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Terça-feira,
15/8/2023
Poesia sem oficina, O Guru, de André Luiz Pinto
Jardel Dias Cavalcanti
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André Luiz Pinto não é poeta de hoje, mas de sempre. Anterior ao seu livro O Guru, lançado agora pela Patuá, temos Ao léu (Bem-Te-Vi), Migalha (7Letras), Terno Novo (7Letras), Mais Valia (Megamini), Nós os Dinossauros (Patuá), Na Rua ― com Armando Freitas Filho ― (Galileu Edições) e Balanço ― poemas reunidos (1990-2020) (Patuá). Uma longa produção, marcada pelo drama que envolve os dilemas da existência e sua relação com a escrita poética.
Em O Guru, mais do que nos outros livros, o poeta parece incomodado com uma situação particular do mundo, a da era dos coaches e gurus, embora não especificamente com essas pessoas que "transmerdam" a internet, mas ― indo à raiz do problema ― preocupa-se com o engodo de uma sociedade que vende e se vende sistematicamente, quase como se esse fosse o destino humano ― que, sabemos, traduz apenas o desejo do capitalismo de transformar tudo em mercadoria e, consequentemente, lucro.
Nessa selva em que uns comem os outros para se manterem como "vendedores de verdades", de saúde, de motivação, de produtos dispensáveis (e que apenas aumentam a poluição das mentes e do ambiente), o poeta decide enfrentar os leões, onças e buldogues dessa selva-capital.
E enfrenta, também, a si mesmo, na qualidade de poeta ― aquele que observa o mundo à distância, vê seus transes e sente-se rejeitado até pelo diabo.
Não se trata de um livro engajado, ao contrário, O Guru apela para uma outra questão, a da filtragem que a poesia pode fazer do "engodo do mundo".
Em "Cartilha", por exemplo, diz: "O que há de gigante é a linguagem incontornável/ extemporânea, anacrônica, da poesia".
Trata-se, pois, do contrário do "coachar" do coach, que vende a certeza de sua falsidade: "Quem vende, precisa crer no que está fazendo. Todo mascate sabe que a vida é uma mentira deslavada", diz em "Da Central".
Ao poeta, cumpre não cair na cilada da retórica do vazio. Diferente do uso instrumental da língua, o poeta trabalha com a écriture (Barthes), que "não se domestica".
"Que maravilha seria então juntar lé-com-cré/ e acabar como um doido-varrido./ Imagina então ser poeta e só falar tatibitate?", diz em "Tatibitat'e.
O poema que dá título ao livro, "O Guru", arma a bomba das poesias que se seguem página adentro, dessacralizando os métodos: "Tenho horror a oficinas de poesia./ Lembram aqueles serviços/ de coaching" ― colocando uma pá de cal no universo das "mentiras sobre mentiras", essas escolas do vazio das narrativas do "nada em abismo" ― mise em abyme ― que são os vendedores de ilusão.
Insatisfeito com espírito do seu tempo, o poeta alegoriza a eterna inconsciência da humanidade diante das forças do mal no poema "“Os irmãos mapogo":
E hoje há quem duvide dos leões.
Pergunte então aos búfalos
abatidos, girafas, hipopótamos.
Pergunte aos filhotes caçados,
a outros leões que cruzaram
seus caminhos; pergunte à relva
que serviu de testemunha.
Pergunte ao vento, que sentiu
o cheiro do sangue; à lua,
ao sol da Tanzânia, às estrelas.
A fratura do mundo ― esse nervo exposto pela poesia ― incomoda o leitor, como incomoda ao poeta, sabedor da imensa distância entre a percepção sensível do desastre e a tentativa de colar o espelho esfacelado da realidade.
No entanto, André Luiz Pinto sabe que é a poesia que “o faz enfrentar qualquer apartheid/ a escrachar com a ignorância dos boçais.”
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
15/8/2023
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