Entre as cordas, os contos são contundentes | Vicente Escudero | Digestivo Cultural

busca | avançada
80381 visitas/dia
1,3 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Victor Biglione, Guilherme Dias Gomes e Alfredo Dias Gomes celebram Miles Davis em show inédito
>>> Arnaldo Brandão recebe Rick Ferreira e Beto Saroldi no projeto “Brandão Convida”, no Blue Note Rio
>>> Netos de Mercedes Sosa e João do Vale, Araceli Matus e Gabriel Vale estreiam show no RJ
>>> Aumente o som: Revista 440Hz retorna em novo formato
>>> Músicos de rua ganham palco e cachê, com shows gratuitos para público, dia 5/2, no Bourbon Street
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> O nome da Roza
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
>>> Left Lovers, de Pedro Castilho: poesia-melancolia
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
Colunistas
Últimos Posts
>>> All-In sobre DeepSeek
>>> L'italiana in Algeri par Georges Prêtre
>>> Le siège de Corinthe par Solti
>>> DeepSeek by Glenn Greenwald
>>> David Sacks no governo Trump
>>> DeepSeek, inteligência que vem da China
>>> OpenAI lança Operator
>>> Um olhar sobre Frantz Fanon
>>> Pedro Doria sobre o 'pobre de direita'
>>> Sobre o episódio do Pix
Últimos Posts
>>> Jurado número 2, quando a incerteza é a lei
>>> Nosferatu, a sombra que não esconde mais
>>> Teatro: Jacó Timbau no Redemunho da Terra
>>> Teatro: O Pequeno Senhor do Tempo, em Campinas
>>> PoloAC lança campanha da Visibilidade Trans
>>> O Poeta do Cordel: comédia chega a Campinas
>>> Estágios da Solidão estreia em Campinas
>>> Transforme histórias em experiências lucrativas
>>> Editora lança guia para descomplicar vida moderna
>>> Guia para escritores nas Redes Socias
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Namoro de portão
>>> Simone de Beauvoir: da velhice e da morte
>>> Como escrever bem – parte 3
>>> Monteiro Lobato, a eugenia e o preconceito
>>> Brasil, Egito, Eike e Gay
>>> Despedida Jarbas Vasconcelos
>>> Um Furto
>>> Uma vida bem sucedida?
>>> Doida pra escrever
>>> Histórias de gatos
Mais Recentes
>>> A Irmã da Tempestade de Lucinda Riley pela Arqueiro (2015)
>>> A Irmã da Lua de Lucinda Riley pela Sextante (2018)
>>> A Irmã da Pérola de Lucinda Riley pela Sextante (2021)
>>> A Irmã da Pérola de Lucinda Riley pela Arqueiro (2021)
>>> A Irmã da Sombra de Lucinda Riley pela Arqueiro (2016)
>>> A Irmã da Sombra de Lucinda Riley pela Arqueiro (2016)
>>> Matemática 3º Ano de Ênio Silveira / Cláudio Marques pela Moderna (2020)
>>> Contos e Lendas Nórdicos de Fátima Pinho (trad.) pela Pandorga (2020)
>>> Uma Herdeira Para Casar -Herdeiras do Duque - Livro 3 de Madeline Hunter pela Charme (2020)
>>> Venha Ver O Pôr-do-sol E Outros Contos de Lygia Fagundes Teles pela Ática (1994)
>>> Moderna Plus 3 - Biologia das populações 4ª edição - kit de Amabis; Martho pela Moderna (2025)
>>> Conexões: Estudos De Geografia Geral E Do Brasil - Volume Único de Lygia Terra pela Moderna (2008)
>>> Vereda Digital - Fundamentos da Biologia Moderna - kit 3 livros de Amabis; Martho pela Moderna (2020)
>>> Tempo De Geografia - 9º Ano de Axé Silva; Jurandyr Ross pela Brasil (2019)
>>> Box Projeto Multiplo Geografia - completo com 10 livros de Eustaquio de Sene; João Carlos Moreira pela Scipione (2020)
>>> Essential Grammar In Use With Answers (Sem Cd) de Raymond Murphy pela Cambridge University Press (2007)
>>> Fantasmas Da Minha Vida: Escritos Sobre Depressão, Assombro de Mark Fisher pela Autonomia Literária (2025)
>>> História Do Carnaval Carioca de Eneida pela Record (1987)
>>> A Ideologia Da Competência - Vol. 3 de Marilena Chaui/ André Rocha pela Autêntica (2022)
>>> Manifestações Ideológicas Do Autoritarismo Brasileiro de Marilena Chaui/ André Rocha pela Autentica (2023)
>>> Geografia Geral E Do Brasil - 7º Ano de Eustáquio de Sene / João Carlos Moreira pela Scipione (2019)
>>> Contra A Servidão Voluntária - Escritos De Marilena Chaui - Vol. 1 de Chaui Marilena/ Homero Santiago pela Autêntica (2021)
>>> Pirkê Avot - a Ética dos Sábios de Schmul Osher Begum pela Lubavitch (1990)
>>> Falando Com Estranhos de Malcolm Gladwell pela Sextante (2025)
>>> O pirilampo telegrafista de Carlos Queiroz Telles pela Scipione (1991)
COLUNAS

Quinta-feira, 17/9/2009
Entre as cordas, os contos são contundentes
Vicente Escudero
+ de 3600 Acessos


F.X. Toole

Não me recordo da primeira vez que assisti a uma luta de boxe profissional. A lembrança mais remota que tenho do esporte é a de dois lutadores fora de forma, um deles de calção azul e o outro vestindo branco, lutando num ringue improvisado sob uma tenda de circo. Devia ter meus doze, treze anos, talvez fosse durante as férias na casa dos meus avós numa cidade do interior de São Paulo, ou em algum lugar próximo de onde morava, numa época em que o circo era programa de final de semana e não havia lei proibindo a participação de animais nos espetáculos.

Encerrada a apresentação dos palhaços, eu e alguns colegas espiávamos a próxima atração escondidos debaixo de uma parte desativada da arquibancada suja. O apresentador, falando em um microfone no meio do picadeiro empoeirado, anunciou que haveria um desafio entre dois pesos pesados. Um ringue foi improvisado no meio do picadeiro enquanto a platéia escassa tratava de engolir gominhas e pipoca. Os dois lutadores gordos entraram, cada um por um lado das cordas, retiraram os roupões e se aqueceram enquanto o apresentador anunciava seus cartéis de lutas: nenhum deles jamais havia sido derrotado, e o sujeito usando calção branco ainda era campeão de uma associação repleta de vogais.

Trocamos alguns olhares de espanto após anúncio de que a luta seria repetida na noite seguinte, afinal, se os boxeadores eram invencíveis, qual seria a graça de assistir a mesma luta um dia depois da queda de um deles? "Amanhã tem revanche!", um de nós disse, empolgado com a reprise, desatino só justificável pela infância.

A alegria acabou antes da luta. O segurança percebeu que não compramos entradas e tratou de nos enxotar da tenda. Naquela noite, fomos banidos por indisciplina. Mas conseguimos ouvir o couro das luvas batendo no couro ainda vivo de algum dos lutadores.

No dia seguinte, voltamos ao circo à tarde, durante os preparativos para o espetáculo da noite. Um dos pesos pesados fumava um cigarro, sentado na porta de entrada de um trailer. Naquela tarde, éramos cinco: eu, duas garotas e dois colegas. O segurança passou por nós e fez questão de recordar que era necessário pagar para assistir à luta e que, naquela noite, se tivéssemos dinheiro, poderíamos ver os dois campeões se enfrentarem novamente. Antes que decidíssemos, o lutador desceu de sua casa sobre rodas e ofereceu algumas aulas grátis de boxe para a "molecada que teve a cara-de-pau de entrar no circo sem pagar".

Vesti luvas grandes. Tive a sensação de estar usando uma couraça pesada que retirava toda a sensibilidade das mãos durante os golpes. Aprendemos a disparar jabs, posicionar corretamente as pernas, saltitar e não caminhar durante a luta, além dos fundamentos que diferenciam o boxe de uma briga de rua: lutadores são classificados de acordo com o peso, golpes só são permitidos acima da cintura e os juízes trabalham separando os lutadores que se agarram, durante o clinch. Saímos de lá com os ombros doloridos, trocando socos com fantasmas no caminho de volta para o descanso noturno.

Só depois de muito tempo fui conhecer o boxe profissional. Lá pelos dezesseis anos, quando o mexicano Julio Cesar Chavez vencia todo mundo por nocaute e aumentava seu cartel de vitórias, que chegou à espantosa sequência de 90 lutas sem derrota. Chavez era um lutador inteligente, sabia domar seus adversários ainda que fossem mais fortes, mais rápidos ou mais resistentes ― enfim, melhores do que ele. Tinha a agilidade de um lêmure, a resistência de um lobo e um cruzado de direita tão forte quanto a patada de um leão. Foi, para os estatísticos da arte de socar, o maior pugilista de todos os tempos. Considero sua luta mais espetacular a defesa do título contra o norte-americano Meldrick Taylor, derrotado no décimo segundo assalto por nocaute, a dois segundos do fim da luta. Detalhe: Taylor vencia a luta por pontos e, por não conseguir responder às perguntas do juiz quando se levantou depois do golpe fatal, foi declarado o nocaute. O cruzado de direita de Chavez era infalível.



Talvez essa imprevisibilidade do boxe, a dificuldade de se definir o resultado pelo retrospecto dos lutadores, seja a grande atração desse esporte. Impossível definir um vencedor simplesmente por características pessoais como força, treinamento e coragem. A dois segundos do fim da luta, meses de preparo podem ruir por um ombro caído, uma defesa fraca. Ofegantes, os lutadores se engalfinham até o desgaste quase fatal, ou até serem interrompidos pelo juiz encerrando a luta, impedindo o fim da carreira de um dos lutadores. Se um deles é nocauteado e levanta rapidamente, num espasmo animal de força e garra, como fez Meldrick Taylor, de nada adianta se a consciência foi jogada para fora do ringue por um golpe certeiro do adversário, capaz de fazê-lo esquecer o próprio nome.

Apenas um lutador impôs a matemática entre as cordas: Myke Tyson. Até o dia em que foi derrubado por James "Buster" Douglas e, posteriormente, por Evander Holyfield. Enquanto estava em forma e fora da cadeia, Tyson foi imbatível. Depois de cumprir pena por estupro, não tinha mais a condição física e psicológica que intimidava e derrubava os rivais no primeiro assalto. Tyson não demorava mais de três assaltos para terminar o serviço. Não trabalhava as pernas muito bem, respirava o suficiente para distribuir dois ou três golpes fatais. Aquele som de "freada de caminhão", feito pelos lutadores quando respiram durante um golpe poderoso não fazia parte de seu repertório. Foi derrotado pela falta de preparo físico.



Fora das arenas o boxe sempre foi mostrado como tragédia e redenção: a luta entre dois homens que arriscam tudo dentro e fora do ringue para ganhar respeito, provar que são mais durões que o oponente. O cinema tratou disso desde Sindicato de ladrões, a história trágica e redentora de Terry Malloy (Marlon Brando), boxeador aliciado pela máfia do sindicato de estivadores, que luta para acabar com a influência do grupo criminoso sobre a população da cidade e sobre o sindicato; passando por Touro indomável, com Robert De Niro no papel do boxeador Jake LaMotta do seu auge à decadência; até Menina de Ouro, a história de Maggie Fitzgerald (Hillary Swank), boxeadora tardia que se torna campeã mundial, mas acaba sofrendo um acidente que a torna paraplégica, fato que coloca seu treinador, Frankie Dunn (Clint Eastwood) entre a cruz e a espada para decidir sobre a prática de eutanásia.

Baseado nas histórias do escritor ― até então desconhecido ― F.X. Toole, Clint Eastwood filmou um drama muito além das cordas, retratando a condição humana quando colocada em situações extremas: o físico combatendo a transitoriedade da vida, o carinho pela lutadora em clinch com os dogmas cristãos. A vida de Maggie Fitzgerald sendo golpeada diariamente pelo tempo não difere das sequências de jabs e ganchos trocadas no ringue, enquanto a dúvida sobre sua tenacidade e coragem vai assumindo ares de redenção, até a transformação em tragédia na luta pelo título.

Maggie e Frankie são personagens extraídos do cotidiano das academias de boxe, da vida dupla levada por F.X. Toole, enquanto conhecido por Jerry Boyd no canto dos ringues. Pouco se conhece sobre a vida deste escritor que se tornou um sucesso tardio. Toreador, boxeador a partir dos quarenta anos de idade e mais tarde cutman (responsável pela contenção dos sangramentos do lutador durante a luta), Jerry Boyd adotou o pseudônimo para esconder dos parceiros de boxe a vida de escritor. Como num golpe de sorte, passou mais de quarenta anos enviando originais e sendo recusado por editoras, a partir da década de cinquenta e, por acaso, aos setenta anos de idade, foi descoberto por uma pequena revista literária de São Francisco. Morreu antes de ver nas telas a personagem que criou, embora tenha lutado para que o enredo não fosse mudado. Venceu, embora não tenha visto a glória. Deixou um romance de quase mil páginas inacabado, encerrado pelos filhos e um restaurador, publicado em 2007, chamado Pound by Pound, ainda não traduzido para o português.

F.X. Toole viveu as lutas que escreveu. Ainda que não tenha alcançado em vida o reconhecimento literário, foi capaz de produzir uma pequena obra-prima, As cordas queimam, coletânea de contos ao estilo de Hemingway, onde só o essencial basta e os ossos, músculos e sangue batalham contra as adversidades com o mesmo vigor de um peso pesado na luta pelo título. Com apenas cinco contos, ficou acima dos frufrus de Norman Mailer e a inocência de Jack London no tratamento do boxe.

Um dos poucos registros do autor, na internet, é esta entrevista. Nela, o escritor recém-descoberto se mostra ansioso, um contador de histórias nato à espera da primeira oportunidade para narrar os episódios que permeiam a doce ciência do boxe. No final dessa luta com a literatura, o resultado foi o seguinte: viveu muito, escreveu pouco, bateu forte. Seguindo Muhammad Ali, teve a chance de voar como uma borboleta e picar como uma abelha. Na literatura e como cutman, foi preciso como uma navalha.


Vicente Escudero
São Paulo, 17/9/2009

Quem leu este, também leu esse(s):
01. Meu cinema em 2010 ― 1/2 de Wellington Machado
02. Nelson Freire em DVD e Celso Furtado na Amazônia de Rodolfo Felipe Neder
03. O que eles têm que nós não temos? de Lucas Rodrigues Pires


Mais Vicente Escudero
Mais Acessadas de Vicente Escudero em 2009
01. Amor aos pedaços - 7/5/2009
02. O naufrágio é do escritor - 12/3/2009
03. E a lei cedeu diante dos costumes - 11/6/2009
04. 2008, o ano de Chigurh - 2/1/2009
05. Amantes, tranquila inconsciência - 8/10/2009


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site



Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Historias Russas
Recontadas Por Ana Maria Machado
Ftd
(2015)



Dicionário da Vida Sexual Volume 1
Aldo Pereira
Abril Cultural
(1981)



A Ciência Do Yoga [Capa comum] [2006] Taimni, I.K.
I. K. Taimni
Teosófica
(2006)



Do cabeamento ao servidor
André Guedes Ruschel
Sem
(2007)



Blade - a Lâmina do Imortal - Nº 21
Hiroaki Samura
Conrad
(2004)



Castro Alves nas Ruas do Rio
Gilberto Guimarães
Cbag
(1979)



Minhas Invencoes
Nikola Tesla
Unesp
(2012)



Leis Da Grécia Antiga
Ilias Arnaoutoglou
Odysseus
(2003)



O Diário de Mackenzie Blue 4
Tina Wells
Pandorga
(2013)



Cruzada Sem Fé
Peter Watson
Record
(1987)





busca | avançada
80381 visitas/dia
1,3 milhão/mês