram
combinando as diferenças...
Postado por Raul Almeida
Em
16/8/2015 às 09h41
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