ENSAIOS
Segunda-feira,
7/8/2006
Encontros com Nam June Paik
Marcelo Kahns
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Antes de conhecer Nam June Paik conheci a sua obra.
Em 1976 eu morava em Colônia (Alemanha) e trabalhava no serviço de rádio da Deutsche Welle, que transmitia em português para o Brasil, e era junto com a BBC e outras rádios o único meio de informação em um país dominado pela censura dos militares.
Em Colônia funciona o Kunstverein, que faz parte do museu da cidade, mas voltado para a arte de vanguarda. O seu diretor, na época, Wulf Herzongerath, era um grande admirador de Paik e, naquele ano, uma grande exposição por ele organizada teve Paik como figura central.
Paik começou a sua carreira como vídeo artista na Alemanha junto com Joseph Beuys e outros artistas do FLUXUS, do qual foi se distanciando pouco a pouco até seguir uma carreira solo.
Alguns anos mais tarde, no começo da década de 80, em uma de minhas viagens a New York, em uma tarde ensolarada, durante um vernissage de uma galeria no SoHo, através de uma amiga em comum, fui apresentado a Nam June.
O grande artista da vídeo-arte tinha algo que não partia do racional: ou ele reconhecia a pessoa que entrava em contato com ele ou simplesmente não a levava em consideração.
No meu caso a afinidade se deu no primeiro contato e ficamos de nos falar mais tarde.
O que posso me lembrar é que conversamos sobre o seu projeto Good Morning Mr Orwell, sobre o qual discutimos longamente, até que ele me ofereceu para apresentá-lo na televisão brasileira.
E o programa realmente foi transmitido pela TV Cultura de São Paulo, tempos depois de ter sido transmitido ao vivo.
Neste programa participavam, entre outros, Laurie Anderson, Joseph Beuys, Salvador Dalí, Yves Montand, Allen Ginsberg e John Cage.
Segundo Paik esse programa teria sido visto por 33 milhões de pessoas, no mundo inteiro.
Em 1987, ao visitar a Documenta, em Kassel (Alemanha) o grande impacto que tive ao visitar a mostra foi a vídeo-escultura com 50 monitores e 5 projetores, Beuys/Boice, que Paik tinha feito em homenagem a um dos grandes teóricos e artistas (Joseph Beuys) do século passado. Era uma instalação que mostrava o desespero desse grande artista, que tinha falecido poucos meses antes.
A partir daí o nosso contato foi constante.
Ainda em 1987 fui convidado para ser um dos curadores da mostra Brazil Projects (abril a junho de 1988), que reunia artistas de todos os quadrantes do Brasil no P.S. 1, (Long Island City, New York) uma das mais prestigiadas instituições de vanguarda, para um projeto que pretendia pensar o país em várias dimensões.
A minha proposta era reunir artistas brasileiros com artistas que trabalhavam em New York: entre eles juntei Laurie Anderson e Naná Vasconcelos e Nam June Paik com Hans Donner.
Paik considerava Donner um dos maiores nomes da arte tecnológica e gostava muito do seu trabalho – Donner apresentou uma série de videographics e Paik fez, especialmente para a mostra, um desenho sobre cartão onde colou um número 22 e escreveu em volta: “I chose number 22 because in the 22 century Brazil will be really rich (eu escolhi o número 22 porque no séc. 22 o Brasil será realmente rico)”.
Embora esse número pudesse ser associado a uma infinidade de referências sobre o Brasil (Semana de Arte Moderna, etc..), na realidade o que Paik fez foi recorrer a um livro japonês, que tinha lido há muito tempo, onde o autor vaticinava a futura riqueza do país.
Quando cheguei em janeiro de 88 para conversar com Paik sobre a sua participação no evento, New York estava passando pela maior onda de frio em décadas. A neve cobria as ruas até quase o joelho, as ruas estavam vazias, não dava para ir a lugar algum.
E quando chego ao apartamento de Paik, 110 Mercer Street, no Soho, a imagem é de desolação: Paik me recebe enrolado em um cobertor, em uma sala gélida, sem aquecimento, e com gripe. Tinha acabado de preparar um chá, que bebi junto com ele, enquanto lá fora a sensação de frio chegava a -30º (nas rádios, pessoas do Alasca davam conselhos de como sobreviver naquele frio inusitado para N.Y.).
Mesmo no estado em que se encontrava, tinha forças para começar uma ação, ao telefone, entre o pessoal de vanguarda da cidade para ajudar um cineasta underground – Jonas Mekas – que estava criando um arquivo de filmes e passava por dificuldades financeiras, ainda maiores do que as dele.
Isso era uma constante em sua vida: era uma pessoa querida na comunidade artística por seus gestos desprendidos e por sua disposição de ajudar a todos, mesmo quando era ele que precisava de ajuda.
A exposição acabou sendo um grande sucesso e a nossa parceria foi à frente: Paik tinha me incluído – juntamente com Hans Donner – no novo projeto global, Wrap around the world (Embrulhando o mundo) que deveria ser o ponto inicial das Olimpíadas de Seul, no verão de 88.
Esse novo projeto televisivo, que envolveria países em todos os continentes, seria a continuação dos outros dois realizados por Paik: Good Morning Mr. Orwell, e Bye – Bye Kipling – neste último Paik brincava com uma citação de Kipling que dizia que o Ocidente e o Oriente nunca iriam se encontrar. Isso tanto não era verdade como Nam June era a própria encarnação deste encontro: um coreano que decidiu fazer do mundo a sua casa e juntar todas as diferenças possíveis e imagináveis.
Quem estava na parte técnica, organizando as conexões entre emissoras de TV do mundo inteiro era uma produtora da PBS americana, Carol Brandenburg, que havia trabalhado com Paik nos projetos anteriores.
Pelo Brasil, Hans Donner conseguiu o apoio da TV Globo – foi durante uma reunião, da qual participei, que o Boni deu carta branca para levar o programa avante.
Um passista de uma escola de samba foi ao estúdio da Globo, no Rio de Janeiro, e com as fusões de Donner, gravou-se uma seqüência que foi ao ar no dia 10 de setembro juntamente com artistas do mundo inteiro, em um programa que foi visto por milhões de espectadores por todo o planeta.
Nesse mesmo ano encontrei-me com Paik em Seul, na Coréia do Sul, por ocasião do festival cultural organizado para abrir as Olimpíadas daquele ano.
Fui vê-lo em um salão vazio, no centro da cidade, sentado como um Buda, assinando uma série de serigrafias que ele fazia para poder viver.
Vendo-o assim associei a sua imagem aos inúmeros budas que ele usava em suas instalações – em 1974 ele já havia feito uma TV Buda, onde uma escultura de um buda sentado via a sua própria imagem numa TV.
O seu senso de humor, mais a iconoclastia do movimento FLUXUS, davam um significado especial às suas ações – em 1964 ele tinha feito um filme, Zen for Film que depois veio a ser Zen for Wind, onde a sonoridade adquiria o seu lugar.
Paik tinha um interesse especial pela música: sua ligação com Stockhausen provava isso, bem como as suas performances/ instalações com a violonista Charlotte Moorman – em 1960 concebeu uma apresentação da Sonata ao Luar com a violinista nua, nunca realizada. Mas Charlotte Moorman, mais à frente, o acompanhou em inúmeras performances na sua fase mais irreverente.
Mas Paik tinha também a sua atração pela tecnologia: em 1969, juntamente com Shuya Abe, desenvolveu o primeiro sintetizador de vídeo, fazendo com a imagem o que antes só era possível se realizar com o som.
Essa sua capacidade de juntar arte e tecnologia fez com que a Sony entregasse a Paik todo e qualquer equipamento de vídeo que viria a desenvolver, para que ele pudesse usar esse novo aparelho em suas investigações/ criações.
O meu último encontro com Paik, mais uma vez não foi com ele presente e sim com a sua participação no Pavilhão Alemão da Bienal de Veneza em junho de 1993.
Por ocasião dessa Bienal, ele e o artista alemão Hans Haacke, tomaram conta, literalmente, do espaço pertencente à Alemanha – Haacke destruindo o interior do pavilhão e Paik mostrando uma série de construções vídeo/robóticas.
Naquele ano o pavilhão alemão levou a medalha de ouro da exposição.
Ainda no começo dos anos 90 tentei trazer Nam June ao Brasil: tudo estava preparado para uma grande exposição, mas infelizmente o país entrou em uma débâcle econômica e todos os planos foram por água abaixo.
Nos últimos anos a doença o atingiu brutalmente, ele teve de se mudar de New York e perdemos contato.
Infelizmente a vida deste grande artista chegou ao fim recentemente, mas o seu legado é enorme: ele certamente foi um dos gênios da raça, uma antena, como dizia Pound em sua classificação de artistas – difícil imaginar alguém que tenha influenciado a segunda metade do século passado como Nam June Paik!
Nota do Editor
Este texto compõe o catálogo da exposição sobre o Nam June Paik que acontece, agora, no Centro Cultural Telemar do Rio de Janeiro. Marcelo Kahns é atualmente editor do site Nanquim.
Marcelo Kahns
São Paulo,
7/8/2006
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