Nação nova e multirracial, o Brasil sempre assimilou com espantosa facilidade influências oriundas dos lugares mais diversos e, graças a isso, pôde construir ao longo de décadas um notável e portentoso currículo cultural, que se expandiu a todos os segmentos da arte e vem se adaptando a cada época, acompanhando a própria evolução da sociedade.
Não seria, portanto, temerário afirmar que o nosso país, justamente por conta desta disposição em acolher o novo, não possui ― e, provavelmente, jamais possuirá ― uma identidade pronta, definitiva, acabada. Ela continuará em permanente mutação, dialogando com o seu tempo, buscando novos caminhos, assimilando novas tendências, processando-as e dando-lhes uma nova configuração. Não somente na arte, mas também no próprio imaginário do povo e na sua relação com o país e com o resto do mundo.
Fiz esse pequeno preâmbulo para introduzir uma questão que constituiu um verdadeiro dilema para mim há mais de dez anos quando eu ainda estava às voltas com a redação do meu primeiro romance, Conexão Beirute-Teeran, publicado em 1993. O thriller, afinal de contas, tem lugar na nossa Literatura? É possível dar forma a um thriller reconhecidamente brasileiro que consiga se equiparar em técnica e qualidade às obras dos mais reputados medalhões internacionais? O Brasil é um razoável consumidor de thrillers e, no entanto, o gênero sempre esteve ausente nas nossas letras, mesmo tendo-se em conta que este é um país que assimila tendências, as processa e lhes dá nova configuração.
Trata-se de uma corrente literária importada, assim como a ficção policial (o próprio nome já denuncia sua origem: thriller vem do verbo inglês to thrill: emocionar, vibrar, tremer, excitar). Nascido e consagrado na língua inglesa, difundiu-se rapidamente pelo mundo, conquistou adeptos e aficionados, transpôs os limites das páginas e ganhou as telas do cinema e da televisão e uma legião de seguidores em vários países. Tanto sucesso talvez seja justamente o maior obstáculo. Se algum incauto se aventurar a buscar a opinião de um crítico, de um professor de Literatura ou até mesmo de um editor, provavelmente ouvirá, entre outras considerações absurdas, que esse tipo de ficção não possui tradição no Brasil e, logo, é inviável investir em pastiches de um gênero há muito tempo inaugurado, enquanto já existe um sem-número de títulos assinados por estrelas internacionais os quais, uma vez tendo sido previamente testados nos seus mercados de origem, aportam aqui com uma chancela de "qualidade", o que lhes dá possibilidades infinitamente maiores de agradar ao público e, de quebra, agregar algum prestígio ao selo da editora.
Na verdade, a questão é muito mais ampla e ultrapassa e muito a barreira do thriller. Parece incrível, mas ainda prevalece no Brasil uma crença elitista de que toda Literatura destinada ao entretenimento ― e podemos incluir nesta categoria não apenas o thriller, mas também a ficção-científica, a Literatura policial, a feminina e a de terror, só para citar alguns exemplos ― não possui mérito literário em si e depende da acolhida por um público amplo para ter legitimado o seu ingresso no mundo das letras. Como o mercado editorial no Brasil há anos patina em índices minguados de leitura e são raríssimos os títulos nacionais que conseguem a proeza de chegar às listas dos mais vendidos, conclui-se que, sob a lógica vigente, os autores brasileiros que se arriscarem a produzir ficção de entretenimento terão pouquíssimas chances de serem levados a sério no seu ofício. Ainda mais se a base desta ficção houver tido como principal inspiração um autor ou gênero estrangeiro o que, a juízo da crítica mais empedernida, configurará um atentado mortal contra a identidade literária nacional.
O maior desafio do Brasil de hoje é transformar um povo pouco familiarizado com a leitura, que passou da tradição oral de contar histórias diretamente à cultura audiovisual, num povo letrado. A baixa instrução do brasileiro está, sem sombra de dúvida, na raiz de todas as agruras que o país atravessa hoje: fome, violência, corrupção, serviços públicos ineficientes, disparidades sociais gritantes, instabilidade econômica, desemprego, dívida pública estratosférica. Um país em tais condições não consegue exercer plenamente suas prerrogativas democráticas e vive em permanente estado de tensão, como uma embarcação desgovernada à mercê da correnteza num mar bravio. Mais do que educação pura e simples, o brasileiro precisa de cultura de verdade e isso só se adquire através da leitura.
Num ensaio escrito nos anos 80, intitulado "Por uma Literatura Brasileira de Entretenimento", o crítico José Paulo Paes analisava as causas da ausência no Brasil de uma Literatura média, de linguagem acessível, cujo principal objetivo fosse o de proporcionar uma leitura sem pretensões intelectuais, mais destinada ao lazer do cidadão médio, do que ao deleite da crítica culta e à conseqüente consagração como obra-prima de uma geração. Não me refiro aqui ao texto vazio, alienante, sem qualquer valor literário, produzido segundo fórmulas ditadas pelo mercado e que, no afã de agradar o maior número possível de consumidores, acaba se perdendo em maneirismos, fórmulas e clichês.
Por outro lado, é um equívoco acreditar que a boa Literatura só é possível se lançar mão de experimentalismos ilegíveis, floreios intelectuais, frases rebuscadas ou engajamento sócio-político. Acredito piamente que o aumento dos índices de leitura no Brasil não se dará sem uma renovação no nosso quadro de escritores e uma multiplicação dos gêneros escritos em nossa língua. É chegada a hora de se abrir espaço para uma nova vertente literária, que estabeleça um diálogo estreito com a sociedade como um todo e não apenas com uma restrita elite intelectual; democratizar a leitura, tornando-a atraente para o público de hoje e fazendo com que, sobretudo os jovens, percam a cerimônia e a preguiça diante das páginas de um livro e descubram o quão maravilhoso, mágico e enriquecedor é o ato de ler. Pode parecer antipático dizer isto, mas essa não será uma missão para os literatos, para a chamada "grande Literatura". Assim como, no século XX, vimos surgir a MPB - Música Popular Brasileira, agora é a vez de despontar a sua versão literária, a LPB - Literatura Popular Brasileira, que nada mais é do que a Literatura de entretenimento tão sonhada por José Paulo Paes.
Nesse contexto, eu acredito, sim, na viabilidade de um thriller verde-amarelo, assim como de uma Literatura policial, de terror, feminina ou de ficção-científica verde-amarela. Do mesmo modo que, nos anos 80, bandas como Blitz, Barão Vermelho, Kid Abelha, Titãs, RPM e Paralamas do Sucesso estouraram nas rádios de todo o país, inventando uma maneira brasileira, moderna e original de se fazer pop e rock, a Literatura também pode se inspirar em modelos estrangeiros, dialogar com eles, desvendar suas engrenagens para, em seguida, remontá-las sob uma feição inteiramente original. Inspirar-se, contudo, não é o mesmo que imitar e nossos escritores precisam ficar atentos para não caírem nessa armadilha. A verve criativa presente em cada indivíduo constitui uma característica pessoal e intransferível. Ao reproduzir um estilo sem recriá-lo mediante uma linguagem e experiência próprias, o autor estará incorrendo numa falha grave, sacrificando o que de melhor ele pode dar ao exercício da escrita.
Uma coisa, porém, é certa: a Literatura contemporânea brasileira precisa urgentemente deixar de ser território exclusivo de medalhões; os escritores que não pretendam se consagrar como intelectuais e que desejem tão somente contar uma engenhosa e palpitante história ao longo das páginas de um livro devem criar fôlego, perder o medo de se expor, começar a produzir e publicar com regularidade, não ter pudores em se assumir simplesmente como ficcionistas. Essa é a grande lacuna das nossas letras e a consolidação de uma LPB só não será bem-vinda para os apóstolos intransigentes da erudição e do hermetismo como únicos canais legítimos e aceitáveis de expressão literária; ou, então, para aqueles a quem, por interesses espúrios e inconfessáveis, a democratização do ato de ler no Brasil significará um golpe mortal, uma vez que sinalizará o naufrágio de um sistema que sempre se locupletou às custas da ignorância coletiva.
Nota do Editor
Luis Eduardo Matta é autor de O Véu (2009), O Rubi do Planalto Central (2009), Roubo no Paço Imperial (2008), Morte no Colégio (2007), 120 Horas (2005), Ira Implacável (2002) e Conexão Beirute-Teeran (1993). Também proprietário do site que leva o seu nome.
Parabens, assim é que se faz e se mostra a personalidade num pais onde ser autentico é ser mal interpretado. Abraços e estamos aguardando sua vinda, seu tio.
Ler Luis Eduardo é sempre um prazer para mim, não por ser ele um amigo querido, mas pelo talentoso jovem que é - e, certamente, por essa razão inclui-se no círculo de pessoas que admiro. É raro que tenhamos a oportunidade de ler um texto em linguagem não rebuscada, clara, com conteúdo e escrito em português correto. Assim foi esse artigo que acabo de ler - ALB e o "thriller" Verde e Amarelo, como foi também seu livro Ira Implacável (2003), onde o jovem escritor nos prende em sua trama do início ao fim. Ira Implacável nada fica a dever a nenhum do mesmo gênero de autor estrangeiro. Assino embaixo tudo que Luis Eduardo expõe no artigo acima e parabenizo-o com entuasiasmo, não só como amiga, mas como apreciadora da boa literatura. Recomendo, enfaticamente, a leitura de Ira Implacável pela sua interessante e envolvente história, seu cunho verde-amarelo e o excelente trabalho de pesquisa feito pelo escritor. Um abraço, Luís!
Luis Eduardo, poucos escrevem como você. Não digo isso só porque te conheço desde pequena e tenho um enorme carinho por você e respeito maior ainda pelo seu trabalho. Seu texto desperta em cada leitor emoções e sentimentos diferentes. Não são todos que conseguem fazer o leitor se envolver tão profundamente numa opinião e ver claramente que também há espaço para um pensamento próprio, uma lição diferente a cada um que lê. Parabéns!!! beijos Lakshmi
Luis Eduardo, seu artigo é muito oportuno, pois é hora dos escritores deixarem de ser grandes intelectuais e perderem o pudor de serem taxados de escritores de segunda linha, como os criadores de romances policiais (Aliás sou sua companheira de ofício e acabo de publicar Paisagens Noturnas.) Sou fã de José Paulo Paes e, se não me engano, ele dizia que é dos leitores de Agatha Cristie que se formam os leitores de Proust e James Joyce. Hoje em dia por que não dizer que é dos leitores de Luis Eduardo Matta que vão se formar os leitores de Grandes Sertão Veredas?
um abraço
Vera
Espero que essa vontade de criar uma nova literatura crie ecos e uma autenticidade que só a perseverança tem. Construíram essa torre de marfim e pra sair dela agora está difícil.
Muito oportuno o debate em torno da literatura de entretenimento, que tanta falta faz ao Brasil. Se os nossos escritores olhassem menos para o umbigo deles e tivessem um pouco de piedade dos leitores, nossa literatura seria bem mais rica e lida. Depois os escritores ficam se queixando que ninguém dá bola para eles. Caro Luis Eduardo Matta, você foi muito corajoso ao levantar essa questão. Parabéns!
Venho acompanhando com interesse os artigos sobre essa que você, muito apropriadamente, chamou LPB. Recomendei a leitura no site de relacionamentos Multiply, onde demos início a uma interessante troca de idéias sobre o assunto.