Sobre as retrospectivas históricas | Daniela Sandler | Digestivo Cultural

busca | avançada
99796 visitas/dia
2,4 milhões/mês
Mais Recentes
>>> Escritor e diplomata Ricardo Bernhard lança obra pela editora Reformatório
>>> Teatro Portátil chega a São Paulo gratuitamente com o espetáculo “Bichos do Brasil”
>>> Platore - Rede social para atores
>>> João do Rio e Chiquinha Gonzaga brilham no Rio durante a Belle Époque
>>> Espelhos D'Água de Vera Reichert na CAIXA Cultural São Paulo
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
>>> Soco no saco
>>> Xingando semáforos inocentes
>>> Os autômatos de Agnaldo Pinho
>>> Esporte de risco
>>> Tito Leite atravessa o deserto com poesia
>>> Sim, Thomas Bernhard
Colunistas
Últimos Posts
>>> The Piper's Call de David Gilmour (2024)
>>> Glenn Greenwald sobre a censura no Brasil de hoje
>>> Fernando Schüler sobre o crime de opinião
>>> Folha:'Censura promovida por Moraes tem de acabar'
>>> Pondé sobre o crime de opinião no Brasil de hoje
>>> Uma nova forma de Macarthismo?
>>> Metallica homenageando Elton John
>>> Fernando Schüler sobre a liberdade de expressão
>>> Confissões de uma jovem leitora
>>> Ray Kurzweil sobre a singularidade (2024)
Últimos Posts
>>> Uma coisa não é a outra
>>> AUSÊNCIA
>>> Mestres do ar, a esperança nos céus da II Guerra
>>> O Mal necessário
>>> Guerra. Estupidez e desvario.
>>> Calourada
>>> Apagão
>>> Napoleão, de Ridley de Scott: nem todo poder basta
>>> Sem noção
>>> Ícaro e Satã
Blogueiros
Mais Recentes
>>> O bode das drogas
>>> Sexo, cinema-verdade e Pasolini
>>> A Vida Intelectual, de A.-D. Sertillanges
>>> Gatos mudos, dorminhocos ou bisbilhoteiros
>>> Insônia e lantanas na estreia de Rafael Martins
>>> I was terrified
>>> Ar do palco, ou o xadrez nos tempos da Guerra Fria
>>> Curiosidades da Idade Média
>>> Zastrozzi
>>> A Web matando a velha mídia
Mais Recentes
>>> O Museu Da Emília de Monteiro Lobato pela Ftd (2019)
>>> Decifrar Pessoas - Como entender e prever o comportamento humano de Jo - Ellan Dimitrius pela Campus (2009)
>>> Domingos Sodré - Um Sacerdote Africano de João José Reis pela Companhia Das Letras (2008)
>>> Mesopotâmia - Luz Na Noite Do Tempo de Dolores Bacelar pela Correio Fraterno (2017)
>>> Anatomia Esotérica de Douglas Baker pela Mercuryo (1993)
>>> Lucifer - O Diabo na Idade Média de Jeffrey Burton Russel pela Madras (2003)
>>> O Capital Espiritual da Empresa de Daniel Burkhard e Jair Moggi pela Campus (2009)
>>> Instalações Elétricas de Ademaro A. M. B. Cotrim pela Mc Graw Hill (1992)
>>> A Pequena Alice No País Das Maravilhas de Lewis Carroll pela Galerinha Record (2015)
>>> As Chaves do Inconsciente de Renate Jost de Moraes pela Agir (1990)
>>> Manicomios, Prisoes e Conventos de J. Guinsburg pela Perspectiva (1974)
>>> ´´´De onde viemos?´´ de Peter Mayle pela Circulo do Livro (1984)
>>> Tem Bicho Que Sabe... de Toni & Laíse pela Bamboozinho (2013)
>>> Hoje de Eva Montanari pela Jujuba (2014)
>>> Deus Me Livre! de Rosa Amanda Strausz pela Companhia Das Letrinhas (1999)
>>> Um Dia Para Não Esquecer de Patricia Engel Secco pela Melhoramentos (2013)
>>> Problemas Boborildos de Eva Furnari pela Moderna (2011)
>>> Coisas De Índio de Daniel Munduruku pela Callis (2019)
>>> O Livro Das Mágicas do Menino Maluquinho de Ziraldo pela Melhoramentos (2005)
>>> Gaspar E Lisa No Museu de Anne Gutman pela Cosac & Naify (2010)
>>> Albertinho E Suas Incríveis Máquinas Voadoras de Luciana Garbin pela Letras Do Brasil (2019)
>>> No Reino Do Vai Nao Vem de Fabio Sombra pela Scipione (2013)
>>> Meu Nome E Raquel Trindade, Mas Pode Me Chamar De Rainha Kambinda de Sonia Rosa pela Zahar (2017)
>>> O Que Está Acontecendo Comigo? de Peter Mayle, Arthur Robins pela Nobel (2003)
>>> Rupi! O Menino Das Cavernas de Timothy Bush pela Brinque-book (1997)
COLUNAS

Quarta-feira, 8/5/2002
Sobre as retrospectivas históricas
Daniela Sandler
+ de 5900 Acessos

No último domingo, vi um pedaço de mais uma dessas retrospectivas históricas na tevê. Desta vez, por ocasião dos 75 anos de uma das maiores redes públicas norte-americanas, a NBC. Do tipo daquelas retrospectivas de fim-de-ano, década, século. Na virada do ano, eu nem ligo a tevê, pois a enxurrada de retrospectivas faz parte da histeria coletiva da época que, como já escrevi antes, não me atrai. Mas, no domingo, livre do sentimentalismo do ano novo, deixei-me capturar pelos clipes de notícias passadas que representavam marcos para a vida dos norte-americanos nas últimas quatro ou cinco décadas.

As imagens foram editadas numa seqüência rápida, em fragmentos breves, mostrando cada evento em uns poucos segundos, uma ou duas frases proferidas pelo repórter ou apresentador da época explicando cada cena: os policiais atirando em estudantes norte-americanos na década de 70, a renúncia de Richard Nixon à presidência, o avanço de tanques no Oriente Médio, o atentado ao Papa, a morte de John Lennon, a queda do Muro de Berlim, a queda das torres gêmeas do World Trade Center.

As cores mais ou menos desbotadas de cada imagem, de acordo com a idade do vídeo; o timbre do som, mais abafado nas filmagens mais antigas; o desenho do logotipo da tevê no canto da tela, que também mudou: tudo isso, tanto quanto o conteúdo das cenas, contribuiu para evocar determinada época ou indicar a passagem do tempo. Por causa do ritmo acelerado da montagem, a sensação foi de que os fatos e décadas estavam sendo sugados velozmente por um ralo gigantesco. A intenção de evocar monumentalidade épica é óbvia. É difícil não se render: é emocionante.

Fascínio

Tento entender o fascínio dessas montagens. Que essas coisas todas aconteceram, nós já sabemos. Mas não pensamos nelas normalmente; ou, se pensamos, é em geral de modo isolado, aleatório, quando um fato presente evoca algo do passado. Mas não temos um filminho passando a história em revista na nossa cabeça o tempo inteiro. Se tivéssemos, aliás, não conseguiríamos prestar atenção ao presente. Claro, a memória é necessária à sobrevivência. Sem memória, não aprendemos – não guardamos o caminho, a lição, o ofício, a linguagem; não melhoramos, depois de errar ou observar.

Mas a memória não pode ocupar cem por cento das nossas faculdades mentais, ou ficaríamos paralisados, inertes, incapazes de agir no presente e de abrir espaço para o novo e o inesperado no futuro. Pois é. Equilibrar memória e esquecimento – lembremos que Friedrich Nietzsche já falava disso no século dezenove, em “Os Usos e Desvantagens da História para a Vida.”

Então é por isso. Guardamos a história em alguma prateleira fora do caminho. Por isso a retrospectiva parece extraordinária, e não familiar; e é dessa sensação extraordinária que vem parte da “importância” que atribuímos, talvez inconscientemente, aos fatos revisitados. Mas não é simplesmente uma lembrança, como se estivéssemos novamente diante da tal prateleira. A cada vez que vemos as retrospectivas, é como se apreendêssemos os fatos de novo, repetindo a primeira vez – e, de certa forma, é a primeira vez, muitas das cenas inéditas ainda que já conheçamos os fatos.

História pura

O efeito é de estarmos diante da história pura, viva: nosso status de testemunha garantido pela transparência da tela de vidro, que não vemos, entre nós e as imagens da tevê, capturadas em tempo real. Esquecemos da tela, esquecemos por um momento que a imagem é reproduzida, e é como se estivéssemos no lugar da câmera, no lugar do fato, envoltos pela impressão de realidade. Esquecemos também que, além da moldura do aparelho de tevê, há o molde do editor, do produtor, a moldura do videoclipe.

Pois, se o nosso arrepio diante da história crua vem dessa impressão de contato direto, a história com a qual nos deparamos já vem escolhida e cuidadosamente apresentada. O paradoxo é este: damos a essas narrativas a força de fato, e daí seu encanto, enquanto essas narrativas são parciais e construídas. Esquecemos do fato mesmo, optamos pela representação – que é muito mais emocionante, de todo modo.

Um exemplo: o Muro de Berlim. Depois que caiu e a euforia passou, muitos analistas sugeriram que, afinal, a estrutura já estava obsoleta e provavelmente seria eliminada, ainda que de modo menos bombástico do que a multidão de berlinenses quebrando o concreto com as próprias mãos. A abertura política do leste europeu e a reaproximação entre as duas Alemanhas já haviam culminado na decisão de liberar a passagem dos alemães orientais para o ocidente. As ações políticas aconteceram nos escritórios do governo, mas é como se precisassem de uma encenação catártica: derrubar, literalmente, o muro, para construir a dimensão simbólica do evento.

Quando vemos as cenas, no entanto – o mar de gente esparramado nas bordas e na crista do muro, o escuro céu noturno, os holofotes, os montes de repórteres, a voz emocionada e otimista de Tom Brokaw com a turba ao fundo – nos distraímos dos antecedentes burocráticos e invisíveis do evento, das negociações de bastidores, e nos ocupamos exclusivamente da cena fantástica. Esquecemos do fato, optamos pela representação.

Ver sem refletir

E, enquanto o fluxo de imagens varre a tela, mal temos tempo de pensar nisso – na construção da narrativa. Mas, depois, quando analisamos a imagem que se seguiu, na montagem da tevê, à cena do Muro, encontramos aspectos interessantes. Essas imagens mostram o ataque ao World Trade Center. Os primeiros momentos, quando não se sabia o que estava acontecendo e apenas uma torre havia sido atingida. A voz do jornalista parece estranhamente calma, “agora vocês verão as torres gêmeas, onde um avião acaba de bater,” ainda sem saber que os edifícios viriam abaixo. Vemos a fumaça, o céu azul. E só então as torres desabam, completando a seqüência cronológica do ataque – e contrastando com a tal calma ignorante do primeiro apresentador, destacando ainda mais sua ingenuidade.

Como ele parece inocente, em retrospecto! Como éramos inocentes! E pensar que chegamos a crer que era apenas um incêndio! Ora, a mensagem fica mais clara: a história que vemos na tevê narra, mais do que o ataque terrorista, a perda da inocência (americana). E quem é que vem, imediatemente, para fechar o clipe? Tom Brokaw, o mesmo de doze anos antes, em Berlim; agora âncora e não repórter. De novo, ele está emocionado. Mas não otimista. Engasga nas palavras, faz uma pausa, segura as lágrimas e se desculpa pelo momento de emoção.

Estórias e tramas

O que torna essa parte da retrospectiva ainda mais intrigante é o fato de que, desde o ataque em setembro passado, têm pipocado reportagens e editoriais em jornais e revistas do mundo inteiro – Fortune, Financial Times,Le Monde – que, ao descrever o impacto histórico do evento, remetem à queda do Muro de Berlim em 1989. Os dois eventos são conectados por meio de várias narrativas. Uma delas se refere a um suposto período de paz e otimismo mundial, impulsionado pela dissolução da Cortina de Ferro, que indicaria que o mundo caminhava irreversivelmente para a adoção pacífica do capitalismo democrático e da integração e comércio internacional, que trariam por sua vez integração cultural e tolerância. Esse período teria acabado com o ataque ao World Trade Center. Nessas narrativas, não fica claro se o ataque pôs fim a um período verdadeiramente pacífico, ou se a tal paz não passou nunca de ilusão.

Já a outra narrativa vê a queda do Muro como o princípio de um período de convulsão, e não de paz. Sem a divisão rígida e binária entre Primeiro e Segundo mundos, entre capitalismo e comunismo, o mundo teria mergulhado em incerteza e instabilidade. Os ataques terroristas seriam apenas o desenvolvimento dessas tendências.

A associação dos dois eventos (curiosamente, dois eventos de destruição), e a variedade de explicações para essa associação, apontam para a artificialidade do relato histórico. Neste caso específico – destas imagens de que falo, destes eventos –, um relato histórico comum na mídia, reforçado por tevês, jornais e revistas, produzido e reproduzido. E, já que a maioria das pessoas tira desses meios sua fonte de informação principal, não é difícil concluir como essas narrativas ganham, rapidamente, a força de fato. Parece verdade. Parece a história nua diante de nossos olhos.

Memento

Como já disse, é daí que vem o fascínio das retrospectivas: ao vê-las, é como se tomássemos parte nos eventos; o senso de transformação histórica aparece no arrepio. Acabamos por precisar das imagens para nos reassegurar dessa história, de nossa própria memória. É uma espécie de mágica, de encantamento; as retrospectivas parecem ter o poder de invocar algo maior que elas, maior que nós, o feitiço dos fatos.

Mas, como indiquei no início, a voraz sucessão de imagens parece estar sendo sugada pelo ralo. Eu disse que esse seria uma espécie de ralo do tempo, devorando as cenas históricas e confirmando seu estado passado, irrecuperável, a sua passagem. Mas talvez essa não seja a melhor caracterização. O “ralo do tempo” ainda está dentro da narrativa, dentro de sua lógica sequencial e impressionista.

Há outro buraco em que somem as imagens, engolidas pelo tubo da tevê, pela idéia por trás do programa, pela mensagem do patrocinador, pelos episódios disparatados que se seguem, parte da mesma comemoração de aniversário: humoristas, atores antigos, famosos na platéia. Consumimos as imagens com atenção, reagimos com a sensação de arrepio ou de emoção, e depois esquecemos. As imagens se foram... pelo ralo da tevê.

Nós? Já fizemos nosso “trabalho”: já lembramos, já nos comovemos (rápido, nem é preciso pensar!). E nós esquecemos. Não admira que depois precisemos de retrospectivas, e de mais notícias, e mais narrativas (as notícias também fazem parte da lógica da retrospectiva, construídas, apenas aparentemente não-mediadas). Precisamos delas para nos lembrar daquilo que elas mesmas nos ajudam a esquecer.


Daniela Sandler
Rochester, 8/5/2002

Mais Daniela Sandler
Mais Acessadas de Daniela Sandler em 2002
01. Virtudes e pecados (lavoura arcaica) - 9/1/2002
02. Nas garras do Iluminismo fácil - 10/4/2002
03. Iris, ou por que precisamos da tristeza - 24/4/2002
04. Somos diferentes. E daí? - 30/1/2002
05. Crimes de guerra - 13/3/2002


* esta seção é livre, não refletindo necessariamente a opinião do site



Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




Moscow Eyewitness Travel Guides
Christopher Rice; Melanie Rice
Dk
(2013)



How to Be Good
Nick Hornby
Riverhead Books
(2001)



Livro Sociologia Cultura de Massa e Política de Comunicações Coleção Para Entender 4
Waldenyr Caldas
Global
(1986)



Franklin Richards - Filho de um Gênio
Marvel Comics
Panini
(2014)



Anjo Da Morte
Pedro Bandeira
Moderna
(2003)



A devassa da devassa: a inconfidência mineira; Brasil e Portugal 1750-1808
Kenneth Maxwell
Paz e terra
(1977)



Ate Que A Vida Os Separe
Monica De Castro, Leonel
Vida & Consciencia
(2005)



Elliot Allagash - Diário de um Ex-perdedor
Simon Rich
Planeta
(2012)



Livro Literatura Brasileira Outra Vida
Rodrigo Lacerda
Alfaguara
(2009)



The Cambridge Illustrated History of Germany
Martin Kitchen
Cambridge University Press
(2000)





busca | avançada
99796 visitas/dia
2,4 milhões/mês