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Terça-feira,
1/12/2015
A ultima fala
Raul Almeida
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(editado)
As luzes da fachada do pequeno teatro, fruto do idealismo de um ator-sonhador somente iluminaram um cartaz.
O sucesso do primeiro trabalho encenado foi tão grande que as vidas, tanto do teatro como da peça, estavam entremeadas e firmemente consolidadas.
Pelo menos, até o dia em que o ator principal simplesmente esqueceu o texto e nem se deu conta do apoio do ponto.
Tudo corria normalmente, mas a "deixa" não foi percebida e a concentração dispersa, trazendo desespero e angustia ao pessoal que, da coxia, tentava chamar a atenção do ator, evaporado de sua personagem, caracterização e texto.
Poucos instantes notados primeiro pelo elenco e, finalmente, pela platéia que, em suspense, aguardava o que era considerado o melhor do espetáculo: A apoteótica ultima fala.
Algumas palavras lançadas ao espaço com tanta convicção, drama, força, certeza e profundidade, que muita gente continuava indo ao teatro por vezes seguidas, apenas para escuta-las
.
Ultimamente,os aplausos parcimoniosos revelavam desapontamento dos espectadores, mas hoje a expectativa era enorme.
Uma reportagem muito bem elaborada, dentro da edição de aniversario de uma revista de publico qualificado, provocara uma corrida as bilheterias, com reservas para todos os espetáculos da semana que começava.O ambiente de euforia tomou conta do elenco, e o diretor, para manter o clima positivo, e evitar "derrapadas e escorregadas" programou ensaios extras.
Aquela coisa da estrela total, esquecer e improvisar no momento apoteótico do espetáculo, estava causando mal estar e grande preocupação.Já havia quem propusesse, por debaixo dos panos, mandar o "velho mestre" descansar um pouco. Que desse uma chance para alguém mais novo, com futuro promissor.
Imagine só, num ambiente de superegos, de vaidades e intrigas, inveja e paixão, sugerir a substituição de um professor, soava como heresia e maldade.
Talento, vocação, dedicação e disciplina não lhe faltavam. A memória poderia ser ajudada com um ponto eletrônico, secundado pelo ponto tradicional que ele gostava de ver. Parecia renovar-se a cada espetáculo.
Apesar de todos os recursos disponíveis, as falhas estavam mais freqüentes.
A entrevista concedida a uma jovem repórter, enfatizou a profundidade da ultima fala e a capacidade de convencimento que tinha quando a pronunciava.
O trabalho do elenco, a inteiração entre todos atores e atrizes, a historia, etc, foram elogiados e incensados à exaustão. Mas o que lotava o teatro era o instante final. Aqueles segundos que antecediam o fechamento das cortinas.
A campainha sinalizou o fim do intervalo e as cadeiras da platéia foram rapidamente ocupadas. Nenhum lugar vago.
Alguns conhecidos e amigos assistiam de pé juntinho da parede, na altura das três ultimas filas.
Até aqui o desempenho do elenco superava qualquer expectativa. A emoção secava bocas e gargantas a cada dialogo, a cada interjeição. A marcação precisa, os movimentos, a entonação de cada palavra, as mascaras, os trejeitos, que maravilha.
O publico eletrizado, esperava o momento catártico, a apoteose.
O grande ator abriu o casaco com o movimento ensaiado e executado centenas de vezes. Apoiou a mão no espaldar de couro da cadeira de estilo ibérico, levantou a cabeça com drama e convicção e... A voz não saiu.
Um segundo, dois segundos e o ponto eletrônico berrou a frase em sua orelha. O outro, de dentro do buraco no chão do palco, sacudia as folhas de texto.
A platéia em suspense aguardava angustiada quando ele tropeçou, balançando e balbuciando ao mesmo tempo em que era fulminado por um ataque cardíaco:
- Ela já morreu, morreu a muito tempo,
A plateia levantou-se de um só golpe, atordoada com o que estava vendo. Um jovem perguntou ao senhor da poltrona ao lado se já tinha visto o espetáculo antes, se era aquela a ultima fala, se era aquilo mesmo.
A resposta demorou, mas saiu com voz embargada:
-Não, não era isso não. A ultima fala era:
-Nunca perca a esperança. A esperança é a ultima que morre.
Fechou-se a cortina e os espectadores foram saindo pelos corredores entre as poltronas sem dizer nada, produzindo o característico ruído do ranger das molas dos assentos ao voltarem para a posição de descanso .
Postado por Raul Almeida
Em
1/12/2015 às 11h42
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