ENSAIOS
Segunda-feira,
13/6/2011
Legado para minha filha
Eugenia Zerbini
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Ao pensar em deixar um legado para a filha, toda mãe ― mesmo sem querer ― reflete sobre um legado para si mesma. Toda mãe já foi filha; na maior parte dos casos, as filhas tornam-se mãe, um dia.
Ponderando durante semanas sobre qual legado eu deixaria para minha filha, refleti, na verdade, sobre o que eu gostaria de ter recebido de minha mãe. Nada na natureza é tão visceral como os laços entre mãe e filha. São potentes os elos entre pais e filhos. Mas estes últimos nunca chegarão a experimentar as entranhas de seus pais, como toda filha prova as de sua mãe. A todo filho é franqueada a experiência da vida secreta no ventre materno, mas apenas às filhas é concedido o duplo privilégio dessa vivência arcana: nas categorias de objeto, feto-criatura, e posteriormente, de sujeito, mulher-criadora.
Eu sou filha de minha mãe, que um dia já foi filha, filha essa que, por sua vez, teve uma mãe ― minha avó ―, que, em um tempo hoje distante, também foi uma filha. Diante da grandeza dessa espiral infinita formada pela dinâmica criaturas-criadoras desenhada pela vida, todas as vezes que me preparei para esta escrita senti-me inibida, em face de algo infinitamente maior do que eu mesma.
Qual o legado que eu deixo para minha filha, especialíssima para mim, fruto de uma gravidez às portas do outono, nascida na véspera de meu aniversário de 40 anos? O que de supremo, incorruptível, útil e verdadeiro eu posso transmitir para alguém que, além de ser diferente de mim, certamente viverá sua vida independente em tempos tão diversos daqueles em que vivi?
Diante da imensidão dos mistérios da maternidade e do imponderável que envolve todo futuro, arrisco-me a deixar-lhe um legado. Ele é breve e simples. Assumindo essa simplicidade, corro todos os riscos, desde o de parecer ingênua, até o de ser banal, passando pela armadilha do lugar-comum. Porém, acreditando piamente que a salvação está no simples, desvencilhando-me de vaidades, assumindo a nudez em que eu, você e todos os seres humanos vêm ao mundo, deixo um conselho, bem curto, mas que eu nunca recebi: ame a si própria.
Filha, cerre seus olhos, coloque este texto de lado e escute apena minha voz: amando a si mesma, você estará amando aqueles que vieram antes de você, aqueles e aquelas que vivem a seu lado e todos os outros que certamente despontarão em seu futuro. Esse amor fará com que você se compreenda e se aceite. Ao fazer isso, você compreenderá e aceitará todos aqueles que a cercam. Esse amor irá nutri-la e protegê-la; fará com que você cresça e floresça, além de banhar de luz aqueles que irão caminhar à sua volta.
Ame-se. Simples como isso, no despojamento e no frescor das águas cristalinas. Faça desse amor seu mantra, seu salmo, seu amuleto. Abuse desse amor, sempre enxergando o mundo e as pessoas com amorosidade e compaixão. E descubra a força das estações do ano, dos ritmos da terra, das lições que brotam da natureza. Ame-se e aprenda com a singeleza de um aroma que escapa de uma panela, de um pequeno favor prestado por uma amiga, do cintilar de uma primeira estrela despontando no começo da noite.
Ame-se, seja simples e nunca se esqueça de que os grandes exemplos nos são dados de graça. As madrugadas mais escuras são arrematadas por esplendorosas auroras; amando-se, você nunca irá duvidar dessa afirmativa. Ame-se, sonhe, tendo os dois pés plantados no chão, como os baobás, recordando-se de que, apesar de sermos seres reais, temos a mesma virtude da fênix, ave imaginária que morre e renasce diuturnamente das próprias cinzas. Saiba que seu amor abençoará sempre todos seus recomeços.
Tenha fé, por isso, no poder revolucionário desse amor. Ele irá tocá-la para frente, como o vento que impulsiona as velas de um barco. Com certeza, irá levá-la através do mundo, onde você conhecerá muitos lugares e pessoas, que lhe serão sempre generosas e amoráveis, uma vez que vistas sob as lentes de seu olhar cheio de amor. A vida é uma viagem paradoxal, em que o que menos importa são os pontos de partida e de chegada: vale pelos encantos do caminho. E o mundo é só um espelho que reflete os sentimentos que nós temos por ele e por nós mesmas.
Ame a si própria ― não de um modo narcísico, mas genuinamente, de uma forma absoluta, revolucionária e transcendente ― e você será uma pessoa liberta.
Antes que você abra seus olhos e volte para estas linhas por mim escritas, beijo-lhe levemente as duas orelhas, esperando selar com carinho as palavras que eu acabei de lhe legar. Como nas brincadeiras infantis de passa-anel de outrora, espero que você as passe um dia para sua filha, com a mesma emoção com que eu as passei para você agora.
Nota do Editor
Eugenia Zerbini é mãe de Eleonora. Este texto faz parte do volume Coisas de Mãe para Filha (São Paulo, Outono, 2011), com textos de autoria de diferentes autoras, sob coordenação de Adília Belotti, Hilda Lucas, Regina Amaral, Suzete Capobianco e Vera Tarantino.
Eugenia Zerbini
São Paulo,
13/6/2011
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