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Quarta-feira, 20/3/2002
Sem mistério em Gosford Park
Daniela Sandler
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O filme Assassinato em Gosford Park (Gosford Park, Robert Altman, EUA, 2001) tem provocado crises de ansiedade por aqui. Diante da multidão de personagens, suas múltiplas biografias e histórias, além das reviravoltas e pistas falsas, a platéia é tomada pela síndrome do quebra-cabeça, no esforço de chegar a uma conclusão clara que una logicamente todos os mistérios da trama e explique todos os motivos e ações. Além disso, aqui nos Estados Unidos, a sensação de incompreensão - e a frustração decorrente - foram aumentadas pela estranheza, por assim dizer, causada pelo sotaque britânico - ou, como definiram alguns ilustrados espectadores: "Não dá para entender todas as palavras que eles falam!"

Sábios os distribuidores brasileiros, que decidiram colocar legenda em mais de um filme português exibido no Brasil (por exemplo, A Comédia de Deus). Por aqui, no entanto, a dicção pasteurizada de filmes britânicos para exportação, como os da célebre cepa Ivory-Merchant, parece ter desacostumado os ouvidos locais para as vozes de além-mar.

Para quem não está acostumado a ter de usar uma língua estrangeira, deve mesmo ser um pânico não compreender 100% das palavras. Quem já teve a experiência sabe que isso não é essencial. Muitas vezes, é preciso deixar passar as palavras incompreendidas, até chegar ao fim do diálogo e descobrir não só seu sentido geral, mas o significado daqueles pedacinhos misteriosos que ficaram pelo caminho. A compreensão não vem da análise imediata e cristalina de cada palavrinha, mas da percepção do todo e de seu contexto. Essa percepção é um tanto intuitiva e opaca - nem sempre é possível dizer como se chegou a ela -, mas tem a capacidade de iluminar, em retrospecto, as suas partes diversas.

É assim com a língua, é assim com o filme. A ansiedade de conhecimento completo, instantâneo e transparente é frustrada pela obra intrincada de Robert Altman. Quem insiste nesse "controle gnóstico total" certamente vai sair irritado da sala de cinema. Mas quem se deixar perder em suas obscuridades, ao menos temporariamente, será recompensado com uma obra sofisticada e sensível - sutil tanto no humor quanto no drama.

Em outras palavras: apesar do título, Assassinato em Gosford Park (o "assassinato", aliás, não está no nome original) não se enquadra no gênero do "whodunit", a clássica novela de detetive britânica em que o propósito é resolver o crime - e saciar a expectativa do leitor. No romance criminal, cada elemento se encaixa e cada peça é uma pista (ainda que falsa); o propósito narrativo de cada peça está ligado ao crime, o centro de gravidade. Elementos supérfluos são distrações, no máximo para criar a atmosfera, no mais das vezes ornamentais.

Subversão

Gosford Park, ainda que se refira diretamente ao gênero, subverte as suas convenções até mesmo quando parece aceitá-las. É fiel ao caráter, ambiente, composição social e enredo do "whodunit": mansão na Inglaterra, um bando de britânicos entre o nobre e o esnobe, um milionário assassinado, uma constelação de suspeitos - e um montão de mordomos de brinde. Detalhes de cena, figurinos, objetos e situações incidentais compõem a atmosfera, da porcelana do chá à caçada, da chuva ao jogo de cartas. Até mesmo a fotografia, que captura os exteriores em tons fleumáticos de cinza, verde e marrom, contrastando-os ao registro quente e acolhedor dos interiores da mansão, em âmbar e chiaroscuro, endossa as convenções estéticas das histórias de crime e mistério.

Mas, como afirmado, o filme adota a convenção subversivamente; utiliza os códigos para revertê-los; remete ao gênero para criticá-lo - não só a ele, mas ao sistema de valores sócio-culturais no qual ele se insere. A subversão começa pela profusão de personagens. O número de suspeitos, figurantes, cúmplices e rivais, motivos de crime, métodos e circunstâncias é muito maior do que o esperado num romance de mistério. A multiplicação torna hilária, quase absurda, a tentativa de catalogar e acompanhar cada personagem e cada movimentação da trama de Gosford Park.

O trabalho de investigação que Altman demanda do espectador é de outro calibre. As pistas do filme indicam muito mais que o crime: sinalizam tensões sociais, características culturais e conflitos pessoais, levantando a lebre de aspectos fundamentais da Inglaterra dos anos 30 (e do século que se seguiu, por que não).

O crime é secundário, e divide o espaço com todos esses outros temas - cuja exploração ocupa, aliás, boa parte do filme. Tanto ou mais que a investigação policial. Quem se deixar perder nessas aparentes digressões será recompensado, ao final, com o entendimento do todo. Num clique, sem que se saiba exatamente como, a solução para os mistérios fica clara, o culpado revela-se óbvio. E essa é apenas uma das graças da história.

Tela entupida de gente

O filme tem inspirado comentários humorísticos sobre a multidão de personagens e o elenco estelar, predominantemente britânico. Uma das piadas correntes é que o elenco do filme é composto por todos os atores britânicos que não atuaram nem em O Senhor dos Anéis nem em Harry Potter - além de alguns que estavam nesses dois filmes. Ainda que alguns personagens tenham precedência na narrativa, e que muitos deles roubem a cena, a sua quantidade resulta na ausência da hierarquia tradicional de personagens (e atores).

Por não haver protagonistas bem-definidos, também não há heróis e vilões claros, com os quais o público possa se identificar ou antagonizar. Isso torna mais difícil a tarefa de resolver o mistério, claro - mas Altman não frustra apenas os desejos detetivescos da platéia. Frustra também as expectativas convencionais em relação ao cinema de ficção - personagens carismáticos, conflitos envolventes, continuidade narrativa e centralização temática. Esses elementos facilitam o mergulho na história, a adesão afetiva aos personagens, e o consumo tranqüilo e satisfeito do produto cultural. A recusa de Altman em servi-los ao público é sua crítica mais ou menos velada ao seu próprio meio de comunicação (e ao seu establishment).

Ao entupir a tela de gente, Altman rejeita tanto o esquematismo do romance criminal tradicional quanto o do filme hollywoodiano. O recurso também permite ao diretor esboçar seu panorama social em contornos amplos, revelando a multiplicidade de intenções, personalidades e histórias em vez de reduzi-las a figuras rasas e unidimensionais. Altman já havia usado hordas de atores e múltiplas tramas em Short Cuts, em que a fragmentação narrativa era central ao filme.

Short Cuts, passado em Los Angeles, espalha suas muitas tramas sobre o vasto território da cidade californiana, fragmentando locações e enredo. Considerado um dos filmes "angelinos" por excelência, incorpora em sua própria estrutura estética e narrativa o caráter disperso da metrópole de subúrbios esparsos, entrecortada pelas vias expressas. Gosford Park pode ser visto sob a luz de Short Cuts como um desenvolvimento artístico de sua proposta.

Fraturas internas

Diferentemente de Short Cuts, Gosford Park concentra todo mundo no mesmo lugar e em torno da mesma linha narrativa principal. Nada mais apropriado ao caráter insular e autocentrado da Grã-Bretanha, país ao qual muita gente se refere como "as ilhas" e em que as estruturas arquitetônicas e urbanas são claramente definidas, tanto em termos de seus limites externos como de seu centro.

Não surpreende que a sensação resultante seja claustrofóbica, mas é curioso que tanta gente faça piada e se espante com a densidade populacional do filme. Talvez Altman tenha posto o dedo numa ferida mais funda do que imaginava. O que ele faz, afinal, é revelar as fissuras e intersecções inesperadas que recortam essa sociedade aparentemente centrada e coesa. Sob a superfície, dentro do espaço contido da mansão, a multiplicidade conflitante de interesses e histórias nega a pretensão de unidade e harmonia.

A sociedade urbana norte-americana de Short Cuts era, apesar de fragmentada, razoavelmente homogênea, horizontal. A sociedade de Gosford Park é vertical, rigidamente estruturada em divisões de classe, origem e região. Os empregados, instalados nos porões da casa, seguem a organização rígida que vem de cima, dos nobres e/ou abonados a quem servem.

A ordem, o bom funcionamento dessa sociedade afetada, esnobe e ritualística depende dessa submissão rígida, onde cada um sabe o seu lugar e segue a complicada rede de regras de comportamento correspondentes. Assim como o jantar servido à francesa, em que cada mordomo sabe qual parte da mesa espanar na hora certa, sem precisar trocar palavras.

Castelo de cartas

Ao mesmo tempo, esse edifício rigoroso está riscado por nuances e diferenças - discrepâncias econômicas entre os convidados, culturais (os norte-americanos), sociais, nacionais (a empregada escocesa, por exemplo). A rigidez e imobilidade social repousam numa sociedade cada vez mais diferenciada e fragmentária - prenúncio da multiplicidade cultural, étnica, social, nacional em que as "ilhas" se transformariam no fim-do-século, anúncio da fragilidade do império prestes a cair, e denúncia da diversidade e conflitos internos (de classe, religião e nação) que a pretensão de identidade nacional suprimia e que hoje, diante dos esforços mais ou menos pacíficos de independência dos países da Grã-Bretanha, é impossível negar.

Mais que isso: a fragmentação não vem simplesmente da diversidade econômica, social ou cultural. Vem justamente das tensões e ódios gerados por essa diversidade, a começar da opressão e violência com a qual a aristocracia britânica se sustenta, até seu resultado óbvio: os conflitos e rancores originados pelas injustiças dessa hierarquia. Gosford Park, a bela propriedade situada na idilíca zona rural britânica, não é menos simbólica que a alegoria suburbana e automotiva de Short Cuts.

A bela mansão é um castelo de cartas prestes a desabar sobre as fundações cada vez mais frágeis dos "servos" para quem a opressão social não é mais aceitável. Na Inglaterra dos anos 30, logo após a Grande Depressão mundial, logo antes da Segunda Guerra, em meio à massificação e crescimento da sociedade, as antigas regras de conduta - o complicado balé social pelo qual, por exemplo, os serviçais são chamados pelos nomes dos seus amos - tornam-se cada vez mais vazias e sem sentido.

Essa não é apenas uma leitura esotérica do filme. Essa é também a chave do mistério - o mistério "whodunit", tradicional, convencional. Que é, claro, elaborado de uma forma rica e interessante, que adiciona, à crítica social, retratos psicológicos sensíveis e emocionantes, ainda que contidos (assim como as piadas do filme). Ao fim do filme, resolvido o crime, é revelado também o mistério dramático. Apesar da multidão de nomes, personas e atores, há, sim, personagens principais. E o filme há de ser muito mais saboroso para quem entender quais são.


Daniela Sandler
Rochester, 20/3/2002

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