Não precisa ser verdadeiro. Só tem que ser bom. | Rafael Lima | Digestivo Cultural

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Terça-feira, 25/12/2001
Não precisa ser verdadeiro. Só tem que ser bom.
Rafael Lima
+ de 3500 Acessos

“Espírito de Natal não é o dar. Nem o receber. É o gostar. Feliz Natal”, disse, ou melhor, pensou, Garfield, o gato laranja, em uma tira do dia 25 de dezembro. Enquanto isso, Zé Colméia, apelido do soldador embarcado em algum ponto da Bacia de Campos, murmurava consigo mesmo: “Virada de ano. Reveillon do milênio. Todo mundo pagando uma fortuna para ver os fogos de Copacabana nesses transatlânticos. Eu também vou passar embarcado – e ainda vou ganhar.” E completou, depois de vislumbrar as eternas chamas dos queimadores nas plataformas ao seu redor: “Até fogos de artifício vai ter.”

Natal, Ano Bom, tipo de data que mexe com cada um de maneira diferente, apesar da padronização nas mensagens institucionais, das musiquinhas ambientes nas lojas de departamento e dos especiais de televisão, jornal e... internet? Xô, tentação-de-recair-no-óbvio-esperança-fraternidade-paz, tou fora. Se bem que havia pouco risco nesse caso, porque quando pintou o tema do especial fim-de-ano do Digestivo Cultural, não pude deixar de me lembrar de Paul Auster.

Paul Auster fez a proeza de escrever um conto de Natal original. Recebera a incumbência de criar um conto para o suplemento literário do The New York Times, mas a musa parecia envolvê-lo em brincadeiras diabólicas ao se negar em dar expediente. Auster não queria recair no sentimentalismo fácil, na fantasia nem na hipocrisia que vicejam no campo da literatura natalina. O’Henry e Charles Dickens, em alguma estante de sua biblioteca, eram como duas teletelas do Grande Irmão a fiscalizar sua (im)produtividade. Quem imaginava que a resposta sairia de dentro de uma caixa de cigarrilhas, qual gênio de mil e uma noites escapando de uma lâmpada bem lustrada.

Cortina de Fumaça

O Conto de Natal de Auggie Wren foi publicado no natal de 1990, e eu só viria a ler mais de 5 anos depois. Conheci-o através do filme Cortina de Fumaça (Smoke), cujo roteiro de Wayne Wang teve por embrião exatamente esse conto. Pelo que Wang conta no livro Cortina de Fumaça & Sem Fôlego (Best Seller, 1995), devo ter saído da sessão no mesmo estado de espírito em que ele terminou de ler o conto: uma confusão de sentimentos e percepções desaguando numa felicidade imensa, que parecia preencher tudo. Aquilo que se chama de lavar a alma. O jeito como se deve ficar depois de ler uma história de Natal.

Ter conhecido um Auggie Wren encarnado por Harvey Keitel facilitou a empatia com o personagem, mas sua versão para as letras já é suficientemente cativante. Que mal se esconderia atrás do coração de um balconista de drugstore em Park Slope, Brooklin? Será que o Arcano 9 faria questão de perguntar sobre Paul na tabacaria de costume do escritor – quem sabe até para o balconista que inspirou a criação de Auggie! – se também não tivesse sido cativado por Smoke? Ou pela mágica com que o acaso atua nos escritos de Auster? Difícil dizer, mas nessa busca pelo profundo sentido natalino, a minha impressão é a de que a mensagem de Natal mais sincera só poderia partir de um cínico, alguém praticamente desprovido da capacidade de se comover. Ivan Lessa certa vez gastou uma crônica natalina quase inteira listando os motivos pelos quais não se emocionaria. Nem de presente da filha adolescente comprado com dinheiro economizado de mesada ele livrou a cara. E Auggie Wren é um durão apaixonante e cínico.

No conto narrado em primeira pessoa, Auster pede ajuda a Auggie, que lhe promete contar uma história de Natal – tem várias delas, todas verdadeiras – contanto que o escritor lhe pagasse o almoço. Auster, já meio desiludido, comenta: “Não precisa ser verdadeiro. Só tem que ser bom” Você não precisa acreditar que o que Auggie está falando é verdade, mas é quase impossível que não seja envolvido pela sua narrativa. Como é a literatura, que coloca a verossimilhança acima da veracidade. Como um conto de natal.

Durante o almoço, Auggie conta a Paul sobre como perseguiu um ladrãozinho de pocket books pornográficos por meia quadra após o flagra, só conseguindo ficar com a carteira que havia caído do bolso do pivete durante a corrida. Nenhum dinheiro, uma carteira de motorista identificando nome e endereço, fotos denunciando a infância feliz de um garoto pobre, hoje, mais provável, viciado em drogas. Wren acaba adiando a devolução e fica com a carteira, até que vem o Natal e ele “não tinha nada para fazer”. Sentindo certa pena de si mesmo, pensa: “por que não fazer uma boa ação para alguém?”, e decide devolver a carteira.

É impressionante a falta de piedade que Paul Auster demonstra para um conto de Natal, mesmo que seja só o começo. Assalto, pobreza, solidão, desgosto. Soa irônico que o balconista decida fazer uma boa ação por não ter nada melhor para fazer. Chegando no conjunto habitacional do dono da carteira, Auggie Wren é recebido uma senhora muito velha, cega: “Sabia que você viria, Robert. Sabia que você não esqueceria Vovó Ethel no Natal”. É quando Auster mostra seu talento de marionetista do acaso, surpreendendo o leitor: “Eu não tinha muito tempo para pensar, entende? Tinha de dizer algo bem depressa, e antes que eu percebesse o que estava acontecendo ouvi as palavras saindo da minha boca: ‘É isso mesmo, Vovó Ethel. Vim visitar a senhora no Natal’” O que se segue é um teatrinho consentido entre Auggie e Ethel, na base do eu finjo que te engano e você finge que acredita, meio porque, afinal, o primeiro não tinha coisa melhor para fazer, e ficava feliz em fazer companhia à velhota, e a segunda, não porque estivesse esclerosada a ponto de ser incapaz de reconhecer seu neto, mas porque também ficava feliz em fingir. O humor cínico de Auggie não dá trégua nem numa hora dessas: “O lugar era uma bagunça, mas o que se pode esperar de uma mulher cega que faz sua própria limpeza?”.

O tempo passa, Auggie Wren fazendo as vezes de Robert e contando como arrumou emprego, e toda a sorte de coisas bonitas, até que bate a fome e ele vai na mercearia comprar frango assado, sopa de legumes, salada de batatas – a ceia. Tocados pelo vinho, que tinha sido encontrado no quarto, o casal se muda para a sala, com um pedido de desculpas de Auggie para urinar. “Já era muita maluquice eu fingir que era o neto de Ethel, mas o que fiz depois foi realmente uma loucura, e nunca me perdoei por isso”. Havia uma pilha de máquinas fotográficas 35mm no banheiro novinhas, furtos recentes de Robert. Sem nunca ter tirado uma foto na vida, Auggie decide que queria uma daquelas. Simplesmente. Quando volta para a sala com ela debaixo do braço, encontra Vovó Ethel já dormindo, embalada por Baco. Lava os pratos, deixa a carteira do neto sobre a mesa, “não podia nem deixar um bilhete de despedida, porque ela era cega” E simplesmente vai embora.

É o fim da história, mas não do diálogo entre o escritor e o balconista. Auggie conta que 3 ou 4 meses mais tarde decidira devolvê-la, mas a velhinha já não habitava naquele apartamento. Paul conclui que ela provavelmente morrera, portanto, provavelmente tinha passado seu último Natal junto a Auggie:
- Acho que sim. Nunca tinha pensado nisso.
- Foi uma boa ação, Auggie. Você fez algo de bom para ela.
- Eu menti para ela. E depois roubei-a. Não sei como posso ter feito uma boa ação.
- Você a fez feliz. E a máquina era roubada, de qualquer forma. Não é como se você tivesse roubado do verdadeiro dono.
- Tudo pela arte, hein, Paul?
- Eu não diria isso. Mas pelo menos você fez bom uso da máquina.

(As duas últimas falas referem-se à parte inicial do conto, que omiti aqui: depois de descobrir que seu freguês era escritor, Auggie lhe convida para conhecer suas fotos. “A maioria das pessoas não dá a mínima para livros e escritores, mas acontece que Auggie se considerava um artista.”, e lá vai Paul, sabe-se lá o que o esperava. A “obra de sua vida” eram doze álbuns de fotos, exatamente iguais, tiradas exatamente às 8 da manhã em uma esquina do Brooklin. Desconcertante. Imagine a surpresa muda nos olhos de William Hurt e o largo sorriso satisfeito no rosto de Harvey Keitel, a observá-lo folhear as fotografias.)

- E agora você tem seu conto de natal, não é?
- É. Acho que sim.
Um super-close no sorriso enigmático de Harvey, o agradecimento de William Hurt, e a historinha recontada visualmente, imagens em preto e branco, você derretendo na poltrona do cinema, as emoções transbordando com a voz rouca de Tom Waits: you’re innocent when you dream...


(tem outro conto de Natal igualmente surpreendente, na verdade uma Hq do Luiz Gê em 8 páginas - Quem matou Papai Noel? - no álbum Quadrinhos em Fúria, sobre a qual gostaria de falar aqui. Mas essa vai ficar para o ano que vem...)


Rafael Lima
Rio de Janeiro, 25/12/2001

Quem leu este, também leu esse(s):
01. O gosto da cidade em minha boca de Elisa Andrade Buzzo
02. Adolescente lê, sim, senhor! de Ana Elisa Ribeiro


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