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Quarta-feira, 8/5/2002
Sobre as retrospectivas históricas
Daniela Sandler
+ de 6200 Acessos

No último domingo, vi um pedaço de mais uma dessas retrospectivas históricas na tevê. Desta vez, por ocasião dos 75 anos de uma das maiores redes públicas norte-americanas, a NBC. Do tipo daquelas retrospectivas de fim-de-ano, década, século. Na virada do ano, eu nem ligo a tevê, pois a enxurrada de retrospectivas faz parte da histeria coletiva da época que, como já escrevi antes, não me atrai. Mas, no domingo, livre do sentimentalismo do ano novo, deixei-me capturar pelos clipes de notícias passadas que representavam marcos para a vida dos norte-americanos nas últimas quatro ou cinco décadas.

As imagens foram editadas numa seqüência rápida, em fragmentos breves, mostrando cada evento em uns poucos segundos, uma ou duas frases proferidas pelo repórter ou apresentador da época explicando cada cena: os policiais atirando em estudantes norte-americanos na década de 70, a renúncia de Richard Nixon à presidência, o avanço de tanques no Oriente Médio, o atentado ao Papa, a morte de John Lennon, a queda do Muro de Berlim, a queda das torres gêmeas do World Trade Center.

As cores mais ou menos desbotadas de cada imagem, de acordo com a idade do vídeo; o timbre do som, mais abafado nas filmagens mais antigas; o desenho do logotipo da tevê no canto da tela, que também mudou: tudo isso, tanto quanto o conteúdo das cenas, contribuiu para evocar determinada época ou indicar a passagem do tempo. Por causa do ritmo acelerado da montagem, a sensação foi de que os fatos e décadas estavam sendo sugados velozmente por um ralo gigantesco. A intenção de evocar monumentalidade épica é óbvia. É difícil não se render: é emocionante.

Fascínio

Tento entender o fascínio dessas montagens. Que essas coisas todas aconteceram, nós já sabemos. Mas não pensamos nelas normalmente; ou, se pensamos, é em geral de modo isolado, aleatório, quando um fato presente evoca algo do passado. Mas não temos um filminho passando a história em revista na nossa cabeça o tempo inteiro. Se tivéssemos, aliás, não conseguiríamos prestar atenção ao presente. Claro, a memória é necessária à sobrevivência. Sem memória, não aprendemos – não guardamos o caminho, a lição, o ofício, a linguagem; não melhoramos, depois de errar ou observar.

Mas a memória não pode ocupar cem por cento das nossas faculdades mentais, ou ficaríamos paralisados, inertes, incapazes de agir no presente e de abrir espaço para o novo e o inesperado no futuro. Pois é. Equilibrar memória e esquecimento – lembremos que Friedrich Nietzsche já falava disso no século dezenove, em “Os Usos e Desvantagens da História para a Vida.”

Então é por isso. Guardamos a história em alguma prateleira fora do caminho. Por isso a retrospectiva parece extraordinária, e não familiar; e é dessa sensação extraordinária que vem parte da “importância” que atribuímos, talvez inconscientemente, aos fatos revisitados. Mas não é simplesmente uma lembrança, como se estivéssemos novamente diante da tal prateleira. A cada vez que vemos as retrospectivas, é como se apreendêssemos os fatos de novo, repetindo a primeira vez – e, de certa forma, é a primeira vez, muitas das cenas inéditas ainda que já conheçamos os fatos.

História pura

O efeito é de estarmos diante da história pura, viva: nosso status de testemunha garantido pela transparência da tela de vidro, que não vemos, entre nós e as imagens da tevê, capturadas em tempo real. Esquecemos da tela, esquecemos por um momento que a imagem é reproduzida, e é como se estivéssemos no lugar da câmera, no lugar do fato, envoltos pela impressão de realidade. Esquecemos também que, além da moldura do aparelho de tevê, há o molde do editor, do produtor, a moldura do videoclipe.

Pois, se o nosso arrepio diante da história crua vem dessa impressão de contato direto, a história com a qual nos deparamos já vem escolhida e cuidadosamente apresentada. O paradoxo é este: damos a essas narrativas a força de fato, e daí seu encanto, enquanto essas narrativas são parciais e construídas. Esquecemos do fato mesmo, optamos pela representação – que é muito mais emocionante, de todo modo.

Um exemplo: o Muro de Berlim. Depois que caiu e a euforia passou, muitos analistas sugeriram que, afinal, a estrutura já estava obsoleta e provavelmente seria eliminada, ainda que de modo menos bombástico do que a multidão de berlinenses quebrando o concreto com as próprias mãos. A abertura política do leste europeu e a reaproximação entre as duas Alemanhas já haviam culminado na decisão de liberar a passagem dos alemães orientais para o ocidente. As ações políticas aconteceram nos escritórios do governo, mas é como se precisassem de uma encenação catártica: derrubar, literalmente, o muro, para construir a dimensão simbólica do evento.

Quando vemos as cenas, no entanto – o mar de gente esparramado nas bordas e na crista do muro, o escuro céu noturno, os holofotes, os montes de repórteres, a voz emocionada e otimista de Tom Brokaw com a turba ao fundo – nos distraímos dos antecedentes burocráticos e invisíveis do evento, das negociações de bastidores, e nos ocupamos exclusivamente da cena fantástica. Esquecemos do fato, optamos pela representação.

Ver sem refletir

E, enquanto o fluxo de imagens varre a tela, mal temos tempo de pensar nisso – na construção da narrativa. Mas, depois, quando analisamos a imagem que se seguiu, na montagem da tevê, à cena do Muro, encontramos aspectos interessantes. Essas imagens mostram o ataque ao World Trade Center. Os primeiros momentos, quando não se sabia o que estava acontecendo e apenas uma torre havia sido atingida. A voz do jornalista parece estranhamente calma, “agora vocês verão as torres gêmeas, onde um avião acaba de bater,” ainda sem saber que os edifícios viriam abaixo. Vemos a fumaça, o céu azul. E só então as torres desabam, completando a seqüência cronológica do ataque – e contrastando com a tal calma ignorante do primeiro apresentador, destacando ainda mais sua ingenuidade.

Como ele parece inocente, em retrospecto! Como éramos inocentes! E pensar que chegamos a crer que era apenas um incêndio! Ora, a mensagem fica mais clara: a história que vemos na tevê narra, mais do que o ataque terrorista, a perda da inocência (americana). E quem é que vem, imediatemente, para fechar o clipe? Tom Brokaw, o mesmo de doze anos antes, em Berlim; agora âncora e não repórter. De novo, ele está emocionado. Mas não otimista. Engasga nas palavras, faz uma pausa, segura as lágrimas e se desculpa pelo momento de emoção.

Estórias e tramas

O que torna essa parte da retrospectiva ainda mais intrigante é o fato de que, desde o ataque em setembro passado, têm pipocado reportagens e editoriais em jornais e revistas do mundo inteiro – Fortune, Financial Times,Le Monde – que, ao descrever o impacto histórico do evento, remetem à queda do Muro de Berlim em 1989. Os dois eventos são conectados por meio de várias narrativas. Uma delas se refere a um suposto período de paz e otimismo mundial, impulsionado pela dissolução da Cortina de Ferro, que indicaria que o mundo caminhava irreversivelmente para a adoção pacífica do capitalismo democrático e da integração e comércio internacional, que trariam por sua vez integração cultural e tolerância. Esse período teria acabado com o ataque ao World Trade Center. Nessas narrativas, não fica claro se o ataque pôs fim a um período verdadeiramente pacífico, ou se a tal paz não passou nunca de ilusão.

Já a outra narrativa vê a queda do Muro como o princípio de um período de convulsão, e não de paz. Sem a divisão rígida e binária entre Primeiro e Segundo mundos, entre capitalismo e comunismo, o mundo teria mergulhado em incerteza e instabilidade. Os ataques terroristas seriam apenas o desenvolvimento dessas tendências.

A associação dos dois eventos (curiosamente, dois eventos de destruição), e a variedade de explicações para essa associação, apontam para a artificialidade do relato histórico. Neste caso específico – destas imagens de que falo, destes eventos –, um relato histórico comum na mídia, reforçado por tevês, jornais e revistas, produzido e reproduzido. E, já que a maioria das pessoas tira desses meios sua fonte de informação principal, não é difícil concluir como essas narrativas ganham, rapidamente, a força de fato. Parece verdade. Parece a história nua diante de nossos olhos.

Memento

Como já disse, é daí que vem o fascínio das retrospectivas: ao vê-las, é como se tomássemos parte nos eventos; o senso de transformação histórica aparece no arrepio. Acabamos por precisar das imagens para nos reassegurar dessa história, de nossa própria memória. É uma espécie de mágica, de encantamento; as retrospectivas parecem ter o poder de invocar algo maior que elas, maior que nós, o feitiço dos fatos.

Mas, como indiquei no início, a voraz sucessão de imagens parece estar sendo sugada pelo ralo. Eu disse que esse seria uma espécie de ralo do tempo, devorando as cenas históricas e confirmando seu estado passado, irrecuperável, a sua passagem. Mas talvez essa não seja a melhor caracterização. O “ralo do tempo” ainda está dentro da narrativa, dentro de sua lógica sequencial e impressionista.

Há outro buraco em que somem as imagens, engolidas pelo tubo da tevê, pela idéia por trás do programa, pela mensagem do patrocinador, pelos episódios disparatados que se seguem, parte da mesma comemoração de aniversário: humoristas, atores antigos, famosos na platéia. Consumimos as imagens com atenção, reagimos com a sensação de arrepio ou de emoção, e depois esquecemos. As imagens se foram... pelo ralo da tevê.

Nós? Já fizemos nosso “trabalho”: já lembramos, já nos comovemos (rápido, nem é preciso pensar!). E nós esquecemos. Não admira que depois precisemos de retrospectivas, e de mais notícias, e mais narrativas (as notícias também fazem parte da lógica da retrospectiva, construídas, apenas aparentemente não-mediadas). Precisamos delas para nos lembrar daquilo que elas mesmas nos ajudam a esquecer.


Daniela Sandler
Rochester, 8/5/2002

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