Abrir os portões de Auschwitz sessenta anos depois | Daniela Sandler | Digestivo Cultural

busca | avançada
56774 visitas/dia
2,1 milhões/mês
Mais Recentes
>>> Simões de Assis | Individual de Carlos Cruz-Diez
>>> Jazz Festival: Primeira edição de evento da Bourbon Hospitalidade promete encantar com grandes nomes
>>> Coletivo Mani Carimbó é convidado do projeto Terreiros Nômades em escola da zona sul
>>> CCSP recebe Filó Machado e o concerto de pré-lançamento do álbum A Música Negra
>>> Premiado espetáculo ‘Flores Astrais’ pela primeira vez em Petrópolis no Teatro Imperial para homenag
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
>>> Soco no saco
>>> Xingando semáforos inocentes
>>> Os autômatos de Agnaldo Pinho
>>> Esporte de risco
Colunistas
Últimos Posts
>>> A melhor análise da Nucoin (2024)
>>> Dario Amodei da Anthropic no In Good Company
>>> A história do PyTorch
>>> Leif Ove Andsnes na casa de Mozart em Viena
>>> O passado e o futuro da inteligência artificial
>>> Marcio Appel no Stock Pickers (2024)
>>> Jensen Huang aos formandos do Caltech
>>> Jensen Huang, da Nvidia, na Computex
>>> André Barcinski no YouTube
>>> Inteligência Artificial Física
Últimos Posts
>>> Cortando despesas
>>> O mais longo dos dias, 80 anos do Dia D
>>> Paes Loureiro, poesia é quando a linguagem sonha
>>> O Cachorro e a maleta
>>> A ESTAGIÁRIA
>>> A insanidade tem regras
>>> Uma coisa não é a outra
>>> AUSÊNCIA
>>> Mestres do ar, a esperança nos céus da II Guerra
>>> O Mal necessário
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Mais que cego em tiroteio
>>> Nosso Lar
>>> Bárbara Heliodora
>>> Uma leitura jornalística
>>> Prática de atelier: cores personalizadas *VÍDEO*
>>> Cheiro de papel podre
>>> O Nome Dele
>>> Um Leitor sobre Daniel Piza
>>> Um Furto
>>> Homenagem a Pilar del Río
Mais Recentes
>>> Dicionario Houaiss Da Lingua Portuguesa Com CD de Antonio Houaiss pela Objetiva (2024)
>>> Mulher Enjaulada de Jussi Adler-olsen pela Record2 (2014)
>>> As Melhores Receitas da Cozinha Portuguesa - Os segredos da cozinha das nossas avós de Vários Autores pela Globo
>>> As Melhores Receitas da Cozinha do Nordeste - Os segredos da cozinha das nossas avós de Vários Autores pela Globo
>>> As Melhores Receitas da Cozinha Baiana - Os segredos da cozinha das nossas avós de Vários Autores pela Globo
>>> Quem vai Salvar a Vida? de Ruth Rocha pela Salamandra (2015)
>>> Livro Cáuculo - volume 2 de Maurice D. Weir pela Pearson (2024)
>>> O Código da Vinci - Roteiro Ilustrado de Akiva Goldsman pela Sextante (2006)
>>> Delícias da Kashi - Gastronomia Vegana Gourmet de Kashi Dhyani pela Mauad X (2016)
>>> Livro Microbiologia Para As Ciências Da Saúde de Paul G. Engelkirk pela Guanabara Koogan (2005)
>>> Livro Comunicação E Comportamento Organizacional PLT 111 de Geraldo R. Caravantes pela Fisicalbook (2014)
>>> Livro Finanças Corporativas: Conceitos E Aplicações de Jose Antonio Stark Ferreira pela Pearson (2005)
>>> Livro Introdução a Genética PLT 248 de Anthony J F Griffiths ; RiCHARD C. Lewontin pela Guanabara (2008)
>>> Teoria Geral Da Administração. Da Revolução Urbana À Revolução Digital de Antonio Cesar Amaru Maximiano pela Atlas Br (2011)
>>> LivroTeoria Geral Da Administração: Da Revolução Urbana À Revolução Digital de Antonio Cesar Amaru Maximiano pela Atlas (2008)
>>> O Porco de William Hope Hodgson pela Diário Macabro (2024)
>>> Arvore Do Beto de Ruth Rocha pela Salamandra (2010)
>>> A Casa No Limiar e Outras Histórias Macabras de William Hope Hodgson pela Diário Macabro (2024)
>>> Ponto De Vista de Sonia Bergams Salerno Forjaz pela Moderna (2014)
>>> A Grande Campea de Maria Cristina Furtado pela Do Brasil (2015)
>>> Amigos De Verdade de Telma Guimarães Castro Andrade pela Brasil Literatura (2010)
>>> Bleach 57 - Out of Bloom de Tite Kubo pela Panini Comics (2014)
>>> O Fantástico Mistério De Feiurinha de Pedro Bandeira pela Moderna (2009)
>>> Cantigas Por Um Passarinho A Toa de Manoel de Barros pela Companhia Das Letrinhas (2018)
>>> Bleach 56 - March of the Stacross de Tite Kubo pela Panini Comics (2013)
COLUNAS

Quarta-feira, 2/2/2005
Abrir os portões de Auschwitz sessenta anos depois
Daniela Sandler
+ de 8800 Acessos
+ 2 Comentário(s)

Em 2004, foram os sessenta anos do Dia D, celebrados com pompa na costa francesa. Este ano, serão os sessenta anos do fim da Segunda Guerra Mundial, e, na semana passada, os sessenta anos da liberação de Auschwitz, memorializados com cerimônia oficial no ex-campo de concentração e extermínio. Há muitas outras datas relativas ao término da Segunda Guerra, mas estas três têm ressonância excepcional no imaginário ocidental: o Dia D marcando a virada, o início do fim; o 8 de maio, dia do armistício; e 27 de janeiro, a liberação do mais emblemático campo de morte construído pelos nazistas. A cerimônia dos sessenta anos da liberação de Auschwitz ganhou relevo recente não só por seu significado histórico, mas pelo deslize do príncipe inglês Harry há três semanas, quando apareceu vestido de oficial nazista numa festa à fantasia. A fantasia infeliz do príncipe renova a importância dessas comemorações citadas acima. Confesso às vezes ter me perguntado se tantas cerimônias, eventos, filmes, memoriais e livros, repetidos a cada década, não são redundantes. Mas, diante de “Harry the Nazi” (como foi chamado por tablóides ingleses), não posso evitar pensar que essas encenações de eventos históricos são ainda necessárias. O desafio é não apenas transmitir o conhecimento dos fatos – até mesmo para evitar revisionismo histórico –, mas também comunicar o significado dos fatos. Em outras palavras, não só aprender o que se passou em Auschwitz, mas entender por que suas lições são importantes – o que nos dizem sobre a História, sobre os homens, e sobre o nosso próprio tempo.

Em primeiro lugar, por que, dentre tantos outros lugares de destruição, comemora-se a liberação de Auschwitz com tanto destaque? A cerimônia foi noticiada na imprensa e teve participação de dignitários internacionais; os sessenta anos estão sendo marcados também por artigos, conferências e documentários. Por que tanto interesse? Auschwitz tornou-se símbolo do Holocausto; acabou por representar as centenas de guetos, aldeias queimadas, valas-comuns, locais de massacre, campos de internamento, de trabalho escravo, concentração e extermínio espalhados pela Europa ocupada por Hitler. A “redução” a Auschwitz não é ignorância histórica, mas operação simbólica. Escritores e estudiosos usam intencionalmente Auschwitz para conotar o Holocausto; não é de admirar que, para boa parte das pessoas não familiarizadas com o tema, o nome “Auschwitz” seja não apenas o mais famoso, mas muitas vezes o único a evocar o horror nazista.

Mais de um milhão de mortos

Auschwitz encabeça a lista de mortes: entre 1,1 e 1,5 milhão de pessoas, a maioria judeus. A proeminência do campo vem, em parte, de sua dimensão e do triste recorde. Boa parte das vítimas do nazismo (incluindo sobreviventes) passou por lá – muitas vezes, na rota entre outros campos. Além disso, Auschwitz apareceu em algumas das obras mais marcantes ou populares sobre o Holocausto: os filmes A Escolha de Sofia, A Lista de Schindler, e o livro É Isto um Homem?, entre outros. Os filmes de Alan Pakula e Steven Spielberg contribuíram para disseminar não só o nome, mas imagens vividamente reconstruídas do campo. Já o livro de Primo Levi – inexplicavelmente esgotado no Brasil – é um dos textos mais honestos, sensíveis e impressionantes da sobrevida no campo. O relato de Levi sobre sua experiência influenciou não apenas outros autores de memórias do Holocausto, como também críticos, teóricos e historiadores.

Daí a notoriedade de Auschwitz. Além disso, o campo condensou aspectos e funções que outros campos nazistas dividiam. Auschwitz tinha o status excepcional de campo de concentração e extermínio ao mesmo tempo. Campos de concentração, como Dachau, Buchenwald e Theresienstadt, eram locais primariamente dedicados ao aprisionamento e trabalho forçado. Já campos de extermínio eram fábricas de morte, cuja função básica era enfiar pessoas na linha de produção – ou melhor, destruição – das câmaras de gás. Obviamente, milhares também morreram em campos de concentração: de fome, de doenças, de maus-tratos, executados por oficiais nazistas. Alguns campos de concentração chegaram a ter pequenas câmaras de gás. Mas nada se compara ao massacre industrial em lugares como Sobibor e Treblinka. Esses campos, no leste polonês, eram relativamente pequenos em relação ao número de pessoas que passariam por lá. Havia poucos barracões, onde residiam oficiais e os prisioneiros selecionados para ajudar no “trabalho”. A maior parte das pessoas era imediatamente desovada no banho de gás cianídrico, e depois nos crematórios. Em Treblinka, morreram cerca de 870.000 pessoas; em Sobibor, 250.000.

Auschwitz combinava as duas funções. Composto por um campo de concentração original, conhecido como Auschwitz I, onde pequenas câmaras de gás foram testadas no início, o complexo foi se espalhando e acabou por incluir dezenas de instalações-satélite, entre as quais a maior era Birkenau. Lá estavam centenas de barracões de prisioneiros, e imponentes construções combinando câmaras de gás subterrâneas e torres para crematórios. Em muitos períodos, funcionavam incessantemente: dia e noite a fumaça negra subia das chaminés dos crematórios, os fornos não dando conta dos corpos. Se não fosse o cheiro de carne queimada, seria a imagem de uma usina eficiente.

Auschwitz: síntese, exemplo e caso especial

Auschwitz, assim, sintetiza quase tudo o que se associa a campos nazistas: câmara de gás, barracões a perder de vista, trabalho forçado, morte em massa. É importante, claro, que se entendam as diferenças entre campos, e as nuances do genocídio nazista. Mas o estudo de Auschwitz é um bom começo, e ilumina a compreensão de muitos aspectos mais gerais da vida (e morte) durante o Terceiro Reich.

Por exemplo, a produção industrial de morte é em si suficiente para garantir ao Nazismo o qualificativo de “encarnação do mal absoluto”. Mas – infelizmente – as câmaras de gás são apenas uma parte do horror. Alguns sobreviventes, aliás, chegaram a afirmar que a morte imediata teria sido melhor do que ter de enfrentar o dia-a-dia do campo. Os prisioneiros de Auschwitz eram entulhados em barracões precários, onde se apertavam em “prateleiras” de dormir. A dieta era uma tigelinha de sopa rala, feita de água e cascas de nabo ou batata, e um pedaço de pão duro, muitas vezes mofado. Os prisioneiros eram esqueletos ambulantes. Dormiam três ou quatro horas por noite, eram forçados a trabalho duro no resto do tempo. Em toda parte havia vigilância de oficiais nazistas. A intenção não era manter a ordem, mas reforçar o terror, intimidar, humilhar. Abusos verbais eram acompanhados de violência física. As regras de comportamento, rígidas e impossíveis, mudavam sem previsão, de modo que sempre um prisioneiro estava fazendo algo proibido e poderia ser punido. Em suas memórias, sobreviventes contam que a humilhação e a opressão eram tão extremas que, após um tempo, os prisioneiros passavam a acreditar em sua inferioridade. Todos tinham o cabelo raspado, seus pertences confiscados, vestiam o mesmo uniforme surrado de listas, um número tatuado no braço. Imundos, esquálidos, vivendo em meio à sujeira de latrinas abertas e da lama grudenta da estepe polonesa, não era apenas a auto-estima que se destruía: era o próprio sentido de identidade. Para suportar, muitos relatam um certo estupor, um parar-de-sentir. Aqueles que sucumbiam ao desespero, ao choro, acabavam por quebrar, cair mortos.

Na maioria, os prisioneiros de Auschwitz eram judeus, mas não só. Havia também prisioneiros políticos, ciganos, soviéticos, criminosos comuns, homossexuais e soldados aliados (prisioneiros de guerra). Nem todos eram destinados às câmaras de gás – havia uma hierarquia. Prisioneiros de guerra, ainda que em condições lamentáveis, eram consideravelmente mais bem tratados que o resto. Criminosos comuns tinham privilégios, viravam guardas. No fim da lista, no estágio mais baixo, os judeus. Boa parte nem chegava a ver o campo; desembarcava do trem e ia direto para as câmaras. Outros iam trabalhar no campo, ou nas indústrias vizinhas, ou nos “esquadrões especiais” – responsáveis por transferir os corpos das câmaras para os fornos, e limpar as cinzas depois. Quando um prisioneiro adoecia, enfraquecia demais, ou cometia falta grave, era mandado para o gás.

Excepcionalidade histórica

Mas, repetindo a pergunta do início desta coluna: por que falar disso tudo hoje? Para muitos estudiosos, a resposta está na excepcionalidade do Holocausto. O Holocausto seria um evento único na História, ao qual nada se compara em termos do absurdo, da violência generalizada, contínua e socialmente aceita. Essa excepcionalidade “removeria” o Holocausto da História, pairando sobre o curso dos demais eventos, para sempre um marco a ser estudado e lembrado. Isso evitaria que o Holocausto fosse banalizado, neutralizado, ou igualado a outras tragédias. Por exemplo, poucas pessoas hoje em dia estremecem quando se fala na Inquisição, nas Cruzadas, ou nas sangrentas guerras européias que duravam dezenas de anos. Já o Holocausto ainda acirra os ânimos, emociona, suscita identificação (nem sempre apenas com as vítimas...). Talvez seja apenas por conta da proximidade temporal. O Holocausto ainda é, de certa forma, um problema nosso. Os defensores de sua excepcionalidade argumentam que essa visão do Holocausto como “problema nosso”, como responsabilidade coletiva e histórica mesmo entre as gerações futuras, é essencial e precisa ser mantida. Por isso, o evento único merece status especial nas narrativas históricas.

Outros historiadores argumentam que, apesar da dimensão épica do Holocausto, ele não merece essa condição de excepcionalidade. Os defensores dessa linha enumeram um rol de acontecimentos igualmente catastróficos: o tráfico de escravos da África para as Américas, os milhões de vítimas do stalinismo, o genocídio de Ruanda em 1994, o extermínio das populações nativas americanas com a colonização, os sucessivos domínios sobre a China (Japão, colonizadores europeus, indução do vício ao ópio, expurgos comunistas)... O Holocausto seria mais um na lista – importante, sim, mas não exclusivo. Uma das principais críticas à excepcionalidade do Holocausto sugere que a visão dos judeus como vítimas eternas obscurece o sofrimento e a injustiça enfrentados por outras populações, como os negros. Alguns chegam a dizer que, afinal, o Holocausto acabou há mais de meio século, e a maior parte dos judeus de hoje em dia goza de condições confortáveis de vida e integração social, enquanto os negros ainda enfrentam racismo e desigualdade econômica.

Um dos problemas deste último argumento é a visão do Holocausto como um evento que pode ser delimitado no tempo, auto-contido. No entanto, para sobreviventes, suas famílias, filhos e netos, a experiência continua de outras formas. Lembranças, distúrbios afetivos, pesadelos, raiva, medo – são muitas as maneiras em que o trauma persiste. O outro problema é um juízo de valor que determina que algumas pessoas são mais “vítimas” que outras. “Vitimização” é um conceito um pouco difícil de medir, e de pouca utilidade a não ser para criar cizânia e hostilidades desnecessárias – que competição triste, aliás, entre os candidatos ao posto de maior vítima! Nesse sentido, a polêmica sobre a singularidade do Holocausto também se esvazia. É inútil discutir se o Holocausto paira mesmo fora da História ou se é apenas mais uma manifestação da agressividade humana. Quem opta por um dos dois lados do debate perde necessariamente a chance de um entendimento acurado e relevante. É preciso examinar o Holocausto em suas peculiaridades, que são inegáveis. Ao mesmo tempo, se perdermos de vista o que o Holocausto tem em comum com outros eventos, perdemos também a chance de fazer de nosso estudo histórico algo construtivo e útil ao presente e ao futuro.

Irracionalidade científica

As duas facetas, aliás, são inseparáveis. Tomemos um exemplo: mesmo com o horror dos campos de trabalho forçado soviéticos e dos genocídios na África, até hoje o Holocausto é exemplo único de uma estrutura baseada na mais avançada tecnologia industrial (ferrovias, bancos de dados, produtos químicos, sistemas de administração de trabalho e espaço, a idéia da linha de produção) e devotada inteiramente ao assassinato em massa. Ao contrário da repressão política ou dos ódios viscerais entre tribos diversas, cuja irracionalidade, dogmatismo e cunho “religioso” são evidentes, tanto o genocídio nazista quanto o anti-semitismo que o motivou são ligados a conquistas aparentemente racionais.

O anti-semitismo nazista floresceu em meios científicos, no positivismo que media crânios para prever comportamento criminoso. É isso, aliás, o que causa perplexidade: aparentemente, o nazismo é a “conclusão lógica” do desenvolvimento da racionalidade, da ciência, da revolução industrial, da lógica cartesiana, do século das luzes. A “excepcionalidade” da estrutura industrial de morte revela raízes em valores muito mais gerais, relevantes para outros tempos e sociedades. Um alerta sobre a fé na racionalidade extrema? Ou talvez a indicação de que, mesmo quando julgamos ter subjugado nossos instintos destrutivos e nossa agressão irracional sob a capa da civilidade, acabamos apenas por reprimir essas pulsões, que retornam com muito mais virulência do que se tivessem sido reconhecidas e enfrentadas?

Talvez a lição mais importante do Holocausto não seja simplesmente perguntar como o horror extremo pôde ser permitido, mas reconhecer que o horror se desenvolve gradualmente, insidiosamente – quando atinge o estado extremo, já não horroriza mais. Qual é o ponto em que toleramos a opressão de um grupo, e a partir de onde devemos reagir? O horror de Auschwitz não brotou do dia para a noite. Em 1933, quase dez anos antes de o campo começar a funcionar, Hitler foi eleito pela população alemã com uma plataforma política racista e autoritária. Desde os anos vinte, os partidários do nacional-socialismo, em uniforme e emblemas, aterrorizavam as ruas das cidades com violência gratuita e crueldade notória. E, anos antes, teorias anti-semíticas ganhavam aceitação em círculos acadêmicos – tornando oficial o racismo vigente há milênios.

Depois que Hitler subiu ao poder, os judeus foram gradualmente excluídos: proibidos de exercer certas profissões, de usar transporte público, de ir à praia; tiveram suas casas tomadas, seu dinheiro confiscado; foram demitidos, obrigados a morar em guetos e a usar estrelas amarelas. Esses atos, ainda que iniciados pelo regime de Hitler, só puderam continuar com o apoio ativo da população alemã, que não apenas colaborava com as proibições e fazia delações, como também participava – quebrando janelas, queimando sinagogas, espancando e humilhando judeus. Que quase ninguém tenha achado a discriminação aviltante é sinal do anti-semitismo antigo e pervasivo, da violência embrenhada e disseminada na sociedade, nas pessoas “normais”, para além das leis e das fardas. Auschwitz foi apenas a conseqüência lógica.

A lição, para nós, talvez seja indagar que espécie de violências e opressões toleramos, ou nas quais até participamos ativamente. Coisas que nos parecem razoáveis, ou inevitáveis? Em uma coluna antiga, escrevi sobre a violência embutida da injustiça social brasileira. Poderia citar também os ódios racistas ainda vigentes pelo mundo todo, a intolerância às diferenças; as condições nos cárceres, o uso da tortura; o escândalo de Abu Ghraib e os rumores sobre Guantanamo Bay; a indiferença, a vingança. O desafio não consiste apenas em evitar que pós-adolescentes se vistam, candidamente, de oficial nazista, mas em encarar as questões fora da festa à fantasia.

Fontes de informação

· O site do documentário Auschwitz, série em três partes produzida pela PBS, a tevê pública norte-americana, contém não apenas informações sobre a produção, como dados históricos, mapas, imagens e outros recursos

· A rede de notícias Deustche Welle mantém, em português, uma seção especial sobre a Segunda Guerra

· O museu de Auschwitz, localizado na cidade polonesa de Oswiecim (Auschwitz é a versão alemã do nome), está aberto à visitação pública. A entrada é gratuita; o museu cobra apenas pelas visitas guiadas, opcionais. O web site nem sempre funciona

· O Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos, em Washington, oferece exposições muito bem organizadas, além de biblioteca e banco de dados invejáveis. Muitos recursos, inclusive a excelente livraria, estão acessíveis on-line

· O texto "One Clear Conscience, 60 Years After Auschwitz", no New York Times publicado em 30 de janeiro, é um relato lúcido, sucinto e emocionante


Daniela Sandler
Riverside, 2/2/2005

Mais Daniela Sandler
Mais Acessadas de Daniela Sandler em 2005
01. E depois, perder-se também é caminho - 8/6/2005
02. Uma outra moda - 30/3/2005
03. Festa ou casamento? - 16/3/2005
04. Eu não sei blogar - 25/5/2005
05. Abrir os portões de Auschwitz sessenta anos depois - 2/2/2005


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site

ENVIAR POR E-MAIL
E-mail:
Observações:
COMENTÁRIO(S) DOS LEITORES
8/2/2005
22h30min
O episódio do Príncipe Harry, que a princípio pode parecer mexerico de tablóide inglês, realmente revela uma preocupante situação: será que a exploração midiática, especialmente no cinema, não estaria transformando o Holocausto numa historinha de ficção? Especialmente para nós brasileiros, um pouco distantes dos fatos. Aliás, recentemente comentando com amigos "caso Harry", lembramo-nos que o Holocausto foi muito pouco/mal abordado em nossas aulas de História do segundo grau...
[Leia outros Comentários de Roberson Guimarães]
13/2/2005
11h17min
Parabens, Daniela Sandler. Enquanto o inexplicavel, o absurdo, o horror que não horroriza permear os "homens animais" da nossa civilizacao, a humanidade necessita de vigiliantes eternos. Precisamos rever continuamente nossos valores e a historia pode muito nos ensinar..
[Leia outros Comentários de Salim Ibrahim Levi]
COMENTE ESTE TEXTO
Nome:
E-mail:
Blog/Twitter:
* o Digestivo Cultural se reserva o direito de ignorar Comentários que se utilizem de linguagem chula, difamatória ou ilegal;

** mensagens com tamanho superior a 1000 toques, sem identificação ou postadas por e-mails inválidos serão igualmente descartadas;

*** tampouco serão admitidos os 10 tipos de Comentador de Forum.




Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




A rainha dos reis
Maria Dahvana Headley
Record
(2013)



Padrões de Projeto Ejb
Floyd Marinescu
Bookman
(2003)



Profissionais Da Educação Infantil
Isabel De Oliveira E Silva
Cortez
(2001)



O Livro de Ouro da Mitologia
Thomas Bulfinch
Harper Collins Br
(2017)



O mito cristão no cinema: "O verbo se fez luz e se projetou entre nós"
Laércio Torres de Góes
Universidade do Sagrado Coração
(2003)



A Águia de Sharpe - Vol 8 (lacrado)
Bernard Cornwell
Record
(2009)



Cities of Peasants - Explorations in Urban Analysis
Bryan Roberts
Edward Arnold
(1981)



Livro Literatura Estrangeira O Gamo-Rei As Brumas de Avalon Livro 3
Marion Zimmer Bradley
Circulo do Livro
(1982)



Livro Ensino de Idiomas The Pearl
John Steinbeck
Heinemann
(1992)



Conceitos da Terapia do Bem - Cristais Radiônicos
Raul Breves
Holista
(2012)





busca | avançada
56774 visitas/dia
2,1 milhões/mês