COLUNAS
Quinta-feira,
2/9/2021
A ostra, o Algarve e o vento
Elisa Andrade Buzzo
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O quanto observei e andei por essa cidade, isto de nada adiantará para conhecê-la de fato, nem servirá de caminho de entrada para finalmente percorrer por dentro de sua circulação sanguínea. Admirar, sempre na distância, como uma paisagem a fugir e a se metamorfosear exata e fractal em veios moventes de ondas, em reflexos duros nas falésias. Vi janelas fechadas, janelas entreabertas, janelas acortinadas, mas nada me deixam ver das pessoas e do interior das casas. Não posso me aconchegar em peito algum, pois só bordejo pela saliência mais exterior das criaturas. Por outro lado, todos me veem e medem meus passos, desde as chaminés algarvias até os gatos de rosto maltratado pelo tempo árido e pelo mar, passando pelas gaivotas em transe orgíaco nas ilhotas do Martinhal pela manhã, ou então pousadas nas encostas da praia da Baleeira nos finais de tarde.
Quando saio do carro e sinto o vento, novamente, pela primeira vez, depois de um ano, ele que me gela a boca e me anestesia a língua, ele que se infiltra no corpo e encosta nos ossos, ele que lança areia velha nos meus olhos, que embaraça meus cabelos tal qual um ninho tecido e entrançado por animais, não seria ele homem que se desenha invisível em rajadas ininteligíveis, como o Saulo do romance A ostra e o vento, de Moacir Lopes? Na verdade, foi pouco o quanto já andei, e de nada sei, a não ser que há faróis piscando noturnamente no cabo de São Vicente e na ponta da Piedade, uma rosa dos ventos calcada na terra da fortaleza, capelas, ermidas, mitos de navegadores e infantes. Há pequenezas cotidianas e grandezas históricas misturadas, um gato preto e branco na beira do porto, que chamo de amore mio, raras figurações do Infante na A22 ou em alguns umbrais de residências. Aqui não vivi, e isso me deixa em desvantagem - nada, nada compreendo ao certo dessas coisas e dessas pessoas, apenas suponho, e erro, e bato a cabeça por pedras, e observo gaviões, e me afogo no mar.
Nessas praias, as conchas azul-marinho chegam quebradas. Pequenos caranguejos quedam mortos na linha de areia, deslizados pelas ondas que os comerão. O que é vivo se forma, se integra e desintegra, cedendo lugar a outras formas que abrem os olhos, veem a luz desses tempos, e expandem os alvéolos. E um enxame de algas, castanhas, grossas e fartas, que saem de todo o panorama, de todo o globo azul e verde, vêm a mim como uma enchente que me engole e me cospe, voltando para a labuta e a selvageria natural de onde vieram. Se pela manhã o sol desprende-se lívido, calmo e crescente, nas noites a lua é cheia, vermelha e alta, dominando o panorama negro e frio. O mar é luzidio ou tenebroso, os caminhos agrestes rentes ou interiores às falésias fervem, depois abrandam, formando um ciclo físico e palpável a se repetir nas mentes e nas sensações.
Acho que o que há de mais real e duro nesse pedaço longínquo de costa, que só mesmo dele e de mais nada é próximo, são mesmo essas altas e recortadas rochas, as formações das falésias, os precipícios dos pescadores e dos românticos, as bases e as paredes das construções de defesa e oração, já que tudo isto, ou seja, as palavras, ditas ou escritas, gritadas à quente dos canhões ou sussurradas na gelidez nas naves, é vento atirado ao vento, e as ações verdadeiras me são ocultadas em cinismos e consensualidades. Não, não haverá momento de sentarmos todos juntos dentro desses casebres, que por fora parecem luminosos, mas dentro se fecham obscuros, e esclarecemos os intentos, as angústias, e os desejos. E de que adiantaria algo semelhante? Se lá fora a superfície azulada de mar que encontra o céu é tão vasta, e os oceanos a navegar são repletos de riquezas e mistérios submarinos que apenas os mergulhadores deles se aproximam. As palavras que seriam ditas seriam palavras soltas e vazias, não verbos essenciais como as curvas dos ciclos naturais; tudo aqui é lançado ao vento, e as ações verdadeiras estão mais aninhadas no movimento maior e contínuo do que em uma pequena vida finita em órbita.
Sagres, 27 de julho de 2021.
Elisa Andrade Buzzo
Sagres,
2/9/2021
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