ENSAIOS
Segunda-feira,
23/1/2006
Baixíssima gastronomia
Ricardo Freire
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A última onda é a baixa gastronomia praticada em lugares da moda – pratos de botequins populares revisitados por botequins freqüentados pela moçada. Não, obrigado. Baixa gastronomia em boteco de mauricinho é meio-termo demais para o meu gosto.
Prefiro os extremos. Pedir comida nojenta em restaurante de luxo, por exemplo. Desculpe falar isso bem no meio do seu café da manhã, mas a verdade é que eu não consigo resistir a dobradinha em restaurante francês. Se está no cardápio, eu peço. E imediatamente esqueço que esse é um prato que nasceu em Caen, no noroeste da França – para mim, a dobradinha nasceu num desses botecos do Centro onde é servida todas as terças.
Já num botequim eu dificilmente peço o prato do dia. Por um motivo: não chego a ler o cardápio afixado na parede. Meus olhos simplesmente não conseguem desgrudar daquilo que está exposto no balcão. Um virado à paulista é algo totalmente abstrato, quando você tem na sua frente coxas de galinha de carne e osso. Basta comer uma para ter certeza absoluta de que coxa de galinha e peito de frango vêm de integrantes inteiramente distintos do reino animal.
Mas não se preocupe. Você não vai me ver comendo ovos cozidos coloridos em nenhum momento deste artigo. É que eu não sou fã de ovo cozido. Mas se fosse, é lógico que experimentaria um desses – de preferência, cor-de-rosa – que costumam ficar entre os torresmos, as lingüiças e os nuggets de pacote.
O meu fraco por coxas de carne e osso, contudo, não chega perto da minha tara por doce velho de padaria. Fala sério – tem coisa melhor que doce vencido de padoca? Aquele mil-folhas dormido de três noites, que já deu ao creme toda a chance do mundo de penetrar na massa, tornando o conjunto absolutamente inseparável? Ou aquele pudim que se solidificou um pouquinho só, para ficar com aquela consistência própria para a gente pegar um guardanapo e segurar com a mão? Ah, como eu gosto.
Infelizmente, eu não fumo. Porque, se fumasse, teria a chance de entrar com mais freqüência nos verdadeiros antros da baixíssima gastronomia. E poderia comer mais vezes aquele que é o bolo mais gostoso do planeta: o bolo de balcão. Aquele que você não tem a mínima idéia de onde, quando e de que jeito veio, mas que está ali, só esperando você levantar a tampa de plástico transparente e escolher o seu pedaço. Moço! Eu queria também um café. Mas só se for no copo. Já vem com açúcar, né?
Sobre a globalização do café expresso
Ninguém jamais se manifestou contra a globalização do café expresso. A não ser, é claro, as balconistas.
Chegue em algum lugar onde o café expresso seja novidade – basicamente, qualquer cidade fora do Estado de São Paulo – e você vai notar que as meninas do balcão têm dificuldade em entender como é que alguém pode gostar daquilo.
Se você recusa o açúcar, então, elas fazem careta.
– Puro? Ugh! Como o senhor consegue?
A gente dá um golinho e elas se arrepiam, como alguém tivesse arranhado um giz no quadro-negro.
O fenômeno, no entanto, é irreversível. Um dia o café expresso chegará ao sertão, à floresta, ao pantanal. Já tem café expresso em Canoa Quebrada. Já tem café expresso em Ilha Grande. Já tem café expresso até em Fernando de Noronha. (Ao lado do Ibama, para ser mais exato.)
Mesmo assim, ninguém se manifesta contra a globalização do café expresso.
Os agricultores franceses não bloqueiam as estradas em protesto contra a disseminação dos valores culturais italianos. Os nacionalistas brasileiros não escrevem artigos defendendo a resistência cívica e a instituição de incentivos fiscais ao jeitinho caipira de fazer café. Nenhuma confederação de indústrias pede a proibição da importação de máquinas de café expresso para evitar o fechamento das fábricas de coador de papel.
Cada vez mais escritórios instalam máquinas de café expresso do tamanho de geladeiras, mas ainda não apareceu nenhum partido de esquerda a alertar para o desemprego maciço das moças do cafezinho.
A verdade é que o café expresso civiliza povos aonde quer que chegue.
Os americanos só fizeram a revolução tecnológica da informática depois que descobriram o café expresso. Hoje os Estados Unidos são um país dividido visceralmente entre jovens e velhos, modernos e ultrapassados, bacanas e jecas, bebedores de café expresso e consumidores de canecões de água preta rala.
A única grande empresa americana surgida nos últimos 10 anos e que não se chama alguma coisa ponto-com é a Starbucks – uma espécie de McDonald's do café expresso, nascida na mesma Seattle da Microsoft e da Amazon. Mesmo lá, não adianta pedir um café. Eles só atendem se você pedir um piccolo ou um doppio latte. Na Starbucks você é obrigado a não apenas ser específico, mas a ser específico em italiano. Nem por isso os americanos fazem piquete em frente à Casa Branca contra a invasão de expressões estrangeiras ao vernáculo ianque.
Leonel Brizola nunca foi à televisão denunciar a perda internacional do nosso melhor café, que vai até a Itália para voltar em sachês imperalistas, prontos para funcionar apenas em máquinas italianas. Itamar Franco nunca condicionou a venda de Illycaffè em Minas Gerais à instalação de uma fábrica de máquinas em Juiz de Fora. Maria da Conceição Tavares jamais chorou em público por preferirem café expresso até em Portugal.
É incrível: ninguém se manifesta contra a globalização do café expresso. E no entanto só Hollywood penetrou tão insidiosamente nos costumes de todos os povos civilizados ou em processo de civilização. O cigarro pode estar caindo em desuso, mas o expresso nunca experimentou tamanho sucesso. A Coca-Cola perde mercado para as tubaínas, as cervejas ficam mais leves e claras, mas a única concessão do café expresso ao gosto do mercado foi o surgimento da versão descafeinada (ugh).
Só as balconistas são contra a globalização do café expresso.
Elas pegam a nossa ficha com indiferença. Perguntam "puro ou com leite?" com desprezo. Tiram o bocal da máquina com força. Enchem o bocal de pó de café com raiva. Recolocam o bocal na máquina com ódio. Apertam o botão da máquina com tristeza. Esperam o café escorrer com tédio. Depositam a xícara na sua frente com nojo.
Não adianta, meninas. Não há como deter a globalização.
Nota do Editor
Textos gentilmente cedidos pelo autor. Publicados originalmente no Guia do Estadão, em dezembro de 2005, e no Jornal da Tarde, em agosto de 2000. Ricardo Freire é autor dos livros Viaje na Viagem e O Efeito Sanfona: confissões de um dependente químico de comida.
Ricardo Freire
São Paulo,
23/1/2006
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