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Domingo,
25/11/2018
A Claustrofobia em Edgar Allan Poe - Parte I
Ricardo Gessner
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Durante madrugadas ébrias, chuvosas e frias, passo a noite em claro e um livro aberto. Entre o clarão de um raio e estrondo de um trovão, não sei se o que aparece no vidro da janela é a silhueta de Edgar Allan Poe, com dentes assustadoramente alvos, rindo-se enquanto sobrepõe tijolos para fechar qualquer saída, ou se o livro que tenho nas mãos é de uma ave de rapina cuja assinatura é “Nunca mais”. Desperto. Era um pesadelo? Olho ao redor e vejo-me num quarto fechado, sem portas nem janelas...
Edgar Allan Poe é um dos meus autores de cabeceira. Chama-me a atenção em seus contos uma fixação pelos espaços interiores e pequenos. Por exemplo, em “O gato preto” o personagem principal, depois de assassinar sua esposa, para livrar-se do cadáver, empareda-o no porão de sua casa; em “O coração delator”, depois de assassinar o velho companheiro, esconde o corpo debaixo do assoalho. Em ambos os contos, diga-se de passagem, a estrutura é bastante parecida, sendo vários os elementos em comum: a fixação do personagem pelo olhar (do gato no primeiro, do velho no segundo); um estado de clara perturbação mental do narrador-personagem; sons perturbadores, ora provindos da mente perturbada do narrador (o bater do coração do velho), ora das próprias condições situacionais (o miado do gato, que o narrador emparedou sem perceber junto com o cadáver).
Tenho comigo uma hipótese: acredito que esse “espaço fechado” é uma espécie de personagem que circunda, ou melhor, assombra inúmeros dos contos de Poe, mas que não tem nome e muitas vezes é o responsável pelo tom – para utilizar conceito do próprio Poe – do texto, ou até mesmo por gerar sua unidade de efeito. De tão evidente, passa despercebido. Este personagem é o “claustro”. Digo aqui “claustro” por falta de termo melhor; na verdade, penso nas quatro paredes fechadas que, mais do que seu sentido literal, funciona como uma espécie de arquétipo.
Em “O barril de Amontillado”, Montresor – o narrador-personagem –, amargurado e rancoroso por certas injúrias cometidas por Fortunato, tece uma armadilha para abandoná-lo numa câmara subterrânea, supostamente um depósito de vinhos onde haveria um “barril de Amontillado”. Provavelmente o conto é a principal fonte – ou barril? – que Sir Arthur Conan Doyle bebeu para escrever “A nova catacumba” ou Lygia Fagundes Telles para escrever “Venha ver o pôr do sol”. Montresor numa emboscada acorrenta Fortunato nessa câmara, fecha-a e segue, satisfeito de sua vingança. Toda a ação de “O poço e o pêndulo”, como sugere o título, se passa numa espécie de poço – um espaço fechado e misterioso. E talvez o conto que chega ao mais extremo nesse sentido seja “O enterro prematuro”, que versa sobre a fobia do narrador em ser enterrado vivo.
Ora, diante desses poucos exemplos ensaio que, mais do que um recurso literário utilizado por Poe, é, como disse no início, uma espécie de personagem. Um fantasma que assombra manifestando-se sob as mais diversas formas. E o “claustro” não se restringe ao espaço em si, também é sua manifestação, ou melhor, sua influência ou ligação sobre os personagens, como em “A queda da casa de Usher” ou em “Ligeia”, uma espécie de Feng-Shui macabro. E mais ainda, o claustro nem mesmo precisa ser um espaço físico: pode se associar à mente perturbada do personagem.
Acredito que o “claustro”, agora transposto para a condição humana, é um arquétipo. Trata-se do horror em ser levado, sem perceber, por uma força misteriosa que oprime e não oferece nenhuma perspectiva de saída. Vivo, consciente e sem saída, num lugar para sempre desconhecido, sem saber como chegou ali. O medo da morte torna-se um afago. Sem portas, sem janelas. Sem passado nem futuro. Isso é o “claustro”. Também pode ser inferno, eterno-retorno, imutabilidade... Pode se dar num espaço literalmente claustrofóbico ou a céu aberto, nas circunstâncias aparentemente mais insignificantes, mas é onde o abismo se abre. Tudo depende das circunstâncias ou da fertilidade mental de quem (não) pensa. Poe, nesse sentido, expõe as entranhas da vida. Seguimos sem saber como ou para onde, sobre uma jangada que acreditamos existir, fixos em miragens que por nós mesmos se transmutam a cada momento. Quando acordamos, estamos ali, num lugar fechado, sem portas nem janelas. O último gesto é gritar para escutar a própria voz.
To be continued...
Postado por Ricardo Gessner
Em
25/11/2018 às 14h29
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