COLUNAS
Quinta-feira,
7/12/2006
As crianças cheirando cola
Elisa Andrade Buzzo
+ de 7600 Acessos
+ 4 Comentário(s)
as crianças cheirando cola
vão se espraiando pelas avenidas, aos bandos, com seus cachorros
maltrapilhos, conversando em voz alta e ininteligível, o séqüito bizarro sai
em diligência, alterando o branco e reiterando o escuro as crianças
cheirando cola perdem a virgindade e o amor-próprio nos ladrilhos paulistanos ao seu bel-prazer
libertas da sociedade patriarcal, as crianças cheirando cola bailam em
ritmo de éter, passando rasteiras às ações das ONGs e das gestões municipais as
crianças cheirando cola amanhecem deitadas nas calçadas do centro da
cidade, esquentando-se uma com o calor da outra, os passantes
lançam frutas ou sacos pardos com pão nos corpos angélicos das
crianças adormecidas que cheiram cola, cujos narizes não têm mais o direito
de aspirar o mundo além da boca da garrafa, refratárias, as crianças nômades cheirando
cola criam um problema de paisagem urbana com seus cabelos pixaim de fuligem
acumulada e atitudes subversivas, as crianças cheirando cola grudam-se em portinaris
subterrâneos, sendo logo após descoladas pela manutenção e limpeza dos logradouros
públicos, as crianças cheirando cola por debaixo das pontes movimentadas da cidade são
rechaçadas pelos cidadãos amedrontados e penalizados pela aparência desgrenhada das
crianças cheirando cola em migração sazonal do centro em direção ao oeste da cidade,
expulsas pela guarda metropolitana, infiltrando-se nas ruas residenciais espargindo a
mulatice de seus narizes aspirantes de garrafas pet verdes, as crianças
cheirando cola quebram a tranqüilidade dos bairros classe média, diante das ruas
arborizadas horrorizadas, que abrem passagem tapando o nariz e desviando o
olhar das crianças cheirando cola, crescendo na velocidade da
passagem dos carros, virando moçadinha esperta e graúda as crianças entumescidas cheirando cola
vão procriando fetos viciados, o que já chega a ser caso de saúde pública, até
que, por um passe de mágica, as crianças cheirando cola, não mais tão crianças assim, foram
finalmente desintegradas pela prefeitura a pedido da sociedade civil organizada.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
7/12/2006
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder de Jardel Dias Cavalcanti
02.
Sebastião Rodrigues Maia, ou Maia, Tim Maia de Renato Alessandro dos Santos
03.
Existe na cidade alguém, assim como você... de Elisa Andrade Buzzo
04.
A poeira do outros e o sabor da realidade de Fred Linardi
05.
Steve Jobs (1955-2011) de Julio Daio Borges
Mais Acessadas de Elisa Andrade Buzzo
em 2006
01.
Mia Couto revisitado - 14/9/2006
02.
Novos autores na poesia brasileira - 18/5/2006
03.
FLAP! Uma bofetada na indiferença* - 10/8/2006
04.
As crianças cheirando cola - 7/12/2006
05.
Qual é o seu departamento? - 26/10/2006
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
7/12/2006
04h24min
Essa poesia feita de vórtices, de redemoinhos e vertigem é sempre poderosa. Isso faz com que qualquer tema nunca soe melodramático, sentimental ou nostálgico. Aqui, nesse caso específico, a denúncia social perde seu costumeiro caráter didático, foge da costumeira ingenuidade moralizante e ganha, como um ciclone, alturas insuspeitadas. Muito belo esse poema, e forte também.
7/12/2006
18h17min
Forte e lancinante, cachaça barata no esôfago. Crianças cheirando cola, sem o colo dos pais, da sociedade. Infância embrutecida pela dor, fome, frio, ausência dos suprimentos mais básicos. Fez-me lembrar o Ensaio Sobre a Cegueira, onde o sofrimento é diretamente proporcional ao alcance da visão. De quem narra e de quem vive.
7/12/2006
18h40min
Muito bom. As orações amarradas em coordenadas, através das imagens, me fez lembrar de um poema de Lêdo Ivo chamado "os pobres na estação rodoviária".
8/12/2006
19h05min
A sua poesia me surpreende porque transcende o discurso barato quando denuncia a mais triste das realidades urbanas. Lembra o "Eu sou um leãozinho que ainda não morde", do Arnaldo Jabor. Um grande beijo da leitora do DF.
*
o Digestivo Cultural se reserva o direito de ignorar
Comentários que se utilizem de linguagem chula,
difamatória ou ilegal;
** mensagens com tamanho superior a 1000 toques, sem identificação
ou postadas por e-mails inválidos serão igualmente
descartadas;
*** tampouco serão admitidos os
10 tipos de Comentador de Forum .