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COLUNAS

Segunda-feira, 2/12/2002
Os Violinos do Silêncio
Maria João Cantinho
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"Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo, literalmente tudo quanto se possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da dignidade e bom senso, pois acontece facilmente, a quem tudo perdeu, perder-se a si próprio; reduzido a tal ponto que outros poderão sem problemas de consciência decidir da sua vida ou da sua morte para além de qualquer sentimento de afinidade humana; no caso mais optimista, na base de uma mera avaliação de utilidade. Compreender-se-á então o duplo significado da expressão 'Campo de Extermínio', e será claro o que entendemos exprimir com esta frase: jazer no fundo."
Primo Levi, Se Isto é um Homem.

A recente releitura da obra "Se Isto é um Homem" deixou-me abalada. É evidente que a obra nos reenvia de imediato para um imaginário de incontornável horror, que não podemos deixar em branco, como se nada tivesse acontecido. A barbárie recentemente ocorrida no coração do mundo ocidental, os tentáculos "invisíveis" do terrorismo, grassando por toda a parte, aliada à crescente onda de racismo e xenofobia por toda a Europa, a indignação (ainda presente na nossa memória) perante a limpeza étnica perpetrada pela Sérvia e, ironicamente, a tragédia que vivem os palestinianos, são acontecimentos que evocam de imediato a catástrofe do holocausto, tomado enquanto arquétipo da dilaceração do humano, em toda a sua extensão.

A obra de Levi, que devia ser lida obrigatoriamente, descreve uma geografia do insustentável, definindo a rota de uma viagem pela mapa insondável do medo: a viagem de comboio com destino a Auschwitz, por dentro da fria noite, de homens, mulheres e crianças apinhados como animais em vagões de comboio até a um campo onde se encontrava escrito: "Arbeit macht Frei" (o trabalho liberta). Primo Levi também fez essa viagem, mas foi dos poucos (do seu vagão eram quarenta e só quatro regressaram) que retornou.

A questão que urge é a da impossibilidade da constituição de uma memória, a da sua continuidade e concomitante deflagração e, ao referirmos essa problemática, pensamos em Paul Celan (a família de Celan pereceu em Bierkenau), em Walter Benjamin e tantos outros que sucumbiram à memória do holocausto. Embora Primo Levi fosse o último a suicidar-se, entre os três homens, provou ao mundo que não era possível sobreviver àquilo que designo aqui por uma não-experiência ou uma experiência não-humana. O "mundo vazio" não se foi, para nenhum destes homens uma mera categoria conceptual e/ou estética ou um esquema mais ou menos vago da imaginação, mas a expressão de uma realidade incomensurável, cuja esperança não podia ser senão uma ingenuidade.

Tal como a personagem de Kafka, no conto A Colónia Penitenciária, sentiu na pele a inflexível inscrição da Lei/Mal e as mais incontroláveis consequências dessa rigidez, também eles viveram na sua memória a impossibilidade de revestir o real de uma esperança utópica. O estremecimento dá conta do leitor, ao descortinar na fase mais tardia do filósofo Benjamin uma inopinada orientação para uma abertura messiânica, sobretudo nos textos de As Passagens e nas Teses Sobre o Conceito de História. Um arrepio percorre-nos a pele, ao confrontarmo-nos com esse texto sobre a linguagem que haveria de vir, uma linguagem mágica e libertadora, habitada por um sopro genesíaco e tão redentor que apenas as crianças estariam à altura de a compreender. Pensamos como é possível que um alemão judeu possa ter escrito tais páginas, de uma desmedida beleza, enquanto já vivia exilado em Paris, sem meios de subsistência ou amigos que lhe valessem de apoio (todos os seus amigos se encontravam já nos E.U.A., para onde pretendia emigrar). Bem antes disso, já Kafka pressentira a mais violenta e destrutiva raiva, que profeticamente condensara nas imagens intensas que habitam e escorrem por entre as suas parábolas. No entanto, o optimismo resistira em Benjamin, talvez como um modo de se manter ou de permanecer vivo para escrever o que iria ser uma das mais admiráveis obras do pensamento do século XX: As Passagens. Em Celan, também a escrita, embora num registo substancialmente diferente, lhe valeria como modo de se manter vivo, por muito tempo, tal como em Primo Lévi. A escrita como testemunha de uma época, voz ou garantia de narração, como transfiguração poética do real, a escrita como lugar ou possibilidade de salvação.

Mas se, por um lado, a escrita permite o apagamento da voz, para dar lugar à tradição, salvando o que outros disseram (Benjamin), cantando a voz dos mortos (como nos belíssimos poemas de Celan, in Papoila e Memória e, especialmente, nesse cântico desesperado que foi "Fuga da Morte"), narrar o horror por que passaram os sobreviventes; por outro, ela não é capaz, todavia, de resgatar a dilaceração da memória individual. Permitindo romper esse círculo de silêncio autista em que se encerravam os sobreviventes da primeira guerra, de que nos fala W. Benjamin, in O Narrador, não devolve, porém, o poder de falar ou de lembrar.

Levinas terá compreendido exemplarmente essa tragédia ao afirmar a ética como o plano do reconhecimento do Outro, do rosto. Cito, com assombro, esse poema de Celan, em Papoila e Memória, em que o poeta aponta para um plano de possível redenção: "Procurei os teus olhos quando os ergueste e ninguém te olhou,/ estendi aquele secreto fio/ por onde o orvalho que imaginaste/ escorreu para os jarros/ guardados pela palavra que nenhum coração acolheu./ Só aí entraste plenamente no nome que é o teu, / te dirigiste para ti a passo firme(...)". Compreendemos claramente o problema do holocausto, à luz do poema de Celan e poderíamos ainda remontar esse horror a Pascal (quando nos diz que o risível é olharmos dois rostos idênticos, rostos que se repetem, figuras que se sobrepõem, anulando em absoluto a singularidade do humano).

Muito mais que os aspectos odiosos e macabros de que se revestem todas as técnicas ao serviço da mestria da morte, como lhe chamou o próprio Celan, o que nos repugna em absoluto é a anulação do Outro e da alteridade essencial, da identidade humana descobrindo-se na diferença. Para o nazi, o que importava era a anulação de uma abstracção cujo nome era judeu. Pouco importava se a essa abstracção correspondia ou não alguma singularidade. E esse é o cerne da questão, a descarnação absoluta do humano, destituindo o homem de experiência, rebaixando-o à mais pura animalidade (entendida aqui como irracionalidade ou inconsciência), retirando-lhe em absoluto o poder de pensar e de falar: o poder de existir enquanto homem, na sua singularidade ou individualidade, seja qual for o modo como ela se assume. Retirar a experiência e a linguagem ao homem é igualmente destitui-lo da possibilidade da rememoração, do poder de lembrar. Tal permite-nos compreender a fractura da linguagem, a perda da fala, com tudo o que isso implica. Contrariamente ao silêncio de que nos fala Heidegger, esse silêncio que se abre como uma clareira de luz, onde sossega o repouso, o encontro do dizer, a pertença das palavras entre si, fazendo culminar a intensa magia da palavra/nome, o silêncio para que tendem os poemas de Celan e a prosa de Levi é o vazio do abismo, abrindo-se diante daquele que perdeu inteiramente o poder de nomear. O silêncio, não como redenção - como aquele que Eliot também evoca na sua poesia, no repouso entre a água e a luz ou o silêncio que é evocado por Blanchot, nos ensaios sobre Rilke -, mas, ao invés, como condenação, fazendo estilhaçar o sentido da linguagem.

Benjamin, na sua genialidade, antecipou essa catástrofe terrível, sobretudo nas suas Teses sobre a História, evocando a pungente e inesgotável imagem do Anjo da História ou Angelus Novus. Ou ainda na estranha imagem do "corcundinha", que aparece nos textos da infância. Meio entre o burlesco e o irónico, o "corcundinha" é a advertência para a catástrofe eminente, inesperado e absurdo. Não foi preciso que Benjamin tivesse ido até Auschwitz ou Bierkenau (houve uma passagem por um campo de concentração em França) para compreender toda a extensão da questão. Mais do que representável, trata-se de um horror metafísico e ético, da ordem do irrepresentável. O pessimismo - a par do optimismo na crença da linguagem messiânica, o que espanta o leitor não advertido - dos seus textos sobre a história da humanidade é coincidente com o esboço das pulsões destrutivas que pairam sobre a Europa e, em especial, sobre essa Alemanha obscurantista, dominada pelo medo e pela miséria. E a imagem impotente, o "anjo da história", nascente de um quadro de Paul Klee, embora intente salvar os destroços e as ruínas da história, não consegue erguer o voo das suas asas, presas pela tempestade do progresso. O anjo sabe que, doravante, nada poderá fazer para cumprir a função que lhe cabe: salvar ou redimir a história humana, a experiência rememorada, o fio dos acontecimentos bordejado e unido pelo tempo. E, também ele, Walter Benjamin, se transformará numa vítima emblemática desse silêncio. Sabe-se que Walter Benjamin se suicidou numa noite de Outono em Port Bou, de 26 para 27 de Setembro. Tentava seguir para os Estados Unidos via Lisboa quando lhe foi (e a todo o grupo que o acompanhava e atravessara penosamente os Perinéus) negado o visto. Nessa noite, a promessa de uma vida nova, certamente mais digna, deve ter-lhe parecido inconcretizável.

A lucidez é frequentemente atroz e contra a ausência da memória e da experiência parece não existir nenhum antídoto. Nem música, nem literatura e nem sequer a magnífica poesia de Celan conseguiram restituir-lhe a alma ferida. Ler Celan, tal como Primo Levi, converte-se numa experiência de olhar interior terrível, a atestar uma permanente cicatriz, uma dor lancinante que nenhuma distracção humana é capaz de apaziguar nem atenuar. Um grito silencioso pela noite, perdurando, um cântico maldito, acompanhado pelos violinos do silêncio. Ouçam-no:

"Leite negro da madrugada bebemos-te de noite bebemos-te ao meio-dia e pela manhã bebemos-te ao entardecer bebemos e bebemos(...) E grita toquem mais doce a música da morte a morte é um mestre que veio da Alemanha grita arranquem tons mais escuros dos violinos depois feitos fumo subireis aos céus e tereis um túmulo nas nuvens aí não ficamos apertados(...)"

Paul Celan, Fuga da Morte, tradução de João Barrento e Yvette Centeno


Maria João Cantinho
Lisboa, 2/12/2002

Mais Maria João Cantinho
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