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Quarta-feira,
17/1/2018
O Peregrino
Raul Almeida
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A criatura coberta com um casaco esfarrapado, uma trouxa de pano passando pelo ombro e um galho seco na mão direita a guisa de cajado, provocou desconfiança e medo em tantos quantos a viram chegando pela principal rua da vila.Em poucos instantes as crianças foram recolhidas, os velhos se aboletaram nas janelas , as mulheres se esconderam e os homens, divididos em valentões, comuns e covardes, ficaram pelas poucas esquinas e portas dos comércios, fazendo poses e tentando mostrar alguma determinação e hostilidade ao andarilho.
Durou pouco aquele medo todo.O estranho localizou a porta da igreja, aberta, e caminhando sem fixar os olhos em ninguém, seguiu diretamente para la.
O trajeto não excedeu os cinco minutos, durante os quais a conversa no barbeiro mudou. De assuntos gerais sobre colheitas, futebol, e incorreções entre uma senhora e seu matrimonio compartilhado com o dono da farmácia, para o estupor da chegada de um invasor. Pior, um miserável,logo na cidade orgulhosa pela ausência de mendigos. Aquilo era insuportável. Se o sujeito estivesse pensando em ficar por ali seria, de alguma forma, varrido para outro lugar, para a beira da rodovia federal, para longe, bem longe.
A conversa no bar, também, mudou para o mesmo objetivo: impedir a permanência daquele nojo ambulante, daquele vagabundo sujo e maltrapilho mais do que o tempo necessário para um copo d’agua.
-Ali não iria ficar nem meia hora! Bradava o filho de um tradicional morador, proprietário de uma fazendinha, na verdade, um sitio, bem pertinho da cidade.O rapaz, grandão e falastrão, era visto como bom partido pelas solteiras, e pouco apreciado pelos pais das mesmas, por sua fama de violento e pretensioso. Pudera, era um dos "ricos", se ter duas dúzias de vacas leiteiras em produção, algumas parcelas em lavoura, pasto, pomar, transforma alguém em rico. Bem, naquele lugar, era.
Ao seu comentário irado, somaram-se outros. Os amigos do falador, lavradores temporários esperando alguma oportunidade, enfim, velhos tão ou mais vagabundos que o desconhecido, foram acrescentando detalhes ao melhor modo de expulsar o intruso, caso ele manifestasse, de alguma forma, a vontade de permanecer na vila.
Os absurdos verbalizados, nem de longe pareciam sair da boca dos fervorosos cristãos de todo domingo, dos piedosos e solidários cidadãos que se reuniam, rapidamente, para desatolar a vaca de algum vizinho, fazer uma visita ao mais recente candidato a moribundo, enfim, gente que sempre procurou mostrar o arrependimento de qualquer eventual pecado, caridade, união pelas boas ações, tudo em conformidade aos sermões e palestras proferidas pelo vigário.
O Andarilho, sem claudicar ou tremer, caminhou fora das calçadas em direção a igreja. Parou diante da porta, trocou o cajado de mão, persignou-se e entrou, caminhando até a primeira fila de bancos. Ainda apoiado no cajado, ajoelhou-se, voltou a persignar-se moveu a cabeça para cima, e fixou os olhos no crucifixo centenário, murmurando uma oração.
O pessoal do bar e do barbeiro chegou e ficou olhando, pelo lado de fora da igreja , acompanhando a atitude e movimentação do maltrapilho. Poucos instantes depois, algumas velhotas, outras nem tanto, uma ou outra criança, foram se ajuntando aos que já estavam na porta, observando tudo.
A voz do homem era audível, mas as palavras incompreensíveis. O falatório estava na altura exata de ser percebido. A curiosidade do povo, agora quase toda a vila, era enorme.
Alguém lembrou de chamar o padre. Não foi possível. Tinha saído cedo e a igreja estava por conta de uma das dedicadas senhoras da congregação. Escondida na sacristia atrás do altar, ela observava o mendigo em sua igreja, limpinha, varrida e espanada. Que angustia. Não entendia o que ele dizia, mas via bem a sua cara barbuda, cavada e calma. Aos poucos simpatizou com a figura. Parecia um peregrino.
Sim! Um peregrino rezando em latim. Um homem santo, alguém que não dava valor a coisas materiais e tinha um modo próprio de adorar ao Senhor.
Tão logo entendeu tratar-se de um peregrino, saiu pela porta de trás da igreja e foi contar a novidade as amigas. Ainda não sabia da comoção em toda cidade com a chegada do estranho. Ao contornar a construção santa, percebeu o enorme aglomerado de gente. Aproximou-se e, em voz baixa, pediu silencio para não atrapalhar o peregrino.
-Peregrino? Como assim?
A piedosa congregada, foi recuando e trazendo consigo a populaça, reunida na porta de sua linda igreja, varrida e espanada com fervor.
-Ele está rezando em latim. Que nem o papa! Ele olha pra deus, e parece que fala com ele!
-Mas, como e possível, um mendigo roto, com uma trouxa nas costas ser um peregrino, comentou um dos mais céticos e menos assíduos nas missas.
-E um peregrino sim! Eu conheço! Respondeu a piedosa,cuidadora da igreja.
-E sim! Algumas outras congregadas começaram a repetir, em voz mais alta, chamando a atenção do pessoal mais próximo a porta.
O contestador calou-se. Num passe de mágica, o maldito, o miserável, o imundo, o invasor, fora transformado em fiel penitente.
O povaréu na porta da igreja foi entrando com cuidado, e se ajeitando nos bancos. Primeiro no fundo ate lotar, completamente, inclusive nas laterais como acontecia todos os domingos deixando o banco do peregrino, que permanecia orando, olhando para a imagem, parecendo desconhecer o que estava se passando.
Nem meia hora após sua chegada a vila, quase toda, estava ali ao seu lado, em oração e respeito.
Em dado momento, o peregrino levantou-se e caminhou em direção ao altar. Apenas alguns passos, seis ou sete, deixando sua trouxa e o cajado no corredor.
Um rumor de surpresa e espanto foi ouvido: Ohhh!
Ninguém saiu do lugar.
O peregrino ajoelhou-se bem perto do crucifixo e começou a rezar, em voz alta e em linguagem compreensível.
Fez a primeira e a segunda mais conhecidas preces, pedindo perdão para os pecados de todos que ali estavam, pedindo saúde, enfim a formula geral de solicitações e petições ao divino, concluindo com um sonoro ámen.
Todos responderam: ámen!
Então uma voz alta e diferente do peregrino ecoou na pequena igreja:
Bem aventurados aqueles que tem fé.
Bem aventurados aqueles que acreditam.
Bem aventurados os de bom coração.
Bem aventurados os que ajudam aos que precisam.
Bem aventurados os que dão, pois irão receber em dobro.
A imagem respondera as preces!
O homem era um santo!
Milagre! Milagre! Milagre!
Gloria! Gloria! Gloria! Gloria!
Uma gritaria formidável, um estupor, dois enfartes, vários desmaios. A choradeira e euforia tomaram conta do ambiente e o peregrino, tão logo a voz se calou, procurou a porta da sacristia saindo em seguida, pela outra, a dos fundos, voltando para a rua.
Abriu a sua trouxa, tirou uma caneca e um prato de alumínio, peças logo arrancadas e disputadas pelos moradores ávidos em lhe dar água e comida. Abençoou a todos quantos beijaram suas mãos. Agradeceu as roupas limpas e os sapatos substitutos das velhas sandálias.
Fez a barba no barbeiro, tomou banho na casa a piedosa, não recusou a coleta feita em seu nome e apreciou a carona ate a rodoviária.
Uma hora depois da saída do ônibus em direção a capital, sentado na primeira fila ao lado da janela, deu uma conferida na coleta, levantou e avisou ao motorista que iria descer antes, na primeira parada.
Ali mesmo conseguiu outra carona com um caminhoneiro.
Durante a viagem, contou um pouco de sua historia. Era ventríloquo. Trabalhava em circo e teatro. Gostava do que fazia. De vez em quando participava dos grandes espetáculos da semana santa.
Desceu em Brasília.
Postado por Raul Almeida
Em
17/1/2018 às 11h28
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