A humanidade segundo Saramago | Mariana Ianelli

busca | avançada
44126 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Teatro do Incêndio e Colmeia Produções convidam o público a partilhar saberes no ciclo Incêndios da
>>> ZÉLIO. Imagens e figuras imaginadas
>>> Galeria Provisória de Anderson Thives, chega ao Via Parque, na Barra da Tijuca
>>> Farol Santander convida o público a uma jornada sensorial pela natureza na mostra Floresta Utópica
>>> Projeto social busca apoio para manter acesso gratuito ao cinema nacional em regiões rurais de Minas
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> A dobra do sentido, a poesia de Montserrat Rodés
>>> Literatura e caricatura promovendo encontros
>>> Stalking monetizado
>>> A eutanásia do sentido, a poesia de Ronald Polito
>>> Folia de Reis
>>> Mario Vargas Llosa (1936-2025)
>>> A vida, a morte e a burocracia
>>> O nome da Roza
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
Colunistas
Últimos Posts
>>> O coach de Sam Altman, da OpenAI
>>> Andrej Karpathy na AI Startup School (2025)
>>> Uma história da OpenAI (2025)
>>> Sallouti e a história do BTG (2025)
>>> Ilya Sutskever na Universidade de Toronto
>>> Vibe Coding, um guia da Y Combinator
>>> Microsoft Build 2025
>>> Claude Code by Boris Cherny
>>> Behind the Tech com Sam Altman (2019)
>>> Sergey Brin, do Google, no All-In
Últimos Posts
>>> Política, soft power e jazz
>>> O Drama
>>> Encontro em Ipanema (e outras histórias)
>>> Jurado número 2, quando a incerteza é a lei
>>> Nosferatu, a sombra que não esconde mais
>>> Teatro: Jacó Timbau no Redemunho da Terra
>>> Teatro: O Pequeno Senhor do Tempo, em Campinas
>>> PoloAC lança campanha da Visibilidade Trans
>>> O Poeta do Cordel: comédia chega a Campinas
>>> Estágios da Solidão estreia em Campinas
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Aproximações políticas, ontem e hoje
>>> Surf em cima do muro
>>> E não sobrou nenhum (o caso dos dez negrinhos)
>>> Semana da Canção Brasileira
>>> Cartas@de.papel
>>> 24 Horas: os medos e a fragilidade da América
>>> Ai de ti, 1958
>>> Cultura, técnica e uma boa idéia
>>> Aqui você encontra?
>>> Desvirtualização no Itaú Cultural
Mais Recentes
>>> O tarô zen, de Osho de Osho pela Antier (2022)
>>> O Catador de Pensamentos de Monika Feth pela Brinque Book (2013)
>>> Educação Excepcional Manual para Professores de Ottilia Braga Antipoff pela Pestalozzi (1983)
>>> O Cemitério Dos Anões Livro 2 de Marcos Mota pela (2017)
>>> O Poder do Agora de Eckhart Tolle pela Sextante (2000)
>>> Codigo Penal Para Concursos Sanches de Rogerio Sanches Cunha pela Juspodivm (2022)
>>> Os Três Lobinhos e o Porco Mau de Eugene Trivizas e Helen Oxenbury pela Brinque Book (2010)
>>> 50 Gershwin Classics - Piano / Vocal de George Gershwin pela Warner Bros (1989)
>>> As Sete Leis Espirituais Da Ioga de Deepak Chopra pela Rocco (2008)
>>> Ozzy - O Menino da Cabeça Erguida de Anna Padilha Moura pela Quatro Ventos (2024)
>>> Frank Sinatra Songbook de Frank Sinatra pela Warner Bros (1989)
>>> Uma aventura de Asterix o gaules - O adivinho de Uderzo - Goscinny pela Record (1985)
>>> Autobiografia De Um Iogue de Paramahansa Yogananda pela Self-realization Fellowship (2016)
>>> Para minha amada Julieta de Natália Soares pela Literíssima (2024)
>>> A Corrosão Do Caráter de Richard Sennett pela Record (2012)
>>> Bíblia Sagrada - Show da Fé, Edição Comemorativa de Sociedade Bíblica do Brasil pela Sociedade Bíblica do Brasil (2006)
>>> Anjo Da Morte de Pedro Bandeira pela Moderna (2001)
>>> Manual de processo penal de Fernando da costa tourinho filho pela Saraiva (2013)
>>> Pocesso penal de Fernando da costa tourinho filho pela Saraiva (2000)
>>> Direito e processo do trabalho de Estêvão mallet,vários autores pela Ltr (1996)
>>> Processo penal de Fernando da costa tourinho filho pela Saraiva (1990)
>>> Código penal de Juarez de oliveira pela Saraiva (1993)
>>> Código comercial de Antonio luiz de toledo pinto pela Saraiva (2005)
>>> Código comercial de Antonio luiz de toledo pinto pela Saraiva (2004)
>>> Clínica médica medicamentos e rotinas médicas de Ênio roberto pietra pedroso,reynaldo gomes de oliveira pela Blackbook (2007)
ENSAIOS

Segunda-feira, 18/1/2010
A humanidade segundo Saramago
Mariana Ianelli
+ de 7700 Acessos

Há muito tempo não se via um lançamento despertar tanta polêmica, sobretudo de ordem extraliterária. É assim que Saramago assiste à repercussão do seu novo livro, Caim, cuja controvérsia lembra os efeitos provocados por seu Evangelho segundo Jesus Cristo, 18 anos atrás. Na época, a resposta do governo português foi a interdição da candidatura do escritor ao Prêmio Literário Europeu. Agora, com o surgimento de Caim, as reações novamente se inflamam, chegando ao disparate de um eurodeputado exortar Saramago à renúncia de sua cidadania. Às declarações políticas, somam-se as admoestações religiosas, que são muitas e talvez mais interessantes.

Se antes o autor se detivera no Novo Testamento para escrever seu Evangelho, agora sua atenção se volta ao princípio dos tempos, em uma jornada do pensamento e, por que não dizer, do espírito, por algumas das mais célebres passagens do Antigo Testamento. É a figura estigmatizada de Caim que protagoniza essa história, na qual Saramago mescla episódios de diferentes tempos bíblicos sob a perspectiva de diferentes presentes no tempo da narrativa. Em cada um desses "presentes", visitados pelo personagem em seu destino errante, uma "vítima de deus" se apresenta, seja no sacrifício de Isaac, no sofrimento de Jó ou na destruição de Sodoma.

Saramago se propõe a ler a Bíblia à letra, daí a censura que os católicos lhe fazem: desconsiderar uma leitura simbólica. Quantas sejam as interpretações possíveis, para o autor de Caim interessa que o texto bíblico, tal como está escrito, não seja suprimido ou mascarado. Em conversa com o teólogo José Tolentino Mendonça, em outubro do ano passado, na ilha de Lanzarote, o escritor chegou a afirmar que, ao menos no seu "estado de espírito presente", considera este recente trabalho o seu melhor livro. Tolentino, porém, acredita que a narrativa não possui a complexidade de seus outros romances. Entre um extremo e outro, vale ressaltar a prodigiosa fluidez e o humor que há nas páginas de Caim.

Grafado em letras minúsculas, como todos os personagens do romance, deus aparece na narrativa feito do mesmo barro da sua criatura, à imagem e semelhança dos homens. Vaidoso, irônico, temperamental, faz que governa o mundo mas quase sempre está ausente, é um deus que se equivoca, que promete e não cumpre, que promove acordos tácitos e, quando se trata da disputa de poder, não hesita em pôr seus filhos à prova. Por meio deste personagem muitas vezes jocoso, absurdo, repleto de vícios mundanos, Saramago, valendo-se da mordacidade que lhe é peculiar, coloca em ação seu testemunho da violência, do terrorismo fundamentalista, da hipocrisia humana. Quanto aos mistérios da fé e aos desígnios do coração, neles o escritor não toca, nem é para isto que se lhe dá a palavra: "o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão".

É, pois, com este deus de tantos caprichos e impulsos que Caim divide a culpa pela morte de seu irmão Abel. Culpado Caim por ter escolhido matar, culpado deus por ter preferido um filho a outro. Começa aí a odisseia do protagonista, vítima do menosprezo divino, condenado a vagar indefinidamente pela terra, ao longo da história do passado e do futuro, em meio a "batalhas de uma guerra infinita" em que o sangue de Abel se perde no sangue de centenas de milhares de vítimas. Caim serve ao exército de Josué, trabalha nas propriedades de Jó, acompanha Abraão e os anjos do senhor até Sodoma, e em cada um desses episódios bíblicos vê multiplicarem-se as mortes, as súplicas, o saldo da humilhação e da injustiça.

Saramago transplanta o filho fratricida de Adão e Eva para gerações pós-diluvianas, e a humanidade que se devia supor renovada, limpa da crueldade da descendência de Caim, ao contrário, revela-se igualmente sanguinária. Por tudo o que vê nessas incursões pelo "presente-futuro", o protagonista vai nutrindo seu pessimismo e sua revolta: "Alegria, perguntou a si mesmo, para caim nunca haverá alegria, caim é o que matou o irmão, caim é o que nasceu para ver o inenarrável, caim é o que odeia deus".

Subversão pelo humor
Entre idas e vindas no tempo, já cansado das "costumadas destruições e dos costumadíssimos incêndios", Caim retorna à terra de Enoch e tem-se aí o capítulo mais belo do livro. Permutando os mitos pela Bíblia, o autor encena, no reencontro dos amantes Lilith e Caim, o reencontro de Penélope e Ulisses. Os movimentos sucedem-se como num jogo de espelhos. Vale a pena citá-los aqui, lado a lado: "(...) depois que Ulisses e Penélope satisfizeram o seu desejo/ de amor, deleitaram-se com palavras, contando tudo um ao outro./ (...)/ Ele começou por contar como primeiro venceu os Cícones/ e chegou depois à terra fértil dos Lotófagos./ Também tudo o que fez o Ciclope (...)" (Odisséia, Canto XXIII). Em Caim:

"Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação dos corpos com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. (...) Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu (...)".

O ar de gravidade que uma releitura do Antigo Testamento poderia implicar, Saramago subverte-o pelo humor, ou ainda, com um sarcasmo que rompe toda espécie de servilismo diante dos limites do sofrimento humano. Na voz da mulher de Jó, o escritor ataca: "o mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome". Também beiram a caricatura as aparições do senhor na terra, com cetro em punho "como um cacete", ou "em fato de trabalho", manifestando-se "em meio de um trovão ensurdecedor e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos". Impossível evitar o riso no episódio da construção da Arca de Noé, quando Caim aponta um erro nos cálculos de deus usando o princípio de Arquimedes.

Fim da viagem pela história dos tempos, no dilúvio se dá a grande revanche de Caim. Não podendo matar a deus, o filho desprezado, como antes assassinou Abel por despeito, agora boicota o projeto de uma nova humanidade. Aquele que havia sido o senhor das guerras, o causador de tantas vítimas, é ele mesmo vitimado, condenado ao abandono, um criador sem criatura que lhe obedeça ou o glorifique, em outras palavras, um deus destituído da violência que os homens costumam imputar à sua vontade.

"Ninguém percebe que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino?", questionava Saramago, três anos atrás, em entrevista ao jornalista Edney Silvestre. Esta mesma pergunta continua soando, irrequieta, nas páginas de Caim. Ateu convicto e, no entanto, constantemente aferrado à ideia de Deus, Saramago admite ter como uma de suas grandes influências o padre Antonio Vieira, cujo "Sermão da quinta quarta-feira da Quaresma" bem poderia ter lhe servido de centelha para o Ensaio sobre a cegueira. Sob esse aspecto, o cenário cataclísmico desse romance mostra do que é capaz a espécie humana finalmente livre do imperativo do Decálogo. O próprio escritor, que se diz "empapado de valores cristãos", assegura que "para fazer um ateu como ele, é necessário um alto grau de religiosidade". Mas, à parte as vinculações e desavenças do escritor com a religião, que acendem aqui e ali a fogueira dos debates, por vezes ofuscando a própria literatura, cabe pensar no homem, e no entorno que ele modifica à sua passagem, a partir da obra de Saramago.

Outra questão que mereceria um olhar mais aprofundado, tanto da crítica, como do público leitor, consiste não apenas na vasta incidência de temas bíblicos na literatura moderna e contemporânea, mas, em especial, na reincidência da figura de Caim, agora com o relançamento de O Deus de Caim, de Guilherme Dicke, e com As vozes do sótão, de Paulo Rodrigues, que também traz à tona as memórias de um personagem enjeitado, oprimido, moralmente devastado pela falta de amor. Que esse fenômeno propicie uma reflexão sobre o contexto em que tais livros aparecem, hoje, à cena literária, para se avaliar mais suas "significações terrestres" do que suas implicações teológicas. Assim, é provável que a discussão suscitada por Caim, de Saramago, inverta a contento o pressuposto da "provocação pela provocação" e comece a ser considerada sob aquela outra perspectiva que o escritor já assinalava em A viagem do elefante, seu romance anterior: "Quem diria que a moral nem sempre é o que parece e que pode ser moral tanto mais efetiva quanto mais contrária a si mesma se manifeste".

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no jornal Rascunho, em dezembro de 2009.

Para ir além






Mariana Ianelli
Salvador, 18/1/2010
Mais Mariana Ianelli
* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Bush 2 a Missão e outras reflexões sobre o mundo do século XXI
Nelson Franco Jobim
Nova Prova
(2006)



Seefahrt in Aller Welt Nr 20
Anker Hefte
Moewig Verlag
(1955)



Os Jornais Podem Desaparecer?
Philip Meyer
Contexto
(2007)



Wander Piroli uma Manada de Búfalos Dentro do Peito
Fabrício Marques
Conceito
(2018)



Godenslaap
Erwin Mortier
Bezige
(2009)



Livro Literatura Estrangeira O Vermelho e o Negro Volume 23
Stendhal
Abril Cultural
(1971)



Matemática Aplicada às Ciências Gerenciais
Dimas Felipe de Miranda; João Bosco Laudares; Trajano Coutinho de Almeida
Fumarc
(1983)



Caridade
Francisco Cândido Xavier; Outros
Ide
(1984)



Amiga Do Diabo - Coleção Negra
Peter Robinson
Record
(2010)



O Cérebro e o Sistema Nervoso Central - Seu Corpo , Sua Saúde
Readers Digest
Readers Digest
(2007)





busca | avançada
44126 visitas/dia
1,7 milhão/mês