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Segunda-feira, 22/7/2002
O Mal em debate nas latrinas de Buchenwald
José Nêumanne
+ de 4700 Acessos

Imagine que, no inverno de 1944, com a Segunda Guerra Mundial chegando a seu desfecho, certo interno no campo de concentração de Buchenwald tenha sido escalado para viver o resto de seus dias usando o nome de um moribundo com quem passara sua última noite, dele ouvindo as últimas palavras em meio aos suspiros finais de uma multidão de mortos-vivos. A frase não foi dita em francês, língua materna do moribundo, nem em alemão, corriqueiro no campo, mas no puro latim de Cícero e César: "post mortem nihil est ipsaque mors nihil...", que quer dizer "depois da morte não há nada e a morte não é nada". Imagine que mais de meio século depois o mesmo sobrevivente, ao traduzir As Troianas de Sêneca para o castelhano, topou com a sentença, fresca, à sua frente, trazendo de volta a cena macabra, detalhe por detalhe. O que essa pessoa deveria fazer? Isso daria um livro, você dirá, caro leitor. Mas para tanto seria necessário que o sobrevivente fosse um predestinado, que, além de escapar dos horrores de Buchenwald, ainda tivesse o raro talento de escrever.

Pois saiba que esse predestinado existe. O protagonista dessa cena bela e terrível é um dos maiores narradores da literatura ocidental do século marcado pelos horrores do nazismo, o 20. O nome dele é Jorge Semprún, espanhol e autor de obras-primas da literatura em francês, entre as quais um dos romances seminais do dito cujo século, A Segunda Morte de Ramón Mercader. E o que ele fez depois de topar com a frase do filósofo romano no texto que traduzia para sua língua materna, não o francês, mas o castelhano, foi aquilo que você imaginaria que ele fizesse: um livro. Chama-se Le Mort qu'il Faut (A Morte Necessária) no original, Viviré con Su Nombre, Morirá con el Mío (Viverei com Seu Nome, Morrerá com o Meu) na sugestiva tradução espanhola de Carlos Pujol.

Como nos livros anteriores de Semprún, o roteirista de clássicos do cinema como Z, de Costa-Gavras, partiu desse episódio para tecer uma narrativa em que a História coletiva se mistura com a memória pessoal, reconstruída a partir de retalhos de canções ou de frases soltas ao vento; e a política e o afeto se complementam, uma explicando o outro e pelo outro sendo negada.

Assim como em Um Belo Domingo Semprún extrai substância do fato de o campo de horrores de Buchenwald ter sido construído pelos nazistas no campo em que o poeta Goethe conversava com seu amigo Eckermann, que depois reproduziria os passeios num livro que se tornaria clássico, em seu último romance ele reconstrói, lembrança por lembrança, o lugar erguido para matar os inimigos do regime nazista em escala industrial. Ali estão o salão dos moribundos, que não suportaram a dura vida de confinamento, e os fornos crematórios, orgulho da tecnologia assassina da utopia nacional-socialista. Mas também a biblioteca, em cujas estantes o autor encontrou Absalão, Absalão, de William Faulkner, uma de suas leituras de ficção favoritas, durante o inteiro resto de sua vida.

Ali surgem sobretudo as latrinas, onde os companheiros de Semprún na miríade de Partidos Comunistas de vários países da Europa se reuniam para discutir questões de administração do campo, longe da escuta onipresente da SS, que não se dispunha a enfrentar a fedentina para bisbilhotar. Das lembranças reconstruídas pelo talento de ficcionista emerge uma imagem vívida daquele sistema horrendo de confinamento, punição e extermínio, de cuja administração as vítimas também faziam parte. Para se ter uma idéia do ponto a que chegava o poder dos prisioneiros organizados em Buchenwald, o gesto supremo que motivou o romance – a troca de identidade com o moribundo – foi provocado exatamente pela necessidade que as organizações clandestinas tinham de manter seu controle sobre a administração da própria desgraça. Em resumo: o Partido Comunista Espanhol teve a informação de que a Gestapo pedia à SS informações sobre um militante comunista espanhol de 20 anos, Semprún em pessoa. Temendo que o pedido de informação terminasse por deslocá-lo da tarefa que lhe cabia no campo, o PCE tratou de "matá-lo". Para isso, foi encontrado um moribundo com suas características pessoais, ele foi posto em seu leito de morte e, quando o escolhido expirou, tratou-se da burocrática troca de identidade.

Não há lembranças neutras ou inócuas no relato de Semprún. Os acordes de "In the Shade of the Old Apple Tree" ou "On the Sunny Side of the Street", executados pela banda de jazz, lembram ao autor o fato de o tcheco Jiri Zak, que fazia as vezes do trompetista Louis Armstrong nessas execuções musicais, ter sido executado pelos russos em sua Praga natal. Sobreviventes recalcitrantes condenam o registro da existência de uma biblioteca para que os pósteros não imaginem que o campo de concentração não passaria de uma estação de repouso.

Desde que foi expulso do PCE, Jorge Semprún deixou de ser engajado na causa socialista. Mas como escritor e intelectual, continua militando na missão também política, mas mais do que política humanística, de buscar o sublime mesmo nos recantos mais sórdidos da alma humana – afinal, foi conversando com um jovem muçulmano (pária, na gíria dos campos de concentração) nas latrinas de Buchenwald que ele encontrou a evidência da afirmação de Kant de que o Mal não é inumano, mas, ao contrário, uma expressão radical da liberdade humana.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno de Leitura Sábado", do Jornal da Tarde.


José Nêumanne
São Paulo, 22/7/2002
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