COLUNAS
Segunda-feira,
23/7/2001
do you know what it means to miss new orleans
Fabio Danesi Rossi
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Rua Basin, New Orleans. 38 quarteirões de corrupção, poluição e degeneração. Prostitutas, cafetões, bêbados, bandidos, vagabundos, jogadores, cafajestes. Soa ruim? Não. Soa muito bem. A trilha sonora que embala as jogatinas, bebedeiras, brigas e arruaças é divertida e envolvente. As músicas são tocadas quase que só por negros. É alegre, espontânea, quente. E, embora seja capaz de causar admiração em maestros e estivadores, em ricos e miseráveis, a música, como os negros, ainda está presa a guetos, mais especificamente nos 38 quarteirões de corrupção, poluição e degeneração que fazem a rua Basin.
É bom lembrar que estamos no começo do século XX. O filme se chama New Orleans. É de 1947 e foi dirigido por um tal de Arthur Lubin. Billie Holiday interpreta uma empregada doméstica. Pode parecer absurdo, mas ao menos é uma empregada doméstica com uma voz fantástica. Louis Armstrong (you know who) faz o papel de ninguém mais ninguém menos do que o principal inventor do jazz. Woody Herman aparece aqui e ali, nos agraciando com seu clarinete, como um sujeito que sonha em tocar com sua banda no Carnegie Hall.
Na primeira semana de julho, celebrou-se 30 anos da morte de Jim Morrison, vocalista dos Doors, e 30 anos da morte de Louis Armstrong. Pobre Satchmo. A imprensa nacional dedicou páginas e páginas àquela porta do Morrison (até gosto do Jimbo, mas não resisti ao trocadilho) e praticamente esqueceu do Armstrong. Mas a gloriosa Continental Vídeo não. Lançou New Orleans num DVD que ainda inclui dois admiráveis curtas metragens, A Rhapsody in Black and Blue, com Armstrong, e Symphony in Black, com o grande Duke Ellington acompanhado por Billie Holiday.
A história do filme non è gran cosa. Dorothy Patrick (linda, linda, linda) interpreta uma promissora cantora de ópera, filha de uma ricaça de New Orleans, que se apaixona pelo rei da rua Basin, Nick Duquesne (Arturo de Cordova). Ele comanda a jogatina na região. E apesar de ser durão e andar entre a bandidagem, não deixa de ser um galã da rua Basin, New Orleans, Louisiana, Estados Unidos, Hollywood. Ou seja, tem um bom coração e uma fina inteligência. Mas o maior ponto a seu favor é o fato dele financiar um grupo de negrinhos e branquinhos espevitados, liderados por um tal de Louis Armstrong. Dorothy Patrick (linda, linda, linda) se apaixona também pela música desse grupo. Claro que essas paixões subversivas incitam o ódio em sua mãe. Claro que sua mãe mexe seus pauzinhos para expulsar Nick de New Orleans. Claro que Nick é expulso. Claro que a rua Basin é fechada. Claro que a menina sofre. Claro que caminhamos, inevitavelmente, para um final feliz.
É um deleite poder ver Armstrong e Billie interpretando Do you know what it means to miss New Orleans, ou Armstrong e seus All-Stars mandando ver em Where the blues was born. Se você gosta de jazz, alugue, compre, roube. Faça qualquer coisa. Mas dê um jeito de botar as mãos nesse DVD. E depois celebre como eu. Encha um copo longo de scotch (ou acenda um baseado - o que Armstrong adorava) e brinde ao maior trompetista do século passado (já passou, não?).
Não descanse em paz, velho Satchmo. Onde quer que esteja, assopre seu trompete e se divirta. Se der, faça do paraíso um inferninho. 38 quarteirões de corrupção, poluição, degeneração e música espetacular.
30 anos sem Satchmo. 30 anos esta noite. Aqui jaz jazz.
a inquisição cultural ataca novamente
Vários homens vestidos como padres, bispos e cardeais, supostamente membros da temível organização auto-intitulada Inquisição Cultural, destruíram, no fim da tarde de ontem, o MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo). O prejuízo, segundo informa a assessoria de imprensa do museu, é incalculável. Um pintor concretista e um designer foram queimados em imensas fogueiras armadas nas salas do museu. Oito pessoas, entre elas quatro funcionários do MAM, deram entrada em hospitais, mas passam bem. No lugar dos quadros, provavelmente também queimados em fogueiras, foi escrita com sangue diversas vezes uma citação de Verdi: "Torniamo all'antico; sará un progresso".
sampa city
Os lugares mais bonitos e agradáveis de São Paulo são os cemitérios. Isso deve significar alguma coisa.
citação da semana
"Ultimamente - e por que, não sei - perdi toda alegria, abandonei até meus exercícios, e tudo pesa de tal forma em meu espírito, que a terra, essa estrutura admirável, me parece um promontório estéril; esse maravilhoso dossel que nos envolve, o ar, olhem só, o esplêndido firmamento sobre nós, majestoso teto incrustado com chispas de fogo dourado, ah, pra mim é apenas uma aglomeração de vapores fétidos, pestilentos. Que obra-prima é o homem! Como é nobre em sua razão! Que capacidade infinita! Como é preciso e bem-feito em forma e movimento! Um anjo na ação! Um deus no entendimento, paradigma dos animais, maravilha do mundo. Contudo, pra mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não me satisfaz; não, nem a mulher também, se sorri por causa disso."*
Shakespeare, in Hamlet (tradução de Millôr Fernandes, disponível para download no site www.uol.com.br/millor e em livro editado pela L&PM)
* "I have of late,-but wherefore I know not,-lost all my mirth, forgone all custom of exercises; and indeed it goes so heavily with my disposition that this goodly frame, the earth, seems to me a sterile promontory; this most excellent canopy, the air, look you, this brave o'erhanging firmament, this majestical roof fretted with golden fire, why, it appears no other thing to me but a foul and pestilent congregation of vapours. What a piece of work is a man! How noble in reason! how infinite in faculty! in form, in moving, how express and admirable! in action how like an angel! in apprehension how like a god! the beauty of the world! the paragon of animals! And yet, to me, what is this quintessence of dust? man delights not me; no, nor woman neither, though, by your smiling, you seem to say so."
Fabio Danesi Rossi
São Paulo,
23/7/2001
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