|
COLUNAS
Quinta-feira,
7/6/2018
Mais outro cais
Elisa Andrade Buzzo
+ de 12400 Acessos
O bairro completa 20 anos. Eu devia estar caminhando para o vão do Pavilhão de Portugal, cuja diabrura me lembra um pouco o vão do Masp, ou ainda, devia estar contando como foi a comemoração do aniversário do Parque das Nações, nascido da Exposição de 98; no entanto, pretiro o espetáculo de fontes luminosas e prefiro escrever sobre os encantos da doca abandonada em seu extremo sul.
No começo da noite se iluminam os dois navios abandonados no ancoradouro e marcam o espaço indeciso entre o que foi, o deixar de ser, o que estará sendo, o porvir do cais. A doca há décadas deixou de funcionar, não se descarregam nem carregam embarcações, não se reparam navios, os armazéns estão lacrados, em fileira, há janelas abertas, pássaros que entram e saem pelos pequenos vãos nos telhados, e seus gritos ecoam dentro. Só eles sabem o que poderá haver: vazio ou escombros?
No final do píer uma corrente enferrujada lacra o portão de ferro diante dos navios; fecha o vazio pois pelos lados há o nada, e abaixo, o rio seco de lama envelhecida. Há uma poeira de conchas muito particulada e esbranquiçada nas frinchas do concreto desgastado, farelos esquecidos de mar, uma corda branca semidestruída que aparece e desaparece nas entranhas do cais. Do outro lado do rio as cidades se acendem em fachos bamboleantes.
O iniciar a ser outra coisa está no primeiro novo prédio de luxo na Fábrica de Prata, uma lata de sardinha aberta para o céu e fechada sobre si mesma, que rebrilha esgazeada desde a doca, ao longe. Novas ruas se recortam aturdidas, árvores pequeninas de galhos finos e recurvados são as primeiras moradoras da remodelação. Essa onda recalcitrante do futuro se aproxima com uma turgidez destrutiva frente ao abandono dos instantes atracados.
E esse ancoradouro com a serventia apenas de ser uma mancha cinza e indefinida onde gosto de percorrer fora de qualquer tempo, desenvolta da marcha eletrizada dos números e das funções mercantes, entrelaçando as mãos em seus farelos de cordas e conchas para que ele reste avesso aos corpos gulosos e olhares especulativos, esse ancoradouro escondido por detrás de uma massa fina de cidade nova através do qual se atravessa ao descompromisso e ao alheamento, e se lança o pé no cadafalso de sua inexistência.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
7/6/2018
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Treze Teses sobre Cinema de Humberto Pereira da Silva
02.
A suprema nostalgia de Marta Barcellos
03.
Machado de Assis: assassinado ou esquecido? de Jardel Dias Cavalcanti
04.
Sob as calmas águas do Lago Ness de Adriana Carvalho
05.
Vamos por partes de Adriana Baggio
Mais Acessadas de Elisa Andrade Buzzo
em 2018
01.
Mais outro cais - 7/6/2018
02.
O dia em que não conheci Chico Buarque - 21/6/2018
03.
As palmeiras da Politécnica - 6/12/2018
04.
Minha plantinha de estimação - 15/3/2018
05.
Primavera para iniciantes - 3/5/2018
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|
|