Barcos e cavalos | Lúcia Carvalho | Digestivo Cultural

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Sexta-feira, 22/4/2005
Barcos e cavalos
Lúcia Carvalho
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Algum tempo atrás, logo depois de acabar uma reforma numa casa de praia, me ligou a decoradora. Ela queria que eu a acompanhasse numa visita para montar a casa. Disse que, além de levar coisas novas, ia separar uns objetos e quadros que ela achava que não iam ficar mais lá.

Chegamos e percorremos os ambientes. Ela na frente, na maior exibição, mostrava alguns objetos e móveis e dizia, apontando com a ponta da lapiseira, quem ficava e quem ia embora.

Eu atrás, muda, boquiaberta.

Na hora achei aquilo a coisa mais estranha do mundo. Eu jamais conseguiria fazer um julgamento tão cruel de tão simples objetos. Podia a imaginar a história que cada um deles carregava, vieram de todos os lados do mundo e de diversos tempos da vida de uma família para parar naquele beira mar. Eram parte da vida de uma pessoa. Ela nem aí.

- Todos os barcos, peixes e conchas saem - ela decidiu, categórica.

- Barcos e peixes? - eu perguntei, sem entender a quais barcos e peixes ela se referia. Afinal, estávamos na praia.

Ela suspirou, dando a entender que eu era muito burra e que ela teria que me explicar toooda a teoria dela. Assumiu ares professorais.

- As pessoas fazem coisas ridículas, Lúcia. Pense uma coisa. Porque as pessoas acham que as casas de praia devem ser decoradas com motivos marítimos? Coisa mais cafona! Só porque você está na praia precisa entupir a casa de barcos e peixes? Não basta o que tem lá fora? - e ela apontou o mar, rindo - Não, não. Não precisamos de nada disso! Os peixes ficam no mar, os barcos na água e as conchas dentro d'água. Vamos anotar o que vai embora daqui ... cinco barcos feios-que-dói, dois peixinhos horríveis, dois potes de conchas e olha, um pirata! Não acredito!

Diante da minha pasmaceira, a decoradora se sentou no sofá, como se aquela fosse uma situação completamente desgastante para ela.

- Ahhh. A mesma coisa acontece nas casas de campo. As pessoas fazem casas de fazenda, de campo, de montanha e enchem de patos, cavalos, ferraduras. Deusmelivre. É demais. Isso acaba comigo.

- Eu... eu nunca tinha pensado nisso - falei, sem graça.

- Detesto decoração com temas. Decoração não pode nunca ter tema. É cafona, muito cafona!

Ichi. Tema era... cafona? Tentei me lembrar se tinha algum destes objetos na minha casa - para rapidamente me recordar que, graças a Deus, não tenho casa de campo ou de praia - e avaliar que, se o mesmo pensamento é válido para as casas da cidade, o que seria cafona numa casa de cidade? Predinhos? Carrinhos? Será? Fiquei confusa, mas tive certeza que, diante do julgamento daquela mulher tão chique e elegante, alguma coisa eu deveria ter errado na minha casa, com certeza. Eu senti pelo olhar que ela me deu ao me explicar a teoria: eu era uma cafona.

Chamar um decorador é isso. Você compra regras dele para usar a sua casa. Pouco importa se o peixinho sobre a mesa foi teu filho que pintou num trabalho da escola, pois a inocência da infância não cabe nas regras da decoração. Pouco interessa se a barca azul foi comprada na sua lua de mel, numa tarde de passeio. Dane-se se você ganhou aquele vaso da sua bisavó. Tua história não interessa, ela não está na moda.

É cafona.

Acho muito triste pagar para alguém apagar o seu passado. Perdão, dona decoradora, perdão se eu fiquei irritada com tua lapiseira apontando para a vida alheia e mirando cruelmente para a minha vida também. Tenho em casa muito objetos que, com certeza, seriam apontados como "cafonas". Bom, talvez todos da minha casa, tão pouco decorada. Mas são os nossos olhos, e não os dos outros, que decidem quais lembranças que carregamos na vida.

Me deu vontade de levar tudo aquilo para mim. Adotar todos os objetos que a decoradora abandonou, como filhos órfãos. Mas eu apenas olhei para ela com pena, muita pena. A mulher rodopiava feliz dentro do seu medíocre poder de consumo, repetindo "cafona, cafona, cafona".

E me lembrei muito feliz de todas as cafonices da minha sala de estar.

Ainda bem.

Sim, peitos
Sempre tive um pouco de aflição quando me lembro que sou mulher e que tenho peitos. Dou graças a Deus de não tê-los grandes demais. São apêndices que foram muito úteis, ainda mais quando cresceram enormemente depois do parto e deram muito leite aos meus filhos.

Nunca pensei como isso aconteceria quando eu fosse mãe. Sabia que depois que estivesse grávida e tivesse o bebê eu teria leite, mas levei o maior susto. Ainda na maternidade, de um dia para outro meus peitos aumentaram muito de tamanho. Ficaram gordos, inchados, quentes e latejantes. Eu nem me mexia, achando que ia explodir.

Que medo.

Uma enfermeira entrou no quarto e me viu naquele estado, com os braços abertos, atônita. Senti que ela me olhou com pena. Eu estava totalmente dominada pela minha incapacidade de ser bicho. Uma mãe, apenas mais uma delas, bem educada, bem nutrida, saudável mas completamente inapta.

Ela me olhou e eu aceitei aquele olhar como uma fêmea abatida. Me salva, eu disse à ela de alguma maneira, dando um sorriso besta. A mulher sorriu. Ela sabia de tudo e encarava meu desespero com uma certa malícia. Chegou até perto de mim e me pediu que mostrasse meus peitos. A minha dor era muito mais funda e árdua que a cena, como se eu nunca mais pudesse sair de dentro da minha carne.

A mulher não hesitou. Enfiou suas mãos úmidas na minha pele, e, pouco a pouco, começou a me ordenhar, como fazem com os animais, como apertam as cabras, as vacas. Eu percebi que estava esguichando desordenadamente, vertendo assustadoramente muito líquido, sem controle, sem mais por onde espalhar. Ela tirava o meu leite de dentro do meu corpo com as suas mãos, fazendo movimentos contínuos, apertando, machucando, retirando. Aquilo não era dor. Aquilo era compreensão pura em ser bicho. Nada além da pressa da natureza de esvair-se. Eu não conseguia sequer olhar, quanto mais entender.

Olha, sinceramente. Não sabemos mais ser mulheres.

Foi a primeira vez que vi claramente o outro lado, atrás da minha redoma de vidro civilizatória. O lado cruel e doloroso de ser mãe, que derrapa na própria existência, que cai no chão de terra, que chora sem sentir dor, que nutre, que cuida, que espera e suspira diante do acaso. O lado que tem a verdadeira feminilidade, alcançando o lamentável e indecoroso limite do belo. A urgência pronta de ser bicho é inevitável em alguns momentos da vida. Naquele instante, fundi-me com elas, com todas elas, as fêmeas desse universo. Poderia, naquele instante, vomitar, urrar, me debater, espumar, verter ou morrer.

Pouco importava.

Aliás, depois disso tudo, todas as coisas pouco importavam.

Morrer a gente morre a cada dia, nascer a gente nasce a cada instante que novamente respira.

O resto, são acidentes de percurso.

Máquinas de lavar

Eu adorava esse anúncio das máquinas de lavar Westhinhouse quando era criança. Naquela época as propagandas eram ingênuas, até meio bobas. Elas te "pediam" para querer a coisa, tentavam te convencer que o produto era bom apenas "falando" que ele era bom. "Creme de leite Nestlé é bom", "bolachas Duchen são boas", "massa de tomate Etti é ótima".

Tadinhas das propagandas. Bobooonas...

Mas essa propaganda aí era diferente, pois ninguém sugeria nada. Repara, em lugar nenhum está escrito que a tal máquina de lavar é boa. Estava subentendido que, como todas as mulheres do mundo tinham a máquina, ela deveria ser ótima. Eu ficava intrigada. Eu tinha entendido, mas será que todas as outras pessoas entendiam? Acho que essa propaganda foi o começo dessa moda das propagandas atuais que a gente não tem a menor idéia do que estão vendendo.

Bem, todas as mulheres do mundo tinham uma máquina de lavar. No Japão, na Alemanha, na Arábia. Me lembro de analizar detalhadamente cada uma das figuras para entender de onde eram as mocinhas. E morria de vontade de desenhar a minha mãe e a sua máquina no buraco, para completar o Brasil. Se bem que, analizando bem, acho que a mulher do papagaio que é a brasileira. Ichi, é mesmo... não tinha lugar mais para a minha mãe, eu só percebi agora!

Bem, como no nosso mundo mulher nenhuma deseja uma máquina de lavar, penso que se alguém fizesse uma propaganda assim seria uma de computadores. Imagine que engraçado abrir uma revista e dar de cara com doze mulheres doismilianas posando ao lado das suas "máquinas"? Eu, aqui no Brasil, abraçando o meu querido micro e dando piscadinhas, a Sheila lá na França, agarradinha no micro novo dela e mandando "bisous", a Zana no Canadá...

Hahaha! Não seria muito engraçado?

Nota do Editor
Lúcia Cardoso é arquiteta, cronista e dramaturga. Assina o blog frankamente..., onde estes textos foram originalmente publicados (autorizando, aqui, claro, sua reprodução).


Lúcia Carvalho
São Paulo, 22/4/2005

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