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Segunda-feira,
8/6/2015
Valor Estimativo
Raul Almeida
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O momento era muito estranho. Apesar do cenário inebriante proporcionado pela natureza à sua volta, estava ali deitado no gramado, com o queixo apoiado nos braços cruzados à frente da cara, o peito para baixo, as pernas de lado, largadas, pensando na vida com o olhar triste e perdido no horizonte das lembranças.
Recordava os dias de brilho e festa, os momentos de realizações formidáveis, de superações, de glória e regozijo. Lembrava, com uma certa tristeza dos companheiros desligados ao longo dos tempos por motivos, nem sempre, justos ou justificáveis.
Lembrava das formidáveis proezas, encarando adversários poderosos e até bizarros. Parava o pensamento nos detalhes das aventuras mais elaboradas. Ficava buscando as cores, os sons, os aromas de todas as naturezas. As luzes, ah, as luzes... Em alguns casos realçavam a beleza de tudo e todos. Em outros expunham a crueza das verdadeiras formas de cada criatura ou objeto presente.
Estava consciente que o tempo havia passado. Nem triste nem aborrecido, apenas começando a entender que a linha traçada pelo círculo da vida começava a fechar-se sobre si mesma. A unir as pontas. A juntar as marcas da saída com as da chegada.
Tentava compreender por que estava ali deitado, gordo, bonito, tratado, alimentado e acarinhado, mas absolutamente improdutivo. O que aconteceu? Como aconteceu?
Talvez naquele desfile quando, com orgulho e garbo ostentava suas medalhas e galardões, tropeçou num buraco bem no meio da avenida. Não tinha sido nada tão grave assim. Nem perdeu o passo. Não. Não era isso.
Será que a sua dedicação extremada, a obediência disciplinada e a eficácia das suas participações motivaram ciúmes e inveja? Porque não mais conseguia nenhum engajamento?
Estava forte, saudável, continuava bonito apesar do tempo ter diminuído a arrogância juvenil do seu olhar e a elegância do seu corpo, outrora mais delgado.
Ali naquele espaço formidável, com aquela natureza tão amiga, exercitava-se diariamente, corria e, de vez em quando, atirava-se ao lago, nadava, nadava, nadava e saia da água sem sentir cansaço ou fadiga.
É bem verdade que não tinha mais paciência para algumas brincadeiras juvenis. Mas estava saudável, forte, ativo e, segundo quem o conhecia, inteligente e competente. Muito inteligente diziam.
O que é que teria acontecido? Quando os novos chegaram, ele observara o treinamento e, sozinho, aprendera todos os novos exercícios e tarefas. Seu faro era impressionante. Sua resistência a condições menos favoráveis era conhecida e já tinha rendido muitos elogios e agrados. Não dava mesmo para entender.
Ali no retiro dos veteranos apenas um parecia perceber sua apatia silenciosa e sua disfarçada indiferença às brincadeiras dos outros. Ele estava. Igualmente, bonito, alimentado, gordo, limpo, vestido e abrigado, mas seu olhar, sua maneira de conversar, seu sorriso levemente amargo e seus olhos fortes, mas tristes não deixavam dúvidas. Eles tinham algo em comum: As conversas, lembranças, êxitos e fracassos monumentais e retumbantes, que marcaram suas vidas.
O outro também tinha perdido a validade... Estava fora do prazo, a etiqueta estava vencida... Agora não passava de um bípede implume, preparando-se para virar uma espécie de animal de estimação, assim como ele, cão de salvamento e policia.
Continuariam a engordar, iriam ficar reumáticos, diabéticos, sem dentes, cegos e tristes, mas cercados de reverências e amor. Na melhor das hipóteses, um bom enfarte, um colapso, e deixariam ótimas lembranças.
Parou de pensar, levantou-se e foi beber a água fresca, trocada naquele momento pelo velho amigo, agora seu tratador.
RA
Postado por Raul Almeida
Em
8/6/2015 às 08h16
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