Mister Magic em Campo Seco | Henrique Schneider

busca | avançada
76843 visitas/dia
1,7 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Teatro do Incêndio mergulha no mito para ritualizar a dor em nova montagem
>>> SESI São José dos Campos apresenta exposição de Dani Sandrini com temática indígena
>>> Livro 'Autismo: Novo Guia' promete transformar a visão sobre o TEA
>>> Dose Dupla: Malize e Dora Sanches nos 90 anos do Teatro Rival Petrobras nesta quinta (3/10)
>>> Com disco de poesia, Mel Duarte realiza espetáculo na Vila Itororó neste sábado
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
>>> Soco no saco
>>> Xingando semáforos inocentes
>>> Os autômatos de Agnaldo Pinho
Colunistas
Últimos Posts
>>> MBL sobre Pablo Marçal
>>> Stuhlberger no NomadCast
>>> Marcos Lisboa no Market Makers (2024)
>>> Sergey Brin, do Google, sobre A.I.
>>> Waack sobre a cadeirada
>>> Sultans of Swing por Luiz Caldas
>>> Musk, Moraes e Marçal
>>> Bernstein tocando (e regendo) o 17º de Mozart
>>> Andrej Karpathy no No Priors
>>> Economia da Atenção por João Cezar de Castro Rocha
Últimos Posts
>>> O jardim da maldade
>>> Cortando despesas
>>> O mais longo dos dias, 80 anos do Dia D
>>> Paes Loureiro, poesia é quando a linguagem sonha
>>> O Cachorro e a maleta
>>> A ESTAGIÁRIA
>>> A insanidade tem regras
>>> Uma coisa não é a outra
>>> AUSÊNCIA
>>> Mestres do ar, a esperança nos céus da II Guerra
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Pierre Seghers: uma exposição
>>> O Cabotino reloaded
>>> Papel, tinta, bluetooth e wireless
>>> Monticelli e a pintura Provençal no Oitocentos
>>> Nelson ao vivo, como num palco
>>> O novo frisson da Copa
>>> Vale ouvir
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Editor, corrija por favor!
>>> O grande livro do jornalismo
Mais Recentes
>>> Martini Seco - Rosa dos Ventos de Fernando Sabino pela Ática (1996)
>>> A Nova Califórnia e Outros Contos de Lima Barreto pela Unesp (2012)
>>> Textos e Redaçãocom Word 2007 de Diversos pela S/a (2008)
>>> E o Dente Ainda Doía de Ana Terra pela Dcl (2012)
>>> Os Guerreiros do Tempo de Giselda Laporta Nicolelis pela Moderna (1994)
>>> Robin Hood - Coleção Elefante de Howard Pyle pela De Ouro
>>> A Páscoa e Seus Símbolos de Neri Pereira da Silva pela Paulinas (1982)
>>> Extraterrestres Eles Estão Aqui de Luiz Galdino pela Ftd (1997)
>>> Seeds Of Love de Eduardo Amos pela Richmond Publishing (2004)
>>> Clique e Descomplique - Excel 2 / 2007 de N/d pela Gold (2009)
>>> Na Curva das Emoções de Jorge Miguel Marinho pela Biruta (2005)
>>> Finais Mundi de Laura Gallego García pela Sm (2004)
>>> Economia de Empresas Aplicações Estrategia e Táticas de James Mcguigan ;charles Moyer pela Thomson (2007)
>>> Andreia: Flor que Desabrochou no Lodo de Hugo Penteado Teixeira pela Do Autor (1972)
>>> Cromoterapia-dicas e Orient de Como as Cores Podem Mudar Sua Vida de Elaine Marini pela Nova Era (2002)
>>> O Destino de Perseu - Aventuras Mitológicas de Luiz Galdino pela Ftd (1990)
>>> Tiradentes e a Inconfidência Mineira de Carlos Guilherme Mota pela Ática (2005)
>>> O Jovem Lê e Faz Teatro de Gabriela Rabelo pela Mercuryo Jovem (2007)
>>> Clique & Descomplique - Diversão e Entretenimento de Vários Autores pela Gold (2008)
>>> O Analista de Bagé de Luis Fernando Verissimo pela Circulo do Livro
>>> Divórcio Nao e o Fim do Mundo de Evan Stern; Zoe Stern pela Melhoramentos (1997)
>>> How i Met Myself - Level 3 de David a Hill pela Cambridge University Press (2001)
>>> Fundamentals Of Financial Accounting de Flenn A. Welsch And Robert N. Anthony pela Richard Irwin. Illinois (1981)
>>> O Menino e a Caboré de Francisco Mibielli pela Sophos (2005)
>>> Brincando com os Números de Massin e Outros pela Cia das Letrinhas (1995)
ENSAIOS

Segunda-feira, 2/11/2009
Mister Magic em Campo Seco
Henrique Schneider
+ de 5100 Acessos

Quando o ônibus deixou-o em frente àquela casinhola desamparada, Mister Magic pensou que fosse um engano. Apenas no momento em que leu o cartazete afixado na porta, com os dizeres "Rodoviária de Campo Seco", é que teve a triste certeza de que aquele era o lugar. Tratou de abrigar-se logo da chuvinha gris que deformava ainda mais as casas pobres do lugarejo, em cujas ruas reinava um silêncio estranho de deserto, e entrou na saleta da estação, onde um casal de velhos parecia esperar o próximo ônibus há muitos anos. Ninguém mais por ali, além do vendedor pendurado no guichê sonolento. Mister Magic remexeu nos bolsos e tirou deles uma papeleta amarrotada.

"O Hotel Real, por favor?"

O atendente mantinha toda sua atenção estranhada naquele recém-chegado carregando uma valise vermelha e tão variados apetrechos, mas lembrou-se de responder:

"Reto nesta rua, duas quadras, em frente à praça." E, como se fosse necessário informar: "É o único hotel da cidade".

Mister Magic olhou para os seus sessenta anos e todas as tralhas que há tanto o acompanhavam e achou que merecia um táxi. Mas o dinheiro contado na carteira negava-lhe este luxo e o contrato só lhe oferecia alimentação e hospedagem, além do cachê vergonhoso que aceitara sem hesitar; assim, resolveu enfrentar aos saltos aquela chuva que, mais tarde, lhe cobraria algum preço. Duas quadras não eram o fim do mundo; aquela cidade talvez fosse.

"É bom o hotel?"

"O melhor da cidade", respondeu o outro, como se contasse uma piada.

Mister Magic riu apenas por não ter outra coisa a fazer, enquanto recolhia os apetrechos recém-desembarcados. Quando levantou do solo a valise vermelha que lhe fazia as vezes de bagagem, sentiu novamente nas mãos aquele tremor cada vez mais constante e que tanto o assustava.

As duas quadras lhe pareceram quilômetros de distância e a garoa teimava em vencer, com a ajuda daquele vento puro dos descampados, as frágeis defesas do guarda-chuva amarelo que também usaria à noite, no espetáculo. Quando chegou ao hotel, trêmulo e com os ossos úmidos, suas seis décadas de vida pesavam como uma centúria e sua figurinha miúda tentando um resto de imponência causaria risos em qualquer um se não despertasse tanta pena.

"Boa tarde", cumprimentou o atendente, a voz sumida. "Tem uma reserva em meu nome. Mister Magic."

O homem olhou-o com uma dó que ia além de sua pobre figura; mirou-o como se fosse o arauto de uma tragédia:

"Ah, o senhor é o mágico? Infelizmente, a reserva foi cancelada."

O chão faltou, por um momento, às pernas magras de Mister Magic, mas ele recompôs-se logo: um artista internacional sempre é maior do que as pequenas adversidades.

"Deve haver algum engano. Eu tenho uma apresentação aqui, hoje à noite. No Clube Comercial. Fui contratado pela Prefeitura, é um espetáculo comemorativo ao aniversário da cidade. Quarenta e três anos de emancipação." Ele desfiava informações como se estas tivessem o poder de resolver a situação.

"Eu sei", disse o homem do hotel, compreensivo. "Parece que a apresentação foi cancelada. Mas quem vai lhe explicar melhor é o secretário do prefeito. Ele pediu que eu ligasse assim que o senhor chegasse." E, condoído ante a velhice solitária que se enxergava atrás da pequena pose de artista, disse: "Sente, que em cinco minutos ele vai estar aqui".

"Bom."

O mágico atendeu ao pedido como se cumprisse uma ordem. Sentou-se numa das poltronas plásticas do saguão, gastas por tantos anos, e nada disse enquanto aguardava o secretário. Agradeceu com um gesto o copo de água que o homem lhe trouxe, embora preferisse uma xícara de café, e destinou o tempo a tentar acalmar-se e pensar na grande merda que era a solidão de sua vida: noites maldormidas em pensões baratas, apresentações em cirquinhos perdidos na história, coelhos assustados em aniversários infantis, os anos na estrada empoeirada dos caminhos pobres, os amores fugazes que nem deixavam nome, seis décadas de carteira vazia. E este tremor nas mãos, agora.

Quando o secretário do prefeito chegou e viu aquele velhinho estático e sentado na poltrona como se não estivesse ali, pensou que não seria fácil a conversa.

"Boa tarde, Mister Magic."

O velho pareceu levar um choque e voltou assustado de suas lembranças solitárias. Levantou-se com dificuldade e estendeu a mão ossuda para o recém-chegado.

"Boa tarde", respondeu. "O senhor poderia me explicar o que está acontecendo?"

O secretário parecia constrangido.

"É que a apresentação foi cancelada." E, ante os olhos esbugalhados do velho: "Nenhum ingresso vendido".

À falta do que dizer, o mágico sentou-se novamente, sentindo com mais força a umidade das calças; se não tivesse direito a um banho quente e roupas secas logo, amanhã estaria com febre e sem ter quem o cuidasse. Por isso, precisava resolver a situação. Nenhum ingresso vendido, pensou: ninguém mais se interessava por mágica. E ele era um homem velho e miserável perdido numa cidadezinha descampada onde ninguém iria ajudá-lo a não ser por dó.

Mas também era o artista, e esta aura precisava de alguma valia.

"Não divulgaram direito, com certeza. E por que não me avisaram?"

"Ligamos para o hotel onde o senhor mora. Disseram que já havia saído. Aí, já não dava para fazer nada."

O mágico quis contemporizar; quanto mais rápido tudo estivesse resolvido, melhor.

"Tudo bem. E o meu cachê?"

"A Prefeitura paga a metade." O secretário estendeu-lhe um cheque.

A metade de nada é nada, pensou Mister Magic. Mas era isso e pouco havia a discutir. Fora de casa somos menores, pensou o mágico, esquecendo que não tinha casa.

"Está bem." Ele pegou o cheque, as mãos em surpreendente calmaria, e leu a quantia com dificuldade, olhos gastos ansiando por descanso. "E agora o senhor me dê licença. Este corpo velho precisa de um banho."

Novamente, o secretário tinha dificuldade de esconder o constrangimento.

"A Prefeitura paga o cachê, mas não paga o hotel."

De novo, a velhice solitária desabando em suas costas. Sem trabalho e pouso, um cheque mirrado no bolso, a gripe batendo à porta, ninguém a estender-lhe a mão. Não podia dar-se ao luxo de um hotel; não tinha dinheiro para isso. Teria que tomar o próximo ônibus de volta, seis horas molhadas e cada vez mais frias invadindo a madrugada, os sessenta anos gritando em protesto e transformando em dores a sua vingança. Viera para uma apresentação, um jantar garantido, uma noite quentinha; voltava sem nada disso.

O mundo não quer mais saber de mágica, pensou.

O homem do hotel olhou aquele velho sentado na ponta da poltrona, como se não quisesse estragá-la com seu peso inexistente, e percebeu que ele não aguentaria uma viagem de volta ainda no mesmo dia. Estavam vagos alguns dos quartos mais baratos - cama, pia, banho coletivo.

"Se o senhor fizer uma apresentação para os outros hóspedes, pode ficar por aqui esta noite."

"São quantos hóspedes?", perguntou o mágico.

"Uns seis ou sete."

O velho soube, na hora, que a oferta era só comiseração. Enfim.

"E a diária é com café da manhã?"

"Com café da manhã."

Mister Magic levou alguns segundos para responder o que já estava decidido desde o primeiro instante da proposta.

"Está bem."

* * *

Naquela noite, num hotel perdido de uma cidade-fantasma, apresentando-se em troca de cama e comida, seis hóspedes sonolentos assistindo sem luzes ao espetáculo da humilhação, Mister Magic só conseguia pensar, enquanto se atrapalhava com suas mãos cada vez mais trêmulas, que se a mágica servisse para alguma coisa, certamente deveria existir algum truque que o fizesse desaparecer dali.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no jornal Rascunho, em outubro de 2009. Henrique Schneider nasceu em 1963, em Novo Hamburgo (RS). É autor, dentre outros livros, do romance Contramão.


Henrique Schneider
Novo Hamburgo, 2/11/2009
Mais Henrique Schneider
* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Livro Infanto Juvenis Uma Rua Como Aquela
Lucia Junqueira de Almeida Prado
Record
(1975)



Un Mortel Air de Famille
Ross Macdonald
Jai Lu
(1964)



Livro Literatura Brasileira O Aleph
Paulo Coelho
Sextante
(2010)



Rioja negro - pratique seu espanhol de forma divertida...
Andrew Ridley; Alison Romer
Escala
(2009)



Felicidade Ou Morte
Clóvis de Barros Filho ; Leandro Karnal
Papirus 7 Mares
(2016)



Introdução a sociologia
Reinaldo Dias
Pearson
(2006)



Helinho e a Cegonha
Bandeira Pedro
Seed



Livro Psicologia Névrose, psychose et perversion
Sigmund Freud
Presses
(1973)



Fundamentos da Responsabilidade Civil Estatal
Márcio Xavier Coelho
Oab
(2005)



Livro Literatura Estrangeira Penguin Classics The Epic Of Gilgamesh A New Translation
Penguin Classic
Penguin Classics
(2000)





busca | avançada
76843 visitas/dia
1,7 milhão/mês