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Terça-feira,
11/2/2020
Championship Vinyl - a pequena loja de discos
Renato Alessandro dos Santos
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Se você é daqueles que julgam os livros pela capa, provavelmente, não leu Alta fidelidade, premiado romance dos anos 1990 de Nick Hornby. O problema da edição que tenho aqui é que ela traz a silhueta estilizada de dois CDs, além do título e do nome do autor, claro. Certo, mas e daí? Daí que quem lê o romance, cujo protagonista tem uma loja de discos de vinil, não vai encontrar CDs lá, mas discos, discos e mais discos. Então, por que os dois Compact Discs? Aquele era um momento de transição na indústria da música, e talvez por isso a editora tenha optado pelos CDs, por conta da novidade que eram esses disquinhos que, hoje, nem todo mundo quer ter por perto.
Por perto, agora, que tal os discos de vinil? O engraçado é que a simples presença deles nas mãos do personagem que ocupa o centro das coisas em Alta fidelidade passa a impressão de alguém que se recusa a crescer e a se tornar adulto, o que significa, Ousadia, viver longe dos pais e, às vezes, (alegria, alegria) não ter muita gente por perto. Certo, mas, uma vez que a mãe ou o pai não vai regar as plantas todos os dias, quando chega a hora de cuidar delas, e aí? Bem, nesse caso, não seria mais fácil não tê-las por perto?
Culpa da Rocco, a opção pela capa medonha, porque, superado o mau gosto, o que o romance traz é uma narrativa esfuziante sobre os transes do amor naquela fase em que o casamento ainda não chegou para enterrar a vida — e se até os 30 e poucos não aconteceu é porque há algo de errado aí, certo? De qualquer forma, superar os 40, solteiro, é coisa de pessoas de muita independência, sejam feias, bonitas, hipnóticas, neuróticas, o que for... Mas... voltando à capa... será que teria existido outro motivo? É que nenhuma pessoa pode dizer que tal reviravolta não ecoe a vida do protagonista, porque associar a queda do vinil à ascensão dos CDs não deixa de significar, também, que Rob Flemming, o adultescente do romance, dono da praticamente falida loja de discos Championship Vinyl, superou o passado, isto é, seus traumas em relação ao amor, e cresceu, finalmente. Mas tal suposição ficará por conta dos leitores, e, contra ela, há de se dizer que nenhum CD substituiu vinil algum do idiossincrático Flemming.
Um Lote Repleto de Grandes Discos
Hoje, com o aumento das vendas dos discos de vinil — com o papel alumínio embalando tudo, como um bombom (toca-discos vintage, álbuns clássicos de todos os gêneros, estantes com prateleiras e prateleiras cobertas de discos como se fossem livros; isto é, não com a capa em exposição, mas sua lombada etc.) —, ler ou reler esse romance é uma baita experiência, porque, não bastasse a trama, a narrativa mira a cultura pop, bombardeando os leitores com informações sobre artistas, discos, bandas, todo o kit.
Um exemplo: você sabia que sete anos após a morte de Otis Redding foi lançado na Inglaterra um compacto simples com "You left the water running"? Só que a viúva Otis não gostou de nada disso e exigiu que os compactos fossem retirados de circulação, o que fez deles um objeto raro, mosca branca mesmo, para deleite daqueles colecionadores que, em troca de um disco difícil de ser encontrado, talvez não fossem vender a alma ao caramujo lá de baixo, mas, decerto, abririam mão do descanso merecido no sábado e no domingo só para pôr as mãos naquela raridade que, provavelmente, vai ser ouvida uma única vez, e olhe lá! É que no altar da estante certos discos têm de ser cultuados como um Deus. “Santa estupidez, Wayne!” — diria Robin Bom Camarada, nessa hora. “Acha mesmo, rapaz?” — comentaria, surpreso decerto, o herdeiro solitário.
Subo numa cadeira e começo a descer as caixas de compactos. Ao todo há sete ou oito, e embora eu tente não olhar o que está dentro delas enquanto coloco-as no chão, na última caixa vejo de relance o primeiro deles: é um compacto de James Brown na King, com trinta anos de idade, e eu começo a formigar de expectativa.
Quando começo a examiná-los direito, percebo imediatamente que é o tesouro que sempre sonhei encontrar desde que comecei a colecionar discos. Há compactos dos Beatles que só os fã-clubes têm, os seis primeiros compactos do The Who, gravações originais de Elvis no início dos anos sessenta, montes de compactos de blues e de soul raros e...
Essa passagem do romance vai fazer qualquer colecionador de discos esfregar as mãos de satisfação, porque é mais ou menos por um momento desses que alguém espera a vida toda; isto é, como numa caça ao tesouro, ter um Lote Repleto de Grandes Discos é quase uma pílula de felicidade espontânea — ou — quem sabe? — como aquela epifania que algumas pessoas de boa vontade costumam ter quando, no horizonte, um holograma celestial vai surgindo... — e o desfecho dessa história é de deixar estupefato, no bom e no mau sentido, qualquer apaixonado por vinil. Hornby, porém, não mira apenas o universo dos colecionadores; se tivesse insistido nessa direção, o tiro teria escapulido pela culatra. Por quê?
Primeiro, pela coloquialidade que faz a leitura fluir enxurrada adentro. Depois, porque os dilemas da vida amorosa, antes do casamento, surgem e, em contraste, aí sim, entrelaçam-se com a paixão pelos discos, o que torna tudo capaz de cativar adolescentes de todas as épocas, especialmente aqueles que, de coração partido, desiludem-se diariamente com @s possíveis candidat@s à cara-metade (nesse sentido, a série Lovesick fica muito próxima do universo de Alta fidelidade, como se até fosse influenciada por ele). Um porquê penúltimo — porquê penúltimo (risos) — é pela maneira espirituosa que o autor tem para lidar com o assunto todo, oferecendo listas e listas disso e daquilo (um achado à época). Por último — finalmente —, pela sutileza, comicidade e ironia que usa para cuidar dos espirituosos personagens que convivem com Flemming. É um livro, enfim, que alia — por meio da literatura — música, relacionamentos amorosos e discos de vinil.
Fica assim, então: se você é mais um dos que aderiram aos LPs — ou nunca os abandonou —, não vá deixar de ler, ainda que todos esses anos depois, esse romance de Hornby, nem de ver tanto a adaptação cinematográfica, com aquele John Cusack cabeça-dura nas pick-ups, quanto a série produzida pela Hulu. “There’s more to life than books, you know”, já dizia aquela canção dos Smiths. “But not much more.”
*
Cinco listas de Rob Flemming:
Cinco empregos ideais
1 Jornalista do NME (1976-1979)
2 Produtor da Atlantic Records (1964-1971)
3 Músico de qualquer tipo (com exceção de clássico ou de rap)
4 Diretor de cinema
5 Arquiteto
Cinco melhores livros de todos os tempos
1 The big sleep, de Raymond Chandler
2 Red dragon, de Thomas Harris
3 Sweet soul music, de Peter Guralnick
4 The hitchhiker’s guide to the galaxy, de Douglas Adams
5 “Algo de William Gibson, ou de Kurt Vonnegut”
Cinco melhores filmes europeus
1 Betty blue
2 Subway
3 Áta-me
4 O silêncio do lago
5 Diva, paixão perigosa
Cinco melhores filmes americanos
1 O poderoso chefão
2 O poderoso chefão II
3 Taxi driver
4 Os bons companheiros
5 Cães de aluguel
Cinco melhores músicas de todos os tempos
1 “Let’s get it on” (Marvin Gaye)
2 “This is the house that Jack built” (Aretha Franklin)
3 “Back in the USA” (Chuck Berry)
4 “White man in The Hammersmith Palais” (The Clash)
5 “So tired of being alone” (Al Green)
Nota do Autor
Renato Alessandro dos Santos, 47, é autor de Todos os livros do mundo estão esperando quem os leia e de O espaço que sobra, seu primeiro livro de poesia (ambos publicados pela Engenho e arte).
Nota do Editor
Leia também "Um cara legal".
Renato Alessandro dos Santos
Batatais,
11/2/2020
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