COLUNAS
Quarta-feira,
4/12/2002
Quatro Mitos sobre Internet - parte 2
Adrian Leverkuhn
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2. Mito da Regularização Impossível
O mito seguinte refere-se à crença de que não exista uma forma de regularização da Internet - que sua distribuição "rizomática", como muitos gostam de dizer, a tornaria simplesmente indomável. Não haveria como, por exemplo, parar as redes peer-to-peer: derruba-se o Napster, derruba-se o Audiogalaxy, mas os usuários acabariam sempre encontrando uma nova forma de se organizar, criar um novo programa e compartilhar seus arquivos de forma ainda mais poderosa; tira-se do ar um site com conteúdo ilegal (seja racista, difamatório, com pornografia infantil) e brotam, em resposta, mais vinte do mesmo tipo. Aos governos, e ao mundo de carne e osso em geral, restaria apenas aceitar o caráter anárquico, incontrolável da internet.
É uma fantasia curiosa, na era do Panopticon (a fantasia do controle total, do olho que a tudo observa). Ao mesmo tempo em oposição e como complemento, sonha-se com mostrar-se para todos, falar para todos, e ainda assim ser invisível; ser uma parte integrante da sociedade e ao mesmo tempo intocável, poder ignorar suas forças e suas regras. Foucault disse que o Panopticon é uma estrutura de poder reduzida à sua forma ideal, além de qualquer resistência, e que, por isso mesmo, perde qualquer utilidade: é apenas um olhar, inelutável, mas incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar. A rede indomável, por sua vez, seria um se mostrar universal, um ser visto que, no entanto, se resume ao ser visto - mesmo os defensores mais radicais da anarquia digital mostravam-se desinteressados em mudanças sociais no mundo real, em suas casas abastadas na Califórnia. Mas a rede desregulada e anárquica não é, ao menos parcialmente, uma verdade? Não foi, no princípio, quase verdade?
O atual modelo da internet foi pensado para proteger a informação - a Darpanet, primeiro exemplo do tal modelo, (e não é deliciosamente irônico que a internet "anárquica" tenha nascido de um experimento militar?) foi criada justamente com esse intento - a informação, e, principalmente, o processamento de informação, distribuídos entre vários computadores, seria menos vulnerável a um ataque (no sentido antigo, de se jogar bomba mesmo) do que se estivessem centrados em uma única localização. Só depois é que se descobriu as outras utilidades da informação distribuída, quando então o modelo foi apropriado pelas universidades com o fim, não de proteger, mas de compartilhar o conhecimento e a capacidade de processá-lo. Aí é que entra o acidente que gera a internet: ninguém, ou quase ninguém, esperava que a rede, ao ser aberta ao público geral, atraísse tanta atenção. E daí que um belo dia a evolução das tecnologias midiáticas - tendendo, sempre, à comunicação hierarquizada e totalitária - esbarra com um meio internacional que não pode, aparentemente, ser censurado, ou, pelo menos, que não pode ser censurado silenciosa e discretamente. Mas, é bom repetir, foi um acidente: se se tivesse antevisto a possibilidade do surgimento de redes peer-to-peer já no começo da internet, elas teriam sido cortadas pela raíz, e não assistiríamos hoje as tentativas desajeitadas e ambíguas de impedir seu funcionamento. O mesmo vale para todos os outros mecanismos de censura e controle que vemos brotar por toda a parte - o Grande Firewall da China, o Carnivore do FBI, a caça às bruxas contra pedófilos (que parece só se preocupar com quem recebe e transmite, nunca com quem cria as imagens), antes do atentado, e a terroristas, depois do atentado; ou mesmo mecanismos judiciais, como os que levaram o "cocadaboa.com", um site de humor, a se hospedar na Eslovênia, e o blog "anti-lula", que consistia, conforme me informaram posteriormente, apenas de uma seleção de matérias publicadas na grande mídia, a ser tirado do ar; para não falar de Paul Trummel, jornalista que foi parar na solitária por "failing to permanently alter the accusatory language on his Web site". Se a internet é, ainda hoje, um espaço onde informação ilegal - ou ao menos impublicável nas mídias já domesticadas - ainda circula ao alcance do usuário doméstico que tenha tempo e conhecimento para localizá-la, nós o vemos em quantidade muito menor do que poucos anos atrás, e a tendência é continuar com a escalada do controle e a manutenção de mecanismos para tanto ainda maiores e mais poderosos. A Internet não é a dimensão paralela da informação, como se sonhou, mas algo que faz parte do mundo real, sustentado por dinheiro e equipamento bastante reais, que terá que entrar em equilíbrio com a sociedade. O máximo que podemos esperar é que a sociedade também se adapte à internet, e não só a segunda à primeira: que o internacionalismo, o compartilhamento de conhecimento e a liberdade que a grande rede implica sejam incorporados ao mundo real, à medida do possível, e não a redução da internet a uma espécie de TV interativa, ou a um protótipo de seu inverso simbólico, o Panopticon de que estamos cada dia mais próximos.
3. O Mito da Voz
O mais conhecido deles, é talvez o único ponto com que todos os entusiastas - e muitos dos céticos - concordam: que a internet, dando a todos a chance de falar para milhares, ou até milhões de pessoas, teria dado uma "voz" para os oprimidos, permitindo que denúncias e discursos que anteriormente jamais seriam transmitidos em massa alcancem o grande público. É claro que não se pode dizer que essa assertiva é falsa - algumas linhas acima eu mesmo argumentei que a internet ainda permite o tráfego de informação ilegal ou "impublicável", o que significa, sim, dar voz a quem antes não teria a chance de falar - ou falar dessas coisas, pelo menos. O problema está no exagero com que esta "Voz" é cultuada - alguns falam num renascimento da voz (quando foi que a mataram? Quando foi a última vez que ela esteve viva?), outros a adotam como o nascer de uma nova era, uma grande revolução com traços utópicos e raízes meio hippies. É aí que é preciso pedir que se seja um pouco mais sóbrio.
A crítica mais comum é simples e imediata: apenas uma pequena parcela da população mundial está online. Estima-se, de fato, que menos de 450 milhões de pessoas têm acesso à internet - o que nos deixa com mais de cinco bilhões e meio de excluídos digitais, gente ainda, por assim dizer, "sem voz". Mas considere-se os que têm acesso: apenas 4% deles são sul-americanos (segundo estimativa da Nielsen/NetRatings), por exemplo, e a proporção africana é ainda menor. Finalmente, desconta-se os que usam a internet apenas para enviar e-mails para amigos e familiares, usar um instant messenger e procurar pornografia - quantos ainda restam? Dá para fazer uma revolução cultural no mundo inteiro com esse tantinho de gente?
A segunda crítica é que mesmo aqueles que têm a oportunidade de usar a internet para obter e divulgar informação relevante raramente estão interessados em fazê-lo. Há, claro, várias redes de pessoas que aproveitam as características do meio para tanto - e aí está o grande potencial da internet, que é permitir que estas pessoas se encontrem e dialoguem; são, sempre, pessoas já inclinadas a fazê-lo, que teriam o mesmo interesse e dedicação sem a rede, mas que jamais se encontrariam sem ela, ou, no mínimo, com muita dificuldade. Os demais aproveitam o anonimato e a liberdade de expressão a eles concedidos, pelo contrário, para reafirmar o sentimento de grupo e renovar seus preconceitos (que é, afinal, o que a maioria das pessoas faz quando "discute" algum assunto); ao invés de revelar o que a mídia profissional estaria escondendo deles, a maioria dos usuários prefere apenas propagar o que ouviu nesses canais, e tira seu sentimento de radicalidade de bradar com todas as letras o que a mídia profissional guarda para as entrelinhas, para pressupostos implícitos e manipulativos que os usuários deveriam desmascarar. Isso quando tanto: a maior parte do tempo a "libertação da voz" graças ao anonimato é mais aproveitada para fantasias sexuais, a incorporação de personagens idealizadas - as pessoas ricas, inteligentes e bonitas que elas gostariam de ser - que, propriamente, para discussões políticas ou sociais - o que é um tanto revelador, não só sobre o meio mas também sobre o ser humano em geral.
4. O Mito da Responsabilidade
Finalmente, o último mito sobre internet a ser discutido aqui é o que fala de uma certa obrigação moral decorrente de se ter acesso à informação. O exemplo típico é o Holocausto: os civis alemães podiam, à época, argumentar que não sabiam o que acontecia nos campos de concentração, como forma de justificar não terem feito nada a respeito; com a internet, pelo outro lado, tal desculpa não seria mais possível - alguém descobriria, alguém colocaria on-line, e todos teriam acesso a essa informação. Se escolheriam acreditar ou não, e fazer ou não alguma coisa a respeito, ficava somente a cargo dos usuários; ninguém mais é inocente.
Aqui seria possível reiterar tudo que já foi dito até agora: que a informação muitas vezes é filtrada com critérios outros que sua veracidade, que apenas uma pequena parcela da população tem realmente acesso à internet (e sabe como achar informação, uma vez nela), que as vozes responsáveis e de minorias são de interesse de apenas uma pequena parcela dos usuários, etc. Além disso, o que é publicado na web muitas vezes pode ter o efeito contrário, como uma artimanha política que coloca o público no escuro mais do que o esclarece.
Uma prática bem exemplar desse uso da web foi noticiada pelo site de notícias Ynet.co.il: um grupo de civis israelenses, segundo o site, teria registrado vários domínios com nomes de cidades e organizações palestinas, e então criado sites "palestinos" em seu lugar. O usuário, usando a internet para tentar ouvir o "outro lado da história" (encantado, neste caso, pelo mito da voz), encontra então uma página aparentemente banal, mas que, conforme ele vai clicando, revela discursos sanguinários e fotos de atentados. Não é um evento isolado: a prática de cria um site aparentemente pertencente a inimigos políticos e então utilizá-lo para difamá-los já tem até nome - Political Cybersquatting - e já foi, inclusive, adicionado à legislação referente a computer-crimes na Califórnia. No Brasil, embora Cybersquatting seja raro, é comum receber e-mails de corrente com informações falsas, assinados por jornalistas e colunistas famosos ou professores universitários que jamais escreveram aquilo, ou que nem existem. (Certa vez, recebi até um e-mail cheio de denúncias sobre as privatizações não lembro agora exatamente do quê, de um professor de uma universidade federal da bahia com e-mail @ufba.com.br . .com, vejam só - o sujeito nem se deu ao trabalho de verificar que as universidades federais, não sendo instituições comerciais, não têm e-mails .com!) Acreditar que só porque alguma denúncia foi feita na internet nós todos teríamos que arcar com a culpa de tê-la ignorado é muito inocente: obviamente circulariam várias outras antagônicas, criadas justamente para abafar a primeira, e muito poucos conseguiriam filtrar qual delas é verdadeira - a maior parte do público permaneceria tão iludido como sempre.
A Máquina de Escrever - a grande invenção de nosso tempo
Em 1930, com o êxito das primeiras máquinas de escrever elétricas comerciais, o New York Times previu, pomposamente, que em poucos anos ninguém mais estaria usando lápis. Alguns anos antes, estudos e artigos eram publicados falando de como a invenção da máquina de escrever revolucionaria a sociedade, democratizando algo que só era possível até então com grandes máquinas de editoras, e que agora estaria ao alcance de cada pessoa que quisesse se expressar. Alguns até mesmo previam efeitos terríveis com o advento da máquina de escrever.
É meio embaraçoso, para quem hoje comenta ou estuda as novas mídias e seus possíveis efeitos sociais, ver o entusiasmo daquela época, tão parecido com o nosso e tão equivocado. É provável que a internet vingue, que sua promessa de democratização da informação seja mais sólida e perene que a da máquina de escrever; ainda assim, é um paralelo que invoca cautela e merece atenção. Não podemos, é óbvio, ignorar as mudanças na forma das pessoas se comunicarem que estamos hoje presenciando; mas tão perigoso quanto é se deixar impressionar e perder os pés do chão. É sempre bom realizar um reality-check, e lembrarmos do perigo de sermos vistos, no futuro, como a *outra* geração a decretar o fim do lápis e tocar fanfarras para máquinas de escrever.
Adrian Leverkuhn
Brasília,
4/12/2002
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