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Quinta-feira, 28/3/2002
Mezzo realidade, mezzo ficção
Adriana Baggio
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Roberto Manoel dos Santos sabe o que é estar encurralado desde cedo. Ainda bebê, sua mãe deixava-o preso no cercadinho imundo, enquanto ia trabalhar. Roberto passava os dias mordendo as barrinhas do cercado, não para tentar escapar, mas porque as crianças gostam de ficar roendo alguma coisa quando os dentinhos estão nascendo. Na falta de uma chupeta, um chocalho ou um móbile para se distrair, Roberto observava as baratas passando por cima do seu “cheirinho”. O cobertorzinho de Roberto, na verdade, tinha um odorzinho muito ruim, mas que agradava enormemente os insetos do barraco. Roberto, como toda criança, fazia muito cocô e xixi, mas Pampers e Johnson´s não faziam parte do repertório lexical (e muito menos do orçamento) de sua mãe. Assim, o “cheirinho” acabava ficando imundinho com os restos que escapavam pelo trapo que servia de fralda ao menino.

Apesar de tudo, Roberto era muito querido pela mãe e pelo que restava de seu pai quando não estava encharcado de cana ou entupido de pó. Como todas as crianças queridas, tinha uma forma carinhosa de ser chamado. No caso dele, como no caso dos outros Robertos de situação mais privilegiada, era Betinho. Betinho cresceu, destruiu o que sobrava do cercadinho e passou a brincar no quintal. Quando não estava na rua puxando o rabo dos gatos sarnentos da vizinhança, ou reciclando os despojos que os ricos destinam aos lixões, Betinho sentava no sofá puído e de ripas soltas para assistir Profissão Perigo. MacGyver era seu herói. Apesar da distância entre a vida deles – a começar pela diferença entre ficção e realidade – Betinho conseguia perceber similaridades. Assim como MacGyver, Betinho fazia milagres com os objetos mais improváveis. Não existia porta de carro ou de casa, fechadura, ferrolho ou cofre que ele não abrisse. Enquanto procurava a melhor posição para que os pregos do sofá não arranhassem as feridas purulentas que as surras abriam nas suas costas, Betinho vibrava com a as engenhosidades e impossibilidades de MacGyver.

A primeira vez que foi preso, Betinho teve uma estranha sensação de déjà vu. Alguma parte de seu inconsciente lembrou os dias de encarceramento e imundície que teve na infância. A desvantagem é que, no cercadinho das diversas delegacias e prisões que já freqüentou, Betinho nunca estava sozinho. A merda e o mijo de vinte betinhos espalhavam-se pela cela. Sem chocalhos, móbiles ou chupetas, sem o “cheirinho” que dava alguma remota sensação de conforto, mesmo que imunda, Betinho passou a se revoltar com as grades. As barras não eram as do cercadinho, mas uma serra resolveu o problema e Betinho fugiu para a mata. Cansado, dopado, Betinho adormeceu como uma Branca de Neve. Quando acordou, em vez de anões, encontrou um bando de sagüis. Os bichinhos, coitados, obedecendo à inexorável lei da natureza, fizeram de um dos dedos de Betinho o jantar daquela noite. Roberto Manoel dos Santos, depois Betinho, virou Betinho 19, em homenagem à subtração ocorrida nas extremidades de seus membros superiores.

Betinho 19 virou o terror de quatro estados do Nordeste. É o bandido mais procurado em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Coleciona acusações de assalto à mão armada, furtos, homicídios, tráfico de drogas e crimes contra a natureza, como o brutal assassinato de uma família de sagüis. Mas o crime mais cruel de Betinho 19, e sua modalidade preferida, é fazer a polícia de trouxa. O período no cercadinho infantil e as tardes assistindo MacGyver deram a Betinho 19 um know how invejável sobre como não permanecer preso por muito tempo. Em agosto de 2001, Betinho 19 fugiu da Penitenciária de Segurança Máxima Barreto Campelo, na Ilha de Itamaracá, em Pernambuco, usando uma corda feita de lençóis. No mês anterior, o bandido já tinha escapado do Instituto de Reeducação Penal Sílvio Porto, no Complexo Penitenciário de Mangabeira, em João Pessoa, serrando as grades da cela, correndo pelo pátio e pulando o muro. Em fevereiro deste ano, Betinho 19 fugiu novamente da penitenciária de segurança máxima da capital paraibana. Desta vez, cavou um buraco embaixo de uma das camas de alvenaria da cela e alcançou o pátio externo. Para não tomar choque ao pular o muro, Betinho 19 e outros apenados provocaram um curto-circuito na rede elétrica e, mais uma vez, escaparam.

Essa última fuga foi amplamente noticiada - e temida. Os jornais exibiram manchetes alarmantes. A polícia alertou os moradores dos bairros nobres da cidade para que tomassem cuidado com o bandido. “Bessa, Manaíra, Tambaú e Cabo Branco em alerta! Betinho 19 escapou outra vez! Bandido tem preferência pelos bairros nobres da cidade! Escondam-se em suas casas, Betinho 19 está solto!”. João Pessoa ganhou ares de cidadezinha de faroeste norte-americano, onde numa terra-de-ninguém qualquer, quando o bandido chega, todos os cidadãos de bem escondem-se em suas casas. Os xerifes de João Pessoa não deram conta de Betinho 19, e o bandido aterrorizou a cidade, roubando carros e assustando os burgueses dos bairros da orla.

Falando em terra-de-ninguém, a última de Betinho 19 foi em Santa Cruz do Inharé, no Rio Grande do Norte. Mais uma vez, viu-se arranhado por ripas e pregos soltos de sofás vagabundos. Escapando dos hômi, escondeu-se embaixo do móvel da casa da namorada A.M.S.B., de 16 anos. A polícia achou e prendeu o bandido. Orgulhosos de sua captura, os hômi prenderam Betinho 19 na cadeia da cidade, uma pitoresca construção de 1923, que faz a gente lembrar de jagunços sanguinários e coronéis corruptos, e foram ao puteiro mais próximo comemorar a façanha.

Betinho 19 foi algemado nas grades da cela. A reputação do bandido é tão boa que nem o carcereiro quis dormir por ali e foi descansar em outro lugar. Devido à sua familiaridade precoce com grades e com as proezas de MacGyver, Betinho 19 não teve dificuldade em abrir as algemas com uma perna de óculos, encontrada na cela pela polícia. Os outros presos ajudaram a serrar as barras. Betinho 19 seguiu pelo corredor da cadeia, abriu um buraco no teto (que, devido ao estilo arquitetônico da década de 20, não tem laje), e saiu calmamente pela madrugada de Santa Cruz de Inharé, sob os acenos saudosos dos presos que, obedientemente, permaneceram na cela de grades destruídas. Cuidado, cidadãos de bem. Mais uma vez, Betinho 19 está solto.


Adriana Baggio
Curitiba, 28/3/2002

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