COLUNAS
Segunda-feira,
10/2/2014
As Vacas de Stalin, de Sofi Oksanen
Ricardo de Mattos
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"A vaca de Stalin é um bode". (Sofi Oksanen)
Pode-se dizer que aquele que não gosta de ter seus defeitos, vícios e doenças mencionados por outrem apresenta dois principais motivos para seu desgosto. Primeiro, porque já sabe por si mesmo, conscientemente ou não, mais a respeito de suas mazelas do que seria confortável. Segundo, porque sente-se totalmente nu diante de quem apenas admirou seu calcanhar.
Certo provérbio maçom afirma que "um homem com Deus forma a maioria". O crente sabe que a extensão de sua sombra é de conhecimento divino, o que já é desconforto suficiente. Portanto, mais gente além d'Ele informada sobre o conteúdo pétreo de seus sapatos é a multiplicação deste desconforto. "Si a maioria já sabe, que mais quereis: declaração de próprio punho?".
A tarefa mais difícil do ser humano talvez não seja conhecer-se, mas reconhecer-se. Reconhecer-se naquele que fala em demasia (!), no que trapaceia, no que inveja, no que tira vantagem até em festa infantil, no que se soterra sob mecanismos de defesa. Poderia ser a tarefa mais fácil, pois o sujeito desta pesquisa está ao permanente alcance: desnecessário marcar hora para entrevistá-lo. Vá tentar surpreendê-lo, contudo... Escorre pelos dedos e torna-se necessário descobrir seu novo esconderijo.
O indivíduo poderia ser sua melhor companhia. Devido a certo masoquismo sobre o qual ainda não nos detemos, prefere ser sua pior companhia, concentrando-se em seus aspectos desfavoráveis. Pensamos naquele jogo da memória, em que as cartas ou figuras são viradas para baixo, cabendo ao participante desvendar os pares. Fulano levanta a primeira carta e descobre um defeito. Levanta a segunda e descobre outro. Então queda-se depressivo: "Eu não presto!". Por que, em vez de ficar miando e atormentando aqueles que lhe são próximos, não levanta as demais cartas para ver quais qualidades também estão ali ocultas?
Sendo-nos lícito, de nossa experiência revelamos que encarar e aceitar nossos defeitos mais fortaleceu-nos que nos abateu. Houve sua parcela de incômodo, evidente. Passada a turbulência, si não fizemos deles nosso cartão de visitas, não aceitamos em nossa caixa ovos que não são nossos.
Terminamos a leitura de As vacas de Stalin, da escritora finlandesa Sofi Oksanen (1977). É o primeiro livro por ela escrito, o segundo traduzido no país. Precedeu Expurgo na forma, ou seja, na narrativa sem linearidade cronológica. O período abrangido, entretanto, vai da década de quarenta do século passado à entrada da atual centúria. Dir-se-ia que foi escrito conforme a personagem lembrava ou tinha conhecimento dos fatos. Fechado o livro, percebe-se o todo, ainda que circular.
Nossa preferência segue a ordem de publicação: primeiro Expurgo, depois As vacas de Stalin. Não são leituras para estômagos frágeis. Todavia, também não são para glutões. O leitor afeito a detalhes eróticos saberá que a personagem Anna, jovem bulímica, mantém relações sexuais com o namorado e até com estranhos, mas nãoo que ela faz durante as relações. Primeiro porque, neste sentido, o explícito parece não fazer parte do trabalho de Oksanen. Segundo, porque a frigidez decorre da doença e dos remédios por ela tomados, de forma que as relações não primam pelo entusiasmo. Terceiro, porque os detalhes são reservados ao que ela chama suas "sessões": comer pantagruelicamente e depois devolver tudo. Pode se perguntar: "um livro inteiro sobre uma garota vomitando?". Caro leitor, não seja simplista. N'As vacas de Stalin Oksanen reforçou aqui e descuidou ali. Há cenas fortes e há pontos entediantes. Por isso dissemos preferir Expurgo, muito mais pesquisado e equilibrado.
No primeiro livro que escreveu, Oksanen descreveu o passado próximo e o "médio", por assim dizer. Próximo no que se refere à vida da personagem. "Médio", por incursionar na história da Estônia, porém sem ir muito longe. Tanto a escritora quanto a personagem são filhas de pai finlandês e mãe estoniana, o que sugere certo conteúdo autobiográfico. Eis, inclusive, ponto interessante do livro. Em dado parágrafo, ou mesmo em dada frase, a narrativa muda da primeira para a terceira pessoa sem aviso prévio. E não se trata da fala d'outro personagem em discurso indireto. O "eu" cede ao "ela" de forma que, si conteúdo biográfico há, talvez seja a forma de distinguir a ficção da realidade; o limite entre a criadora e a criatura, feita a sua imagem e semelhança, com ela não se confundindo.
A que vacas refere-se o título? Trata-se, ao que parece, de um esforço de humor dos prisioneiros - políticos ou não - egressos da Sibéria, que diziam ter visto por lá a raça bovina desenvolvida por Stalin. O desmentido revela o chiste: "A vaca de Stalin é um bode". Portanto, algo aquém ou completamente diverso do esperado. No começo da leitura, como há referência à negação da prostituição no território soviético, imaginamos que "vaca" envolveria a referência às prostitutas pelas autoridades do regime. Os negros trazidos à força ao Brasil não eram referidos como galinhas d'Angola, o que rendeu nome ao porto nordestino? O desacordo entre o que se espera e o que se tem parece mais conforme. O que se esperava do regime político não se cumpriu. O que se esperava da mudança de país, também não. Cidadãos foram convertidos em números e manejados dentro do país como gado dentro da fazenda. Os excedentes ou problemáticos são abatidos.
Tornando ao conhecimento ou reconhecimento de si. O que um profissional da saúde demoraria dias, semanas, meses, anos (?!) para levantar, a personagem entrega pronto. E não, ele nada teria a acrescentar-lhe: "Eu também sabia tudo o que era possível sobre distúrbios alimentares, tendo lido sobre tudo, estudado tudo. Eu não precisava de suas aulas sobre bulimia e seus nutricionistas - talvez tivesse precisado disso dez anos atrás, porém agora não mais". Repetir o que se sabe enfada. O que vem depois?
Os dados sobre Anna e sua família são graduados. Muito sobre ela, sua mãe e sobre a Estônia. Menos sobre o pai. Menos ainda sobre a avó e os demais. Na crueza da narrativa, a personagem não estabelece relações de causa e efeito entre sua vivência e sua doença. O leitor atento perceberá sozinho os liames.
A partir das lembranças de Anna, a Estônia adquire fisionomia humana. Equivale a parente querido que se conheceu o suficiente para amar, mas do qual foi obrigada a afastar-se e mesmo negar. Anna nasce na Finlândia, e seu contato com o país de origem dá-se através das constantes viagens maternas. Katariina, a mãe, cumpriu a praxe de então para sair de país do bloco soviético em busca de melhores oportunidades: casou-se com um finlandês. Não foi bem sucedida sentimental nem financeiramente. Podemos ver seu constante ir e vir de contrabandista como tentativa de amenizar o prejuízo.
Muitas vezes a tentativa de amenizar implica em agravar. Com todos seus defeitos, na Estônia Anna identifica sua origem. Localiza o ponto de apoio que o país de nascimento não oferece. Na Finlândia, ela é alguém a mais, cuja origem deve ser cuidadosamente resguardada, pois considera-se prostituta toda mulher de origem soviética. Isto é algo de que ela demonstra consciência, pois refere-se mais de uma vez a homens que pensam ser sua mãe a sua cafetina. Por outro lado, na sua querida Estônia, ainda que precária e maltratada pelo regime político absurdo, ela é vista como a "princesinha" estrangeira. Logo, não consegue a imersão desejada.
Princesinha submetida à tirania de um Senhor: seu corpo. Cremos que Viktor Frankl não consideraria absurdo o seguinte raciocínio: as enfermidades atingem o indivíduo na dimensão noética - ou espiritual -, na dimensão psíquica e na dimensão física. Todavia, o que ocorre na dimensão física, na maioria dos casos, é expressão, consequência ou manifestação do que ocorre na dimensão noética, certo efeito de cascata. Além dos conflitos com o passado e com o presente, Anna estabelece no corpo os limites de sua individualidade. Poderia repetir com Hitchens: "Eu sou meu corpo". Mal sabendo de onde veio, ignorando para onde vai e limitada ao perecível, disto resulta a degradação e a estagnação. Pode ser esta a causa da narrativa começar e terminar com a personagem falando de bulimia. Apesar de minada pelo flagelo auto-imposto, nada indica que ela deixou ou deixará o estágio em que se encontra.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
10/2/2014
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