COLUNAS
Quinta-feira,
11/2/2021
Um antigo romance de inverno
Elisa Andrade Buzzo
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Afinal, passaram-se as três semanas do ano em que Lisboa para mim é mais bela: cinzenta, tranquila, etérea e cerrada sobre si mesma; e quando tive meu último romance com ela – sem aquela claridade característica intensa, que é sua marca registrada. Mas que dizer dessa cidade em sua luz fraca e tenra de inverno, diante da qual seus prédios rebrilham tímida e docemente suas cores pastéis, a não ser que é sua imagem que prefiro e me apaixono? São os últimos dias de janeiro, dos quais neste ano se tiveram notícia como: “O sexto janeiro mais quente no mundo foi ‘muito frio em Portugal’” e “Há 11 anos Portugal não consumia tanta electricidade num só dia”.
Passaram-se essas três semanas de janeiro, afinal, no casulo quente da casa, longe dos passeios gelados e vigorosos pela cidade, mas sob os holofotes das telas de computadores e das luminárias de leitura. Pelas janelas dos carros e das casas, uma bruma de chuva, um vento fino feito de água, uma revoada atípica de gaivotas estrepitosas, resquícios daquela abóbada cinzenta que me acompanhava. Já é fevereiro, e ainda é inverno, e me dei conta de que, no final das contas, neste ano não tive meu affair anual de inverno com Lisboa. Resta-me a lembrança imprecisa e remota de alguns deles, cuja distância, afinal, os coloca no devido lugar ao qual pertencem.
Paredes de pedras lisas e beges, que mal parecem gastas nos labirintos calmos e tremeluzentes em sombras e luzes da manhã. O tempo esgarça-se e fecha-se sobre si mesmo, e estamos apenas imersos dentro da praça do comércio. Passa-se por aquelas camadas temporais de navios, vendedores, marinheiros, reis, senhoras, personagens desfilando centrados e ausentes, e somos tomados por uma estrutura de sensações que difere do gás, do sólido, do líquido, que diverge do eterno verão por ser translúcida e deslocada. E eu só sei o que quer dizer: esquecer e ser esquecido; e, quem sabe um dia: lembrar e ser lembrado.
Por isso, apenas se passa por alguns momentos por aqueles corredores e por aquele pátio de poeira, não se fica lá por muito tempo. Antes, por lá nunca realmente se está, pois não mais pertencemos ao terreiro do paço. Ele é uma ideia instalada na mente da cidade, e nem que mil passos sejam por sobre ela dados ela passará novamente do ideal para o sensível. E como no pico do inverno lisboeta se anda por sobre essa ideia inconsciente, sem se ter conta da gravidade majestosa que é lá estar, olhos acesos e confortáveis.
Entrando mais adentro desse pensamento, em que acaba por se firmar num plano cinzento um arco-íris decadente e domesticado, que se avista mesmo que sem volume, uma aquarela tépida de rosas, amarelo, verde e azul claros pontuada na paleta da cidade invernal... É essa luz filtrada pela abóbada branca na praça dos restauradores, que me detém na esquina do éden e me dá uma claridade de claraboia. Mas, como em um sonho em que não se consegue forçar a ação, sou levada a subir a avenida, abaixo dos galhos pontiagudos dos plátanos nus, levada pela lisura das pedras, divisada pelos canteiros de flores antigas, e pelas esculturas de soldados e sábios, sugada pelas escadarias sombrias dos metrôs. E, se havia borboletas e projéteis num campo de lavanda ao céu aberto, o inverno pré-pandemia afinal termina no último vento lançado pelas carruagens esvaziadas.
Elisa Andrade Buzzo
Lisboa,
11/2/2021
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