COLUNAS
Sexta-feira,
10/6/2016
Noturno para os notívagos
Ana Elisa Ribeiro
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Eu sei que nem todo mundo janta. Esta é uma generalização só para ser didática. Não é para se transformar em caso de luta de classes. Mas vejamos: dos que preferem o lanchinho com pão na chapa aos que não têm o que comer à noite, todos estão fora do grupo que quero descrever aqui: os que trabalham à noite.
É que eu trabalho à noite. Muito. E sempre. E mais: eu gosto de trabalhar à noite. Toda vez que penso nisso, me vem a lembrança de uma música do Kid Abelha, alguém recorda? Não lembro o disco, mas é fácil de achar. "Trabalhador da noite, meu serviço é seu prazer... sempre em casa depois do amanhecer". Eu achava bonitinha a homenagem, mas não me enquadrava bem nisso. Tá certo que a canção é para os profissionais do sexo, provavelmente, o que não é meu caso.
Os deslocados
Eu me senti meio deslocada por isso, por trabalhar à noite. Faça aí uma listinha, para além das prostitutas e assemelhados: guarda noturno, vigia, porteiro, padeiro (?), motorista, médico (os de plantão, geralmente os mais jovens), enfermeira (e assistentes e técnicos), coveiro, jornaleiro, jornalista também, garçom, balconista de todo tipo, caixa e... professor. Veja que uma enormidade de pessoas executa profissões de turno noturno. Pegam depois das seis, largam no dia seguinte, chegam em casa ao contrário de todo mundo, cumprimentam o ascensorista do elevador com cara de quem ainda vai dormir, lancham em turnos trocados, dormem até meio dia e levam má fama injustamente.
Ah, os padrões. Como me enchiam a paciência! A começar pelas minhas preferências na escola. Sempre tive muita dificuldade de me concentrar de dia, então preferia fazer tudo da tarde para a noite. Aproveitar a madrugada e dormir de manhã eram minhas especialidades. E sempre me dei bem com o que eu tinha de cumprir, mas não com os outros, os olhares dos outros e as regras predeterminadinhas dos outros. Ouvi muita palestra dispensável sobre por que eu deveria gostar das manhãs. Minha cabeça estaria descansada, minha inteligência estaria mais arguta, minha vida seria melhor, meu futuro seria muito mais promissor. (Bocejos incontroláveis).
Não atendo!
Minha dificuldade era visível. Eu preferia então turnos vespertinos, estudar à tarde ou à noite, descansar enquanto todos dormiam. Na adolescência, já tinham em casa minha ordem expressa: não atendo telefone antes das 12h. Combinado. Mas jamais digam que estou dormindo. O comando era dizerem que eu "saí". Volto logo. Porque o mundo jamais entendeu que enquanto dormiam, eu trabalhava ou estudava, à luz do abajur. (Abajur e lâmpada são objetos da minha enorme estima). Já diziam logo, com tom de condenação: "dorminhoca, hein?" E era injustiça.
Mas tinha regra para tudo, e eu não estava dentro da regra. Não me daria bem nos estudos nem no trabalho. Não conseguiria sobreviver se não acordasse todos dia às 6h. Era meu terror. E durante muito tempo, fiz isso, é claro. Até ir conquistando a vida que me parecia de mais qualidade: obedecer o que pediam meu corpo e minha atenção.
Professora
Ser professora tem destas. Todo mundo quer pegar as aulas da manhã, as da tarde já soam como castigo. Pois eu quero tudo depois das 16h. Alegria. Com a vantagem incomensurável de andar sempre na contramão do trânsito. Eu vou. Eu quero. Pego aula, pego orientação, pego serviço administrativo. Mas só quando as pessoas estiverem retornando para seus lares. Enquanto esquentam a janta ou abrem o pão de forma, eu dou aulas para trinta ou quarenta alunos (e nem todos satisfeitos com o horário).
Mas é tudo tão feito para quem vive no horário comercial! Tão difícil fazer de outro modo ou enxergar os outros. Trabalhar à noite não tem prestígio, afinal. Talvez apenas para os veneráveis médicos, que dão plantão e soam como heróis. Para os demais, é como se fosse um limbo, falta de opção, desgraça recaída. Para mim não era, não.
Nutricionista do dia
Há uns doze anos, lembro de frequentar um nutricionista. Era uma clínica-laboratório, dessas dentro de faculdades, movidas a professores e estudantes. Ótimo. Fui lá iniciar minha reeducação alimentar. E recebi minha lista de substituição de alimentos, empolgada, a fim de mudar tudo. Menos uma coisa: os horários possíveis para me alimentar à noite. Conversei com o nutricionista-chefe, expliquei que não havia a menor chance de eu jantar naquele horário X, quando eu sempre estaria em sala de aula. Ele me olhou assim meio lamentoso, disse qualquer coisa, pediu que eu me adaptasse. OK. Vamos aprender a comer barrinha de cereal entre uma frase e outra. E assim foi minha reeducação alimentar: fora do horário comercial, dos almoços e jantares das pessoas que trabalham de oito às dezoito e podem cumprir horários de lanche.
Uma lástima mesmo: nem mesmo nas escolas, onde tanta gente trabalha à noite, as cantinas ficam abertas até o encerramento da batalha diária. Quando saio da sala de aula, topo com corredores vazios, quase escuros, estacionamentos silenciosos, portas fechadas, nada para comer e perigos insinuantes. Um horror. O mundo não é feito para nós, embora algumas cidades se gabem - hiopócritas! - de serem 24h.
Vendedora de colchas
Certa vez, uma mulher veio vender colchas e cobre-leitos à porta de casa, bem na hora em que eu saía para trabalhar. Tentei me desvencilhar dela para não me atrasar. Ela era insistente, agressiva. Eu fechei o portão, disse que precisava sair. Ela me questionava, por que não poderia atendê-la, seria rápido, e fazia menção de tirar uns produtos de dentro do porta-malas do carro. Eu entrei no meu e não dei chance. Tinha mesmo de chegar. E eram quase cinco da tarde. Quando ela se irritou de vez e disse: "pensa que me engana? Quem é que pega serviço a esta hora?" Não, não perdi tempo explicando que professores, por exemplo. Saí pela esquina atrás dela.
Uma vida perfeita depende de turno
Regras, regras. Dia desses, li um texto que falava de pais e filhos, receitas para ter e manter a família perfeita. Quanto clichê e quanto discurso científico. E que amargor na boca, meu Deus. Estarei condenada à infelicidade eterna e a ter filhos problemáticos? Insanos, incuráveis? Que terror me veio enquanto lia aquelas linhas sobre pais (geralmente pais) que chegam às 18h30 em casa e vão brincar com seus rebentos saudáveis; mães que vêm do emprego de meio horário e fazem, elas mesmas, a sopinha nutritiva. E então vão fazer programas em família, num lar com jeito de aconchego, TV de led, Netflix, filmes edificantes ou os deveres da escola. Perfeição. Mas só para quem trabalha em horário comercial. Tudo ali era padrão. E eu cá... com meus horários ao contrário, filho que estuda à tarde, dorme tarde da noite, faz dever em outro horário e está muito bem, obrigada. Lá pelas tantas, esse tal desse texto dedicava um ou meio parágrafo a dizer que existem aquelas pessoas que trabalham em outros horários e para as quais a vida precisa ser adaptada. Aleluia! Alguém se lembrou de nós.
Noturna sim
Sem vitimismo. Alguém precisa trabalhar à noite, para que as escolas tenham turnos estendidos ou para que os bares funcionem à noite ou para que haja diversão, segurança, transporte, saúde. Minha riqueza foi perceber minhas dificuldades desde cedo e ir desenhando minha vida para que ela me parecesse menos árida, mais possível, mesmo que na contramão da maioria. Há quem odeie trabalhar à noite e sonhe com um "emprego normal". Há quem não. Há. E por que não?
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
10/6/2016
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