Um coração de mãe | Cintia Moscovich

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ENSAIOS

Segunda-feira, 11/10/2010
Um coração de mãe
Cintia Moscovich
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Madonna of the Pieta, de John Keaton

A novela das oito já estava acabando quando dona Dóris começou com uma queimação na boca do estômago.

Estranhou, não era de sofrer com males do estômago, a digestão quase sempre boa e certa. Baixou o volume da tevê, largou o controle remoto a seu lado na cama e pousou a mão sobre o abdômen. Considerou que não devia ter se deitado logo depois da janta, o estômago pesava, ia-se ver podia até ser um resfriado daqueles, o tempo andava uma loucura, o organismo não tinha como resistir. Sem tirar os óculos, fechou os olhos. Desabituada a tomar remédios, esperaria.

Ao longe, ouviu-se a sirene de uma ambulância. Dona Dóris abriu os olhos, espantada. Pediu a Deus que poupasse aquele doente, e que dela não se esquecesse. Fazia isso ― rezar pelos pacientes trazidos pelas ambulâncias para o hospital ali perto ― várias vezes ao dia. Voltou a fechar os olhos, era só ficar bem quietinha que tudo iria passar.

Meia hora depois o mal-estar persistia, ainda maior. Um arrepio denunciava uma ponta de febre. Dona Dóris pensou que a impertinência do corpo estava indo longe demais, só faltava vômito ou diarréia; se a indisposição continuasse, teria de chamar alguém, era impossível uma mulher na idade dela ficar doente e sozinha, não tinha uma pessoa que lhe alcançasse um copo d´água.

Deu-se conta de que precisava telefonar para os filhos pedindo ajuda, coisa que, do fundo da alma, odiava fazer. Mais uma vez eles diriam, troçando, que a mãe se queixava tanto de pequenas indisposições que, quando passasse verdadeiramente mal, ninguém iria acreditar, ela tinha mais saúde do que qualquer um dos filhos, um cavalo de tão forte e resistente. E se poriam a rir, rir, rir, mancomunados no deboche, como se ela fosse uma caduca, e só ririam assim porque o pai deles tinha morrido, na frente do marido ninguém a trataria como aqueles moleques tratavam. A falta que Gildo fazia. Que falta.

Sem o marido, a casa se tornara enorme, e dona Dóris padecia de solidão, isso os filhos não entendiam, nem o medo da morte que ela passou a sentir, a cama de uma viúva um lugar árido e oco. Para eles, os filhos, era fácil debochar da própria mãe, eles que tiveram tudo, que casaram com quem bem entenderam, que começaram a brigar pela herança do pai nem bem o corpo tinha esfriado, Binho e Fábio se fazendo de pobres-coitados, José e Ana se estranhando até por causa de uma coleção de selos, irmão passando a perna em irmão. Dona Dóris não reconhecia mais suas crianças, preferia morrer a ser mãe de umas criaturas mesquinhas, sem-vergonhas e oportunistas como aquelas em que seus filhos se tinham tornado.

Apesar do calorão febril, dona Dóris decidiu que não queria ver os filhos nem pintados de ouro, fossem plantar batatas, tomar banho, cachimbar formigas, o que fosse, desde que longe dela. Iria ficar boa sem ajuda nenhuma. Aliás, como de costume. Tirou os óculos.

Mais meia hora, e não só a queimação havia aumentado, como os braços e pernas começaram a pesar. Feito uma labareda, o ardor subiu pela garganta mais e mais, indo abrasar até os dentes. Dona Dóris gemeu, o que fez com que a chama de acidez se transformasse em dor. Cascateando, num movimento ágil, a dor se expandiu pelo peito, pelos ombros, pelas costas. O pescoço parecia frouxo e molenga.

Ela se sentia mal.

Aliás, ela se sentia verdadeiramente mal.

Pensou que as pessoas morriam mesmo de repente, num minuto se respira, no minuto seguinte não se respira, era mais sensato telefonar para os filhos, Gildo costumava dizer que só se podia contar mesmo com os do sangue. Por outro lado, ponderou, por outro lado o marido não sabia que os do próprio sangue podiam se transformar nos piores inimigos, se ele tivesse visto os monstros em que seus filhos haviam se tornado, morreria de novo por puro desgosto. Não ia telefonar coisa nenhuma. Ela dera conta de quatro filhos e quatro filhos não podiam com uma única mãe.

Pensou que talvez devesse mesmo contratar um daqueles planos em que se chamava uma ambulância para dar assistência, mas quem abriria o portão do edifício para os enfermeiros?

Voltou a colocar os óculos e, muito devagar, foi até o banheiro, arrastando as toneladas em que se haviam tornado as pernas. No armário que fazia de farmacinha, pegou um sonrisal, que dissolveu em meio copo de água. O chiado da efervescência acendeu nela algum alívio, o estômago agradecendo num arroto ruidoso.

Quis se lembrar de algo que tivesse comido e que pudesse ter feito aquele estrago todo. Café com leite, pão com queijo, como aquilo podia fazer mal? Escorando as duas mãos no mármore branco da pia, examinou o rosto no espelho. Tirou os óculos. Puxou a pele das bochechas em direção às orelhas: remoçava. Logo, no entanto, uma golfada ardente subiu pela garganta, atrapalhando a breve alegria, e dona Dóris se viu obrigada a soltar o arranjo esticado de pele. Impressionada, não se reconhecia naquelas sensações horrorosas, muito menos no rosto da própria velhice.

Voltou os óculos para o rosto. Tomou mais um sonrisal. Dessa vez, o alívio não veio. Sentou-se na privada e urinou brevemente. Escorou os cotovelos sobre os joelhos e apoiou o queixo nas palmas das mãos; teria adormecido ali, não fossem os pés gelados.

Às custas voltou para o quarto. Parecia que tinha uma espada em brasa enfiada na garganta e outra, ainda mais longa e pontuda, varando as costelas e a espinha. Puxou as cobertas e deitou de lado. Em alguma parte ouvira que deitar de lado era bom para problemas do estômago. Chegou a estender a mão para apagar o abajur mas, cansada, interrompeu o gesto. Arrotou longamente e com uma espécie de asco. Ouviu-se novamente a sirene de uma ambulância. Não teve ânimo para rezas.

Devia ter adormecido, porque despertava como se fosse de repente, em sobressalto. Um fio de suor desceu pela têmpora em direção ao pescoço, e dona Dóris percebeu que a fronha do travesseiro estava já empapada. A luz do abajur parecia ter esquentado tudo em volta. Aqueles calorões, fogachos que, de repente e sem motivo, já incendiavam o rosto. Ela tentou inspirar bem fundo, mas a respiração estava curta e o pulmão se negava ao volume. Uma bolha de ar veio do meio do peito e subiu pela garganta, diluindo-se num barulho de ploct em algum canto oco do crânio.

Apoiada nos cotovelos, recostou-se nos travesseiros. O movimento um tanto brusco fez com que ela enxergasse estrelinhas e clarões. Ela sabia que os líquidos do corpo se reordenavam e que logo aquela zonzeira ia passar; impressionante o que uma simples indisposição de estômago era capaz. Precisava se distrair e, tateando o controle remoto entre os lençóis, aumentou o volume da televisão. A voz do locutor de um comercial era grave, redonda, pesada. As têmporas pulsaram e um zumbido surgiu no ouvido direito. Balançou a cabeça vezes seguidas tentando se livrar daquilo ― a cada movimento a tontura aumentava, uma ânsia de vômito muito grande aplastou-a contra a cama. Teve medo. Rezou.

A respiração se tornava mais curta. E mais curta. Um cordão de grosso suor desceu da testa e, escorregando pelo pescoço, causou um arrepio. Aquele calor dilatava todas as veias, fazendo com que ela sentisse o tum-tum do coração pulsando no ouvido, o sangue bombeado em jorro, em jorro também o refluxo, o movimento se escandindo em consoantes, amontoados de efes e de esses. Os sons e ruídos que vinham de seu corpo, aqueles que nunca escutara tão nítidos e tão revelados, conformavam uma sinfonia agourenta ― a saúde sempre tão silenciosa.

Largou os óculos em cima da mesinha de cabeceira e escorregou na cama, procurando se deitar. Olhos postos no teto, respirava pela boca, o pulmão recusando-se a cumprir seu trabalho. Percebia o coração aos arrancos, ritmo desengonçado, batidas que pulsavam muito antes ou muito depois do que deveriam. Pensou que o coração estava era batendo muito e que logo iria cansar e que, de fato, ela própria já estava cansando.

Deveria chamar um dos filhos, quem sabe José, mas àquela altura o telefone tocando ia matar todo mundo de susto, a nora não ia perdoar o chamado e azucrinaria com impaciência sem disfarce, aquela desclassificada. Desclassificada ainda era pouco; a nora tinha vindo com aquela conversinha de asilo, como se asilo fosse lugar bom, como se um monte de velhos juntos fosse divertido: ela ali, morrendo, e a nora no bem-bom, aquela vaca.

Uma pontada abaixo do seio fez com que deixasse de pensar na nora e no filho ― doíam-lhe as costelas, e era de repente uma pontada aqui e outra lá, como se cada artéria e cada minúscula veinha resolvesse percutir de forma dolorida as batidas do coração.

E se ligasse para o Dinho? E para o Fábio? E que horas eram aquilo? Na televisão, um filme de cores desmaiadas ia anunciando a madrugada.

Não podia ligar para Dinho porque o filho estava viajando, aquele lá sem nem telefonar para saber se ela estava viva ou morta. Muito menos ia ligar para Fábio, aparecia uma vez na vida outra na morte, nunca atendia ao telefone, deixava sempre a secretária eletrônica ligada, imagina se a última coisa que fazia na vida era conversar com uma máquina?

Tentou inspirar com força e o peito lhe doeu. Ia-se ver era o fato de ter sentido ódio da nora que lhe tinha causado tantos males. Quis muito, como quis, ver a filha, a única mulher, a única a quem poderia perdoar, mas tão longe ela andava, aquela coisa de viajar, viajar, viajar, era natural que se arranjasse um estrangeiro, um genro que levou a filha para longe, como se ele próprio, o genro, não fosse filho de uma mulher e não soubesse que não se deve apartar a mãe de suas crias.

Só que nem era coisa mais de pensar ou de querer chamar um dos filhos. Os ouvidos agora acusavam sons aquáticos, como se o ar se tivesse transformado em água. O tempo passando, outra vez se ouvia a sirene de uma ambulância. Foi quando decidiu que não iria esperar a morte. Tinha o hospital ali perto, duas quadras, iria se salvar.

Levantou-se sentindo repuxar cada minúsculo nervo. Apoiando-se na parede e nos móveis, chegou até o armário. Entre pausas e muito suor, pegou um vestido estampado num cabide bem à mão. Também colocou o casaquinho de malha, que estava arejando na cadeira. Teve de voltar para buscar os óculos sobre a mesinha de cabeceira. Ao dar volta com o corpo, desorientou-se e clarões desesperados estouraram nos olhos. Precisava de calma, ela sabia, calma e paciência. Sentou-se na cama e esperou algum tempo, até pararem os clarões. A voz de um ator em um filme dublado era anasalada e maçante. Pegou o controle remoto e desligou a televisão.

Saiu ao corredor. Abrindo ambos os braços, escorava-se numa e noutra parede, e a cada passo um som cavo estremecendo a cabeça, náuseas que eram muito maiores do que as que tivera quando grávida. Ao apanhar as chaves que ficavam junto à porta de casa, as pernas pareciam independentes do corpo, intumescidas e grossas, como se o sangue se tivesse espessado. Mesmo assim, apoiou todo o peso do corpo para baixar a maçaneta e abrir a porta. Caminhou por inércia.

Quando deu por si, já estava no jardinzinho em frente da casa. Ficou parada junto aos jacintos, recuperando o fôlego. Um vento gelado soprou, parecia um castigo. Ela decidiu que era melhor rezar, tinha de conseguir, Deus ia mandar um táxi, o vizinho do lado iria chegar de alguma festa, um carro dirigido por uma boa alma ia passar por ali, um guarda faria a ronda.

Dona Dóris voltou a lembrar do marido com saudade impressionante. Embora o coração disparasse, parecia que a lembrança do rosto do companheiro lhe dava mais ânimo. Ela ia conseguir, com um pouco de sorte. Um passo adiante, desequilibrou-se. O abdômen parecia distendido, cheio de um veneno aquoso, e era como se todo o líquido errasse de caminho em seu organismo, depositando-se em cavidades ainda mais equivocadas. Nas retinas, espocavam luzinhas de todas as cores.

Agarrou as abas do casaquinho e transpassou-as junto ao peito. Esperou que o equilíbrio voltasse. Quando se sentiu mais segura, como um bicho que investe contra o adversário, baixou a cabeça e arremeteu. Desnorteada, exausta, caminhou como pôde, as narinas pareciam cheias de areia, bolhas de ar se evadindo do pulmão e estourando contra o céu da boca.

Sem acreditar, chegou até a esquina. Os pés estavam molhados de suor, o coração batia como se fosse nos ouvidos, enlouquecido. Ela tentou respirar com força, mas o pulmão se opunha, inflexível e repleto. Dona Dóris entendeu que não podia mais, que o pulmão feito em pedra estava falhando, que o coração espaçava as batidas. Os olhos começaram a escurecer e escurecer. A luz que vinha de um poste minguou bem aos pouquinhos. Foi o tempo de tentar se agarrar em alguma coisa, que não existia. Não sentiu mais seus pés. Caiu num escuro gelado.

Com um ardor na têmpora e o coração aos trambolhões, o mundo foi voltando a se compor. Próximo, bem próximo dos olhos, dona Dóris enxergava seus óculos, um saco plástico e dois tocos de cigarro. O rosto ardia. A luz baça que vinha de um poste se tornara furiosa como um sol. Ela entendeu que havia desmaiado e que devia tentar se erguer do chão a todo o custo. Doía o cotovelo direito, o joelho pulsava de uma espécie aguda de nevralgia. Dentro do pulmão endurecido, sentia um movimento como de água que se agita, uma onda refluindo e depois se projetando, marolas dentro das costelas, um volume de mar. Mas tudo dependia dela, a morte não ia chegar daquela forma besta, uma mulher que cria os seus não merece morrer na sarjeta. Lembrou das carinhas dos filhos quando pequenos, crianças lindas, pena que tudo acabou daquele jeito, cada um para um lado, cada um com sua cota de pilhagem, e ela sem o amor que a salvasse, nenhum deles merecia ter na boca a palavra doce de mãe. Outra vez pensou no marido e deu graças aos céus por ele estar morto e não ver a tristeza em que havia se transformado sua família.

Os passos seguintes foram dados como que dentro de um aquário, os ouvidos acusando borbulhas que escapavam de uma densidade líquida. Não sem horror, rezou.

Impressionada com a própria solidão, dona Dóris viu que um rapaz estava parado na esquina. E que um pouco adiante, o hospital se erguia, janelas iluminadas, faróis de carros entrando e saindo. Viu que o rapaz arrumava uma pilha de jornais. Ela apoiou-se no tapume de uma obra, buscando equilíbrio no chão irregular de pedras e areia. O rapaz sentou sobre os jornais e acendeu um cigarro. Dona Dóris olhou o menino e, no rosto meio sombreado por um boné, imaginou as feições de seus filhos, cada um deles, um por vez, e viu cada um deles como figura à distância, todos apartados como por séculos, uma gente débil, criaturas que não podiam com o direito de cuidar de uma mãe.

Só então decidiu, e a decisão causou nela grande alívio, como se fosse próprio de uma mulher arbitrar sobre aquela classe de coisas.

Dona Dóris deu dois passos trôpegos. Fechou os olhos. Primeiro as pernas se dobraram, o corpo se inclinou para trás e os joelhos bateram contra o chão, estourando numa papa de areia e sangue; depois o tronco se projetou para a frente, as palmas das mãos resvalaram contra os pedregulhos, os cotovelos se ralaram, e o rosto bateu flácido contra a calçada. Os óculos se projetaram do rosto, agônicos.

O jornaleiro jogou longe o cigarro e correu para socorrer. Mas então tudo estava resolvido.

Nota do Editor
Conto integrante da revista Granta volume 5 (2010, Alfaguara, 248 págs.) e reproduzido mediante autorização da autora e da editora.

Para ir além






Cintia Moscovich
Porto Alegre, 11/10/2010
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