Quando a vida liquida o espírito | Luís Antônio Giron

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Segunda-feira, 4/11/2002
Quando a vida liquida o espírito
Luís Antônio Giron
+ de 4200 Acessos

Escrever é perigoso como existir; talvez ainda mais em alguns casos, pois a escrita expande a presença do autor para além da duração do corpo. Nem tudo o que se escreve, porém, merece crédito na eternidade. A vida pode dar cabo do espírito antes que se encerre a produtividade da escritura. Oscar Wilde - nascido em Dublin, em 16 de outubro de 1853 e morto em Paris, em 30 de novembro de 1900, de meningite encefálica - é o exemplo de arte que se exaure antes da vida.

A demonstração do fato está nas "Complete Letters of Oscar Wilde", versão revista e aumentada das "Collected Letters", de 1962. Ambas as edições foram organizadas pelo filólogo inglês Rupert Hart-Davis em colaboração com o neto de Wilde, o jornalista Merlin Holland. Davis morreu em dezembro de 1999 sem ter feito a revisão da edição definitiva da correspondência para celebrar o centenário da morte do autor. No Brasil, o lançamento mais expressivo da efeméride foi "O Álbum de Oscar Wilde", de Merlin Holland, publicado originalmente em 1997, com fotos, desenhos e caricaturas resultantes de 30 anos de coleta. As pesquisas para a primeira edição das "Complete Letters" tiveram início antes do início da carreira de Merlin, em 1954. Naquela altura, parte das cartas se encontrava desaparecida; algumas foram arrematadas em leilões e se espalharam por diversas coleções; outras os destinatários se encarregaram de destruir. Rupert Hart-Davis se baseou no material da família e consultou seis volumes de correspondência do escritor, lançados entre 1917 e 1936, alguns deles falsificados.

O esforço resultou em um tomo com 1.008 cartas, quase todas escritas por Wilde. O livro ganhou status de totem dos estudos literários, embora parte do material disponível não constasse do volume, por veto do único filho sobrevivente do escritor, Vyvyan Holland. Merlin era muito jovem para tomar a decisão de liberar as cartas "comprometedoras". "O expurgo das cartas foi discutido", conta Merlin no prefácio da nova edição. "Mas, na época, o homossexualismo ainda era ilegal na Grã-Bretanha e eu não passava de um adolescente impressionável na escola." E arremata: "Muitas cartas escritas depois da prisão de Wilde eram explícitas quanto a suas inclinações sexuais e sua publicação causaria constrangimento à família." Ainda assim, lembra Merlin, Vyvyan concordou em abrir o armário do pai. O gesto incentivou a reinterpretação da personalidade do escritor. Hart-Davis publicou "More Letters of Oscar Wilde" em 1985, com 164 cartas inéditas. Uma das obras mais importantes derivadas da liberação da correspondência de Wilde foi a festejada biografia de Richard Ellman, de 1987. Ellman se valeu da parte não publicada da correspondência para montar sua obra que, apesar de conter erros, é a biografia mais confiável de Wilde.

A nova edição das cartas fornece detalhes e nuanças não contemplados por Ellmann. Acrescenta 300 às já vindas a público, num total de 1.562 itens que cobrem 32 anos de trajetória intelectual. Elas contam como nenhuma fonte a vida do artista, desde os primeiros bilhetes à mãe em 1868, na Portora School, em Enniskillen, Irlanda, aos desesperadores pedidos de dinheiro aos amigos, cerca de duas semanas antes de morrer no modesto Hôtel d'Alsace, em Paris.

Merlin decidiu incluir no livro cartas comerciais, bilhetes, telegramas e até cartões-postais. O resultado é uma documentação extensa que pode afastar o leitor mais interessado nas passagens picantes - que abundam nos dois últimos anos da vida de Wilde. Além de trazer à tona uma fatia libertina das cartas ao amante, lorde Alfred Douglas, Bosie por apelido, e ao antigo namorado, o jornalista literário Robert Ross, escritores e até a antigos companheiros de prisão, o volume flagra Wilde às voltas com as mais diversas atividades. Entre 1888 e 1889, devota-se à edição da revista "Women's World". Após sair da prisão, em 1898, escreve aos jornais para criticar o sistema carcerário inglês. Na derradeira carta, ei-lo a implorar que o editor e escroque Frank Harris (1856-1931) lhe pague a dívida de 150 libras. A figura do dândi esteta dá lugar à do doente atormentado.

Sem a liga retórica dos historiadores, sua vida exposta na correspondência se revela uma coleção de saltos mortais, frases de virtuosismo e atitudes inexplicáveis. Para Merlin, as mil e tantas páginas recompõem a "rica qualidade violoncelística" da voz do escritor, capaz de criar paradoxos que cimentavam erudição e percepção. Ressurge a fala do artista que revelou ao amigo André Gide: "Sabe qual é o drama da minha vida? É que pus meu gênio em minha vida. Em minhas obras, pus apenas meu talento."

O mito do gênio eloqüente se recicla, como se Wilde reencarnasse Sócrates. Tal situação justificaria o crepúsculo da imaginação do escritor, que não escreveu quase nada mais depois do julgamento que o levou à prisão com trabalhos forçados, em maio de 1895, sob acusação de crime de "sodomia". O único texto posterior de relevo foi "De Profundis", publicado na íntegra na edição de Davis. Tratava-se de uma longa missiva a Bosie, assinada por seu codinome na prisão (C.3.3.), datada de janeiro-março de 1897, com a qual Wilde queria se reconciliar com o mundo, professando uma constrangedora mea culpa.

O fato é que Wilde assumiu uma atitude fatalista diante da justiça inglesa, do amor de Bosie - com quem voltaria a viver ao ser libertado - e da vida. Como conseqüência, seu engenho epigramático minguou e foi substituído pela depressão de um artista desorientado.

"A vida é uma coisa terrível", afirma em carta a Robert Ross em março de 1899, quando de sua visita ao túmulo da ex-mulher, Constance Lloyd, morta aos 40 anos e sepultada em Gênova. Ela morreu revoltada com o comportamento pródigo de Wilde, que, segundo ela, entregara-se a uma vida de dissipação, dependia de uma pensão dela, explorava a mãe e não era digno de ver os filhos, Cyril e Vyvyan. "Não há palavras para descrever o meu horror a essa Besta, pois o chamo assim mesmo", escreveu ela em março de 1898 ao lingüista Carlos Blacker - a quem é dedicado, aliás, o conto "O Príncipe Feliz" (The Happy Prince). Wilde diria numa carta: "O claustro ou o café: lá está o meu futuro. Tentei o lar, mas foi um fracasso." Diante da lápide de Constance, já se considerava um candidato ao necrotério. Evitava se deparar com velhos conhecidos para se poupar da vergonha de ser ignorado. Após cumprir pena, viveu de hotel em hotel, desonrado e constrangido a pedir dinheiro. Para não ser perseguido, adotou o pseudônimo Sebastian Melmoth - inspirado tanto em São Sebastião como no herói do romance "Melmoth the Wanderer" (1820), de seu tio-avô, Charles Maturin.

No verão do ano de sua morte, explicou à amiga Anna de Brémont a razão de haver parado de escrever: "Escrevi tudo o que havia para escrever. Escrevi quando não conhecia a vida e, agora que conheço o significado da vida, não há por que escrever."

A confissão sintetiza o teor de sua correspondência. Ela encena o assassínio da inspiração de um artista pela falta de dinheiro e o abandono à enfermidade. É esta a tragédia pela qual Wilde virou objeto de hagiografia. O esteticismo que pregou em seus anos de ouro deu com os burros na realidade. O encanto que exerce até hoje é o do ídolo que se enxovalha.

Para ir além



Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Publicado originalmente no "Caderno Fim de Semana" da Gazeta Mercantil.


Luís Antônio Giron
São Paulo, 4/11/2002
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